sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Soma e segue

 

Embora inútil, a indignação de Nuno Pacheco, sempre atenta aos desmandos linguísticos causados por um extraordinário acordo ortográfico só possível num país sem pergaminhos de decência – e não só linguística, mas começa aqui – mais uma vez se faz sentir, enriquecida por novos exemplos de dislates ortográficos, que escorregam pelas mentes indiferentes daqueles para quem o que conta é o espaço apenas do retalho físico que lhes coube dirigir, para uma sobrevivência sem ideais de tal decência, como se vê a cada passo, nos inchaços momentâneos do bem-estar passageiro, que vem de fora. Não, o ridículo dos exemplos citados por Nuno Pacheco não faz corar de vergonha, atentos que somos, apenas, à côdea que nos faz mover.

Cultura-Ípsilon

OPINIÃO

2021: odisseia “abruta” no “apocalise”

Karl Kraus via os erros na escrita como os causadores dos grandes males do mundo. Pois calhou-lhe um “apocalise”.

PÚBLICO, 7 de Janeiro de 2021

Vinte anos passados sobre o 2001 que Clarke e Kubrick nos fixaram na memória, era quase inevitável deparar com novas adaptações do título do livro e do filme a variados contextos. E isso não é de agora, já temos vindo a lê-los desde há largos meses. Alguns exemplos: “2021: odisseia no PIB” (jornal i), “2021, Odisseia no Espaço da União” (O Jornal Económico), “2021, Avança a Odisseia no Espaço!” (Correio Brasiliense), “2021 Odisseia em Marrocos” (de uma equipa de viajantes no Facebook), “2021: odisseia nas finanças pessoais” (Dinheiro Vivo), “2021: odisseia na Terra” (no blogue A 3.ª Face) e até “2021 Odisseia dos descontos” (este em letras gordas no folheto de uma conhecida marca de electrodomésticos). Mas há uma outra odisseia que se nos torna cada vez mais penosa: é a odisseia “abruta” no “apocalise”.

Expliquemo-nos: em 2020, como em anos anteriores, temos vindo a alertar (fazendo eco de muitos e fundamentados avisos, recentes e antigos) para o aparecimento de palavras surreais, que vão surgindo a coberto de uma qualquer “simplificação” da escrita. O acordo ortográfico abriu a torneira, esqueceu-se de a fechar, e o disparate jorra em quantidades industriais. O que tem isto a ver com 2021? O mesmo que tinha a ver com 2020, ou 2019, ou… 2010. Com a agravante de, ano após ano, não terem diminuído mas sim aumentado, e muito, tais erros.

Depois de alguns tristes exemplos já aqui citados numa crónica anterior (“Viagem alucinante pelo país das cinco ortografias”), tais como “impatos”, “patos”, “estupefatos”, “artefatos” “corrução”, “excepo”, “interrução” e “helicótero”, em lugar de impactos, pactos, estupefactos, artefactos, corrupção, interrupção e helicóptero, temos agora (além da repetição das pérolas anteriores), “tenológico”, “impate”, “putrefato”, “sução”, “réteis”, “onívoros”, “galáticos” (“preços galáticos”, anunciados no mesmo folheto da “Odisseia dos descontos”), “piroténico”, “excessão”, “espetativa”, “excessional”, “secionadas”, “abruta” e “apocalise”! Isto em vez de tecnológico, impacte, putrefacto, sucção, répteis, omnívoros, galácticos (de galáxia, não de galos), pirotécnico, excepção, expectativa, excepcional, seccionadas, abrupta e apocalipse. Ora o “apocalise” chegou a ser anunciado por um município como título de um espectáculo que na verdade se chama Os Quatro Clows do Apocalipse. Pior ainda, chegou a ser usado ao citar o título do filme de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now a propósito de um livro que nem sequer era com ele relacionado. Assim: “Em Apocalise Now, o genial filme de guerra…”

Mas muito pior do que isso é o facto de um livro intitulado O Apocalipse Estável: Aforismos, surgir etiquetado numa biblioteca como… O apocalise estável (disparate corrigido pela capa do livro, reproduzida ao lado). Onde se deu tamanha bizarria? Numa biblioteca pobríssima de uma aldeia recôndita? Não, no site da Biblioteca Nacional de Portugal! E não se trata de mero lapso, pois a palavra (se assim lhe podemos chamar) “apocalise” surge grafada duas vezes, uma a negrito e outra a itálico, como se comprovará numa mera consulta. O que quer isto dizer? Que os funcionários da BNP são analfabetos? Não. Se assim fosse, seria corrigível. O pior é que quem escreveu semelhante enormidade deve ter-se regido pela ideia geral, comum a todas ou quase todas as aberrações acima descritas, de que duas consoantes seguidas são um crime de lesa-língua. O estúpido acordo induziu as gentes nessa sinistra façanha censória e não há modo de as parar, até porque o disparate se dissemina muito mais rapidamente do que o senso ou o nexo. Daí, toca a tirá-las, umas a eito e outras à sorte. “Abruta” e “apocalise” não existem em lado algum, nem em Portugal, nem no Brasil nem em qualquer canto do Globo.

