Dessas histórias tristes, que nos fazem sentir
emoções dolorosas como em “Les
Misérables” de V. Hugo, que são espelho de realidades vividas, ou colhidas do
quotidiano dos escritores que as observaram ou viveram. Apesar de tudo, não
julgo que seja o comum, tanta crueldade, mesmo nas aldeias esconsas, nos
recantos das serras, onde o amor, a alegria e a banalidade do viver quotidiano
se vão tecendo, de par, é certo, com bestialidades cometidas sobretudo pelos
seres machos portadores da autoridade que lhes dá a força viril. Nunca me
esqueço de um gato tinhoso que o nosso vizinho José da Palmira espetou com uma
forquilha, que várias vezes ergueu ao ar e bateu no chão, com o gato a
espernear e a miar até silenciar. Foi por altura dos meus seis ou sete anos e a
imagem de horror ainda hoje permanece na minha memória, de asco e revolta, mas
não vou culpar as pessoas que vivem do lado de lá, na cidade, por desconhecerem
tais casos dos horrores que chegam na documentação do arquivo de Pacheco Pereira. O que é necessário é que a justiça
funcione, e a educação também. Trabalhe-se, sim, para as difundir, com
autenticidade e sem os cinismos de uma falsa bondade, que resulta, sobretudo,
do desejo de responsabilizar os que vivem os seus próprios egoísmos, e os seus
próprios problemas. Do outro lado da cidade. Cabe ao Estado organizar-se
socialmente, impondo preceitos, e não contribuir para o falhanço destes. É
bonito expor tais casos, para nos elevarmos no conceito alheio. Mas José Pacheco Pereira não precisa
dessas demagogias para se superiorizar. Suponho que também é sensível aos demais
desastres e misérias que ocorrem por esse estranho mundo de contrastes.
OPINIÃO César e o cozinheiro
Estas vidas
que temos no arquivo, ferroviários, costureiras, operários industriais,
estivadores, são a nossa história, tanto mais real quanto menos escrita.
JOSÉ PACHECO PEREIRA PÚBLICO, 2 de Janeiro de 2021
Há
dias, numa intervenção que fiz numa cerimónia, citei um célebre poema de Bertold
Brecht, “Perguntas de um
Operário Letrado": "César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um
cozinheiro ao seu serviço?”
O
objectivo era referir-me ao Arquivo Ephemera que trata de César e do
cozinheiro, da grande história e da história invisível dos pequenos, da
multidão que faz o mundo em que vivemos como se não tivesse nome, nem
identidade. Na
sequência, recebemos pelo correio um conjunto de documentação e uma série de
notas manuscritas sobre uma família lisboeta das “classes populares” nos
últimos cem anos, retratando muitas das coisas desse quotidiano, da condição
feminina, da mortalidade infantil, da doença, da violência doméstica, da luta
contra a deficiência, a embriaguez, a tuberculose. Local: Alcântara, Lisboa,
uma zona pobre da cidade. Personagens: uma família muito numerosa, seis filhos
numa geração, oito na geração seguinte e “muitos outros que não chegaram a
nascer”. Profissões dos homens: empregados do comércio, carpinteiros,
ferroviários. Profissões das mulheres: “criada”, doméstica. Anos: dos anos
vinte a cinquenta do século XX.
Dos
oito filhos, dois nasceram cegos e viveram em asilos para cegos em Campo de
Ourique, o asilo Nossa Senhora da Saúde e o Asilo Escola António Feliciano de
Castilho. Um outro filho morreu de meningite com dois anos, outro de difteria
com seis e, por último, outro, com um ano, de sarampo e pneumonia. Parece uma
família especialmente vítima de desgraça, mas não, é o regulador natural
destas famílias numerosas e pobres, que viviam em péssimas condições de
habitação e salubridade. A heroína desta história é uma mulher, a
mãe dos oito filhos, que foi “forçada a casar” em 1924, presume-se porquê,
estava grávida e teve o seu primeiro filho poucos meses depois de casar. Os homens desta história verdadeira são de um
modo geral mais educados do que as mulheres, embora estejamos a falar da 2.ª ou
3.ª classe. Mas são “estroinas, boémios, mulherengos”, sem dinheiro e, por fim,
alcoólicos. Um deles, correspondendo também a um perfil comum nas “classes
populares” lisboetas destes anos, era “ateu” e do contra.
A violência doméstica fazia parte do quotidiano. Como o pai era ateu, nenhum dos filhos era
baptizado e, por isso, a mãe não conseguia obter a ajuda das instituições da
igreja. Um dia roubou umas moedas em casa e levou os filhos à igreja para os
baptizar. Quando do funeral de uma filha, ele descobre o averbamento do
baptizado e, nesse mesmo dia, dá uma “tareia” à sua mulher.
Depois há toda uma história sentida como sendo de humilhações. Por exemplo, o filho mais velho, cego de
nascença, teve que se apresentar à inspecção para a tropa. E lá foi, nu,
mostrar à evidência de que não podia ser apto… Ou a filha mais nova, que nos
ofereceu este espólio, e que relata a sua experiência na primária com uma
professora “gorda, feia e má” que batia nos alunos “agarrando pelos dedos para
baixo, o que fazia com que a reguada apanhasse o pulso cujas veias ficavam
inchadas”. Mas no espólio vem uma micro-história infantil, O Patinho Feio,
oferecida pela mesma professora com uma inscrição a um canto que dizia “por
saberes bem a lição”…
É
cómodo e fácil achar hoje que esta história ou histórias como esta são
pejorativamente vistas como sendo um “choradinho”, ou um daqueles fados da
desgraça, que também nestes anos eram vendidos em folhas volantes pelas feiras.
