segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Também existem na ficção, é claro


Dessas histórias tristes, que nos fazem sentir emoções dolorosas como emLes Misérables” de V. Hugo, que são espelho de realidades vividas, ou colhidas do quotidiano dos escritores que as observaram ou viveram. Apesar de tudo, não julgo que seja o comum, tanta crueldade, mesmo nas aldeias esconsas, nos recantos das serras, onde o amor, a alegria e a banalidade do viver quotidiano se vão tecendo, de par, é certo, com bestialidades cometidas sobretudo pelos seres machos portadores da autoridade que lhes dá a força viril. Nunca me esqueço de um gato tinhoso que o nosso vizinho José da Palmira espetou com uma forquilha, que várias vezes ergueu ao ar e bateu no chão, com o gato a espernear e a miar até silenciar. Foi por altura dos meus seis ou sete anos e a imagem de horror ainda hoje permanece na minha memória, de asco e revolta, mas não vou culpar as pessoas que vivem do lado de lá, na cidade, por desconhecerem tais casos dos horrores que chegam na documentação do arquivo de Pacheco Pereira. O que é necessário é que a justiça funcione, e a educação também. Trabalhe-se, sim, para as difundir, com autenticidade e sem os cinismos de uma falsa bondade, que resulta, sobretudo, do desejo de responsabilizar os que vivem os seus próprios egoísmos, e os seus próprios problemas. Do outro lado da cidade. Cabe ao Estado organizar-se socialmente, impondo preceitos, e não contribuir para o falhanço destes. É bonito expor tais casos, para nos elevarmos no conceito alheio. Mas José Pacheco Pereira não precisa dessas demagogias para se superiorizar. Suponho que também é sensível aos demais desastres e misérias que ocorrem por esse estranho mundo de contrastes. E de Cristo, ou não.

OPINIÃO César e o cozinheiro

Estas vidas que temos no arquivo, ferroviários, costureiras, operários industriais, estivadores, são a nossa história, tanto mais real quanto menos escrita.

JOSÉ PACHECO PEREIRA         PÚBLICO, 2 de Janeiro de 2021

Há dias, numa intervenção que fiz numa cerimónia, citei um célebre poema de Bertold Brecht, “Perguntas de um Operário Letrado": "César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?”

O objectivo era referir-me ao Arquivo Ephemera que trata de César e do cozinheiro, da grande história e da história invisível dos pequenos, da multidão que faz o mundo em que vivemos como se não tivesse nome, nem identidade. Na sequência, recebemos pelo correio um conjunto de documentação e uma série de notas manuscritas sobre uma família lisboeta das “classes populares” nos últimos cem anos, retratando muitas das coisas desse quotidiano, da condição feminina, da mortalidade infantil, da doença, da violência doméstica, da luta contra a deficiência, a embriaguez, a tuberculose. Local: Alcântara, Lisboa, uma zona pobre da cidade. Personagens: uma família muito numerosa, seis filhos numa geração, oito na geração seguinte e “muitos outros que não chegaram a nascer”. Profissões dos homens: empregados do comércio, carpinteiros, ferroviários. Profissões das mulheres: “criada”, doméstica. Anos: dos anos vinte a cinquenta do século XX.

Dos oito filhos, dois nasceram cegos e viveram em asilos para cegos em Campo de Ourique, o asilo Nossa Senhora da Saúde e o Asilo Escola António Feliciano de Castilho. Um outro filho morreu de meningite com dois anos, outro de difteria com seis e, por último, outro, com um ano, de sarampo e pneumonia. Parece uma família especialmente vítima de desgraça, mas não, é o regulador natural destas famílias numerosas e pobres, que viviam em péssimas condições de habitação e salubridade. A heroína desta história é uma mulher, a mãe dos oito filhos, que foi “forçada a casar” em 1924, presume-se porquê, estava grávida e teve o seu primeiro filho poucos meses depois de casar. Os homens desta história verdadeira são de um modo geral mais educados do que as mulheres, embora estejamos a falar da 2.ª ou 3.ª classe. Mas são “estroinas, boémios, mulherengos”, sem dinheiro e, por fim, alcoólicos. Um deles, correspondendo também a um perfil comum nas “classes populares” lisboetas destes anos, era “ateu” e do contra.

A violência doméstica fazia parte do quotidiano. Como o pai era ateu, nenhum dos filhos era baptizado e, por isso, a mãe não conseguia obter a ajuda das instituições da igreja. Um dia roubou umas moedas em casa e levou os filhos à igreja para os baptizar. Quando do funeral de uma filha, ele descobre o averbamento do baptizado e, nesse mesmo dia, dá uma “tareia” à sua mulher.