O mais divertido é que tal erro, fixado nas páginas virtuais da Biblioteca Nacional (há-de ser emendado à pressa mal alguém leia isto, mas fica uma cópia registada na versão online desta crónica, para memória futura), foi logo calhar a Karl Kraus (1874-1936), um escritor vienense que olhava para os erros na escrita como os causadores dos grandes males do mundo. Sem ir tão longe, não faria mal aos nossos governantes e deputados lerem, já não digo Kraus, mas as misérias citadas nesta crónica. Talvez assim avaliassem melhor o indefensável “acordo” que assinaram e teimam em manter, virando costas à razoabilidade dos que se lhe opõem.

tp.ocilbup@ocehcap.onun

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COMENTÁRIOS:

José Luís EXPERIENTE: Ainda agora fui ao site da Santa Casa de Ílhavo e lá está "contatos". 07.01.2021  Manuel Correia.247270 INICIANTE O clássico “à caracóis” é culpa do AO90          antao.am.837032 INICIANTE: Portanto, os erros ortográficos só surgiram depois de se adotar um novo AO. Antes, ninguém adulterava a ortografia da língua portuguesa. O rigor ortográfico com que antes se escrevia perdeu-se com este malfadado acordo. Ó senhor Nuno Pacheco, meta na sua cabeça que está a lutar contra moinhos de vento. Desaparecida a sua geração, estas confusões deixarão de existir porque teremos uma nova geração de gente que aprendeu a escrever a língua portuguesa segundo a nova norma.     JLR INFLUENTE: Sim, num país que já há décadas tem 100% de alfabetização, o bandido do AO veio deitar tudo a perder... Na minha opinião o AO 90 tem defeitos, que podem ser analisados e corrigidos, havendo vontade para isso. Nuno Pacheco limita-se a repetir até à exaustão exemplos de erros e incorreções que pouco ou nada têm a ver com o AO 90, numa lógica do "quanto pior, melhor". Analisar e debater seriamente os defeitos e propor correções / soluções não parece ser para ele importante.      luisvaz EXPERIENTE: Até se inscrevem como comentadores no Público, única e exclusivamente para fazer a apologia do AO07/43/90. O negócio está a dar. É pena é que não sirva para nada, a não ser encher os bolsos aos editores, desde os escolares até à Microsoft, pois a maior parte das pessoas não consegue escrever correctamente sem o corrector ortográfico. Quando a Coreia do Sul quis ensinar inglês aos seus alunos, contratou dezenas de milhares de professores nativos de língua inglesa. A Fonética e a Fonologia são indispensáveis. Os melhores colégios, para filhos de milionários, são muito exigentes na selecção de professores. Quem não dominar na perfeição fonemas e grafemas das línguas que vai ensinar, não será admitido. Quanto à Língua Portuguesa, qualquer mudo poderá doravante ensinar português. Ditosa Pátria! Em total desrespeito pelos mestres da Língua e à revelia dos milhões de utilizadores que aprenderam a escrever Português, meia dúzia de vendedores de banha da cobra conseguiram seduzir alguns políticos para implantar um crioulo chamado acordês que não tem aceitação nem no Brasil nem nas outras ex-colónias. Como não escutaram as opiniões dos especialistas é algo que nunca perceberemos. Apenas escutaram o caixeiro-viajante que vendeu a contrafacção em Portugal, com um produto mixordeiro feito por alunos. É óbvio que o pretendido era apenas aumentar o número de vendas de dicionários, gramáticas, prontuários, correctores ortográficos e todos os restantes livros que terão de ser reeditados, segundo as novas ortografias nos dois lados do Atlântico que continuam a ser diferentes, como eram antes.      mzeabranches INICIANTE: Obrigada, Nuno Pacheco: é indispensável insistir, para ver se haverá, entre os responsáveis pelo poder político, alguém realmente culto, democrata e português, que veja que se está a destruir a língua que nos faz existir há séculos. É uma vergonha ver e ouvir o português europeu deformado que anda a circular por aí. Pergunto-me: os intelectuais e políticos deste país já só comunicarão em inglês, uma vez que se mantêm insensíveis a este desastre nacional? Há dias li, numa legenda, na televisão, 'veredito'!!! Com estas ajudas e com os correctores ortográficos, em breve seremos 'de novo' um país de analfabetos! Quem se candidata à Presidência da República desconhece o que significa a sua língua para qualquer povo? Ainda não vi ninguém debater este tema! Na UE, mostrando o nosso analfabetismo!       Macho Alfa INICIANTE: Títulos à la André Ventura para continuar uma guerra perdida? É muito à la Trump. Há gente confusa? Há? Sempre houve gente confusa aquando dos acordos ortográficos, nomeadamente os velhotes. Os jovens estão na onda AO90 e felicíssimos. Estão sintonizados. Esta conversa já dá sono.           João Cascalho INICIANTE: Dá sono, não. Faz acordar para uma grande asneira à boa maneira portuguesa.

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