Mandou-me o Dr. Salles um site da Internet que historia os factos ligados ao parlamentarismo no seu primeiro aparecimento, juntamente com a primeira Constituição Portuguesa – a de 1822, criada por esse primeiro Parlamento, após a Revolução de 1820, iniciada no Porto. Gostei, naturalmente, de ler, sendo parco o meu conhecimento a respeito do acontecimento, de que a História, nos estudos escolares, se limitava, sobriamente, a referir a divisão dos poderes, embora seja mais eloquente a História dos estudantes destes tempos, que já informa sobre a necessidade de uma Constituição em moldes mais liberais. Num país sem rei (nem roque, para sermos mais precisos), refere-se a necessidade de repor a justiça, por via das más condições geradas por forte corrupção, segundo o parágrafo que transponho:
«Males
de toda a ordem se experimentam em todos os ramos da economia particular do
Estado, porque a ignorância, e a imoralidade tudo tinham contaminado,
corrompido tudo. Erros de séculos, e que por séculos haviam adquirido a força,
e o império dos hábitos, não podiam emendar-se em três meses. A corrupção
espalhada por todo o corpo político não podia debelar-se completamente sem
remédios lentos e gerais, porque o veneno atacara ao mesmo tempo toda a massa
do sangue, e todo o sistema vital.»
D. João VI veio, de
facto, jurar a Constituição, mas revogou-a
pouco tempo depois, como explica o texto da Internet: com o regresso de D. Miguel e a sua vitória de Vilafrancada, foi reposto o absolutismo, que as
lutas liberais vitoriosas do seu irmão D. Pedro IV - regressado do Brasil, tendo abdicado do governo deste
país a que dera a independência, a favor de seu filho - iriam finalmente eliminar.
O Dr. Salles enviou-me o texto sem a sua eficiente introdução. É claro
que se trata de um desafio malicioso, pois que a sua competência analítica e
crítica têm outra dimensão que de modo nenhum pretendo superar. Mas gostava de ler
o seu comentário ao texto que me enviou. Muito teria que referir, a respeito de
constância nos paralelismos, cá entre nós …
200 ANOS DE PARLAMENTO
O PRIMEIRO PARLAMENTO PORTUGUÊS
(1821)
Após
a sessão preparatória de 24 de Janeiro de 1821, a sessão inaugural das
Cortes Constituintes teve lugar
dois dias depois no Convento das Necessidades.
A
Revolução de 1820 esteve na origem do primeiro Parlamento
português, as Cortes Constituintes, tendo como missão primordial a elaboração de uma
Constituição. A intenção de convocar as Cortes pode ser constatada numa das
proclamações efectuadas no Porto no próprio dia da Revolução Liberal, a 24 de
agosto:
"Criemos
um governo provisório,
em quem confiemos. Ele
chame as Cortes, que sejam
o órgão da Nação, e elas preparem uma Constituição, que assegure os nossos
direitos."
As
eleições em Portugal Continental para a formação das Cortes
Constituintes, denominadas
Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa realizaram-se em Dezembro de 1820 e os trabalhos do primeiro
Parlamento português decorreram
entre 24 de Janeiro de 1821 e 4 de Novembro de 1822.
A Livraria
do Convento das Necessidades foi o local
escolhido para acolher as Cortes Constituintes.
As
obras de adaptação e decoração da sala para as suas novas funções realizaram-se
em apenas 45 dias, com três filas de cadeiras em forma de hemiciclo e a mesa da
Presidência no centro virada para os Deputados. O projecto inicial previa lugares para os 100
Deputados eleitos em Portugal
Continental, pelo que, com as posteriores eleições nos territórios
ultramarinos, as bancadas foram ampliadas.