Depois há toda uma história sentida como sendo de humilhações. Por exemplo, o filho mais velho, cego de nascença, teve que se apresentar à inspecção para a tropa. E lá foi, nu, mostrar à evidência de que não podia ser apto… Ou a filha mais nova, que nos ofereceu este espólio, e que relata a sua experiência na primária com uma professora “gorda, feia e má” que batia nos alunos “agarrando pelos dedos para baixo, o que fazia com que a reguada apanhasse o pulso cujas veias ficavam inchadas”. Mas no espólio vem uma micro-história infantil, O Patinho Feio, oferecida pela mesma professora com uma inscrição a um canto que dizia “por saberes bem a lição”…

É cómodo e fácil achar hoje que esta história ou histórias como esta são pejorativamente vistas como sendo um “choradinho”, ou um daqueles fados da desgraça, que também nestes anos eram vendidos em folhas volantes pelas feiras. Estas pessoas viviam no centro da grande cidade, mas pouca gente das classes médias ou altas, para usar estes eufemismos, passava por lá. Nestes anos, vinte, trinta, quarenta do século XX, a pobreza urbana nas grandes cidades Lisboa e Porto (nas “ilhas” do Porto, por exemplo…) era enorme, mas estava acantonada fora da vista, fora da literatura, e fora dos jornais que só visitavam os “bairros insalubres” quando estes se tornavam um perigo por causa das epidemias. Na verdade, estas vidas tinham como que um escudo invisível protegendo seu interior e mesmo a mendicidade tendia a ser tratada como uma colecção de “tipos” mais ou menos folclóricos.

Voltando ao cozinheiro, ou melhor, aos “cozinheiros” que temos no arquivo, ferroviários, costureiras, operários industriais, estivadores, são a nossa história, tanto mais real quanto menos escrita.

HISTÓRIA

Há vida no arquivo

Historiador

OPINIÃO  HISTÓRIA  POBREZA  ALCÂNTARA  ARQUIVOS

COMENTÁRIOS:

Daniel A. Seabra INICIANTE: Pacheco Pereira dá assim mais um contributo (e são muitos) para um melhor conhecimento da sociedade portuguesa. 03.01.2021            Maria Odete Vilas Coutinho MODERADOR: A situação estava totalmente bloqueada, nessa época, e para essas classes ditas inferiores; todas, repito, todas as cumplicidades se davam as mãos de modo eficaz e até sereno. O 25 de Abril alterou tudo, mas muito se manteve sob outra encenação - recordo um ensaio que li há anos, tipo documentário, que se chamava algo como "Os Donos de Portugal", o qual defendia a tese de que as grandes famílias continuam por aí, sob máscaras as mais diversas, e muito do que hoje se vive reproduz, sob novíssimas capas, obviamente, as dominações desses tempos que PP quis trazer até nós, neste começo de ano. Bem haja por isso! 02.01.2021          Jose MODERADOR: Esse Portugal é o do "Orgulhosamente sós". A elite de banqueiros, empresários, agrários feudais dos latifúndio e proprietários dos minifúndio de rendas em espécie protegidos pelo Estado Novo geraram a realidade que PP nos traz aqui. É essa elite que ainda hoje está nos processos em investigação, indiciada, arguida, acusada, julgada ou na cadeia após transitado em julgado. Essa elite não era recuperável. A ilusão de a recuperar, a converter à democracia revelou-se desastrosa. A luta dos democratas na sociedade, nas forças armadas, na Igreja católica acabou com o Império Colonial Fascista, acabou com o poder feudal dos agrários e dos fidalgos do minifúndio depois foi destruir economia com a outra ilusão de ser a Europa a trabalhar por nós. A pobreza mudou a cara, mas a desigualdade cresceu!          Manuel Ribeiro INICIANTE: Para muitos, mesmo muitos, a vida do século XX foi isto. A minha avó que viveu 96 anos e teve 11 filhos, contava a história de uma vez ter levado um filho doente, ao médico, nos braços, caminhando quase 40 kms.            Colete Amarelo EXPERIENTE: Depende de quem escreve. Um dos prazeres de ler ficção é que nos faz descobrir o que mais insuspeito existe na vida das personagens.        DNG. MODERADOR: Super doutor Pacheco... Em forma!         ipsolorem EXPERIENTE: O trabalho desenvolvido na ephemera é extraordinário. Que tenha força para o prosseguir e condições para o preservar.        Caetano Brandão EXPERIENTE: Mais uma vez é um prazer ler as crónicas de PP que lembra com profundidade e acutilância a realidade, muitas vezes aquela de que ninguém se lembra, neste caso dar "voz" a quem não é ouvido nem achado, de quem ninguém quer saber. Parabéns PP.           GMA EXPERIENTE: Caro Pacheco Pereira, um bom 2021 para si e para a sua Ephemera. Eu que nasci pela década de 50 numa pequena aldeia nas fraldas da Serra da Nogueira, bem posso transpor para lá as vivências de Alcântara. Filhos eram os que Deus desse, pregava ameaçador, o padre na missa de Domingo; os gritos lancinantes da Mavilde provocados pelo cancro mas transformados em coisas de bruxedo, ... Leio o seu texto e para além das memórias da miséria, da emigração e da guerra, ocorrem-me duas imagens metafóricas. A dos “Pobrezinhos”(tão engraçados / pedem esmolinha com mil cuidados / ...), dito pelo M. Viegas; a do “Véu de Ignorância” de que fala John Rawls (e outros antes dele), aqui não como aparato para alcançar um estádio de justiça política “razoável e racional”, mas ocultar o seu total contrário.

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