Estas pessoas viviam no centro da grande cidade, mas pouca gente das classes
médias ou altas, para usar estes eufemismos, passava por lá. Nestes
anos, vinte, trinta, quarenta do século XX, a pobreza urbana nas grandes
cidades Lisboa e Porto (nas “ilhas” do Porto, por exemplo…) era enorme, mas
estava acantonada fora da vista, fora da literatura, e fora dos jornais que só
visitavam os “bairros insalubres” quando estes se tornavam um perigo por causa
das epidemias. Na
verdade, estas vidas tinham como que um escudo invisível protegendo seu
interior e mesmo a mendicidade tendia a ser tratada como uma colecção de
“tipos” mais ou menos folclóricos.
Voltando ao cozinheiro, ou
melhor, aos “cozinheiros” que temos no arquivo, ferroviários, costureiras,
operários industriais, estivadores, são a nossa história, tanto mais real
quanto menos escrita.
Historiador
OPINIÃO HISTÓRIA POBREZA ALCÂNTARA ARQUIVOS
COMENTÁRIOS:
Daniel A. Seabra INICIANTE: Pacheco Pereira
dá assim mais um contributo (e são muitos) para um melhor conhecimento da
sociedade portuguesa. 03.01.2021 Maria Odete Vilas Coutinho MODERADOR: A situação estava
totalmente bloqueada, nessa época, e para essas classes ditas inferiores;
todas, repito, todas as cumplicidades se davam as mãos de modo eficaz e até
sereno. O 25 de Abril alterou tudo, mas muito se manteve sob outra encenação -
recordo um ensaio que li há anos, tipo documentário, que se chamava algo como
"Os Donos de Portugal", o qual defendia a tese de que as grandes
famílias continuam por aí, sob máscaras as mais diversas, e muito do que hoje
se vive reproduz, sob novíssimas capas, obviamente, as dominações desses tempos
que PP quis trazer até nós, neste começo de ano. Bem haja por isso! 02.01.2021 Jose MODERADOR: Esse Portugal é o
do "Orgulhosamente sós". A elite de banqueiros, empresários, agrários
feudais dos latifúndio e proprietários dos minifúndio de rendas em espécie
protegidos pelo Estado Novo geraram a realidade que PP nos traz aqui. É essa
elite que ainda hoje está nos processos em investigação, indiciada, arguida,
acusada, julgada ou na cadeia após transitado em julgado. Essa elite não era
recuperável. A ilusão de a recuperar, a converter à democracia revelou-se
desastrosa. A luta dos democratas na sociedade, nas forças armadas, na Igreja
católica acabou com o Império Colonial Fascista, acabou com o poder feudal dos
agrários e dos fidalgos do minifúndio depois foi destruir economia com a outra
ilusão de ser a Europa a trabalhar por nós. A pobreza mudou a cara, mas a
desigualdade cresceu!
Manuel Ribeiro INICIANTE: Para muitos, mesmo muitos, a vida do
século XX foi isto. A minha avó que viveu 96 anos e teve 11 filhos, contava a
história de uma vez ter levado um filho doente, ao médico, nos braços,
caminhando quase 40 kms.
Colete Amarelo EXPERIENTE: Depende de quem
escreve. Um dos prazeres de ler ficção é que nos faz descobrir o que mais
insuspeito existe na vida das personagens. DNG. MODERADOR: Super doutor
Pacheco... Em forma! ipsolorem EXPERIENTE: O trabalho
desenvolvido na ephemera é extraordinário. Que tenha força para o prosseguir e
condições para o preservar.
Caetano Brandão EXPERIENTE: Mais uma vez é um
prazer ler as crónicas de PP que lembra com profundidade e acutilância a
realidade, muitas vezes aquela de que ninguém se lembra, neste caso dar
"voz" a quem não é ouvido nem achado, de quem ninguém quer saber.
Parabéns PP. GMA EXPERIENTE: Caro Pacheco
Pereira, um bom 2021 para si e para a sua Ephemera. Eu que nasci pela década de
50 numa pequena aldeia nas fraldas da Serra da Nogueira, bem posso transpor
para lá as vivências de Alcântara. Filhos eram os que Deus desse, pregava
ameaçador, o padre na missa de Domingo; os gritos lancinantes da Mavilde
provocados pelo cancro mas transformados em coisas de bruxedo, ... Leio o seu
texto e para além das memórias da miséria, da emigração e da guerra, ocorrem-me
duas imagens metafóricas. A dos “Pobrezinhos”(tão engraçados / pedem esmolinha
com mil cuidados / ...), dito pelo M. Viegas; a do “Véu de Ignorância” de que
fala John Rawls (e outros antes dele), aqui não como aparato para alcançar um
estádio de justiça política “razoável e racional”, mas ocultar o seu total
contrário.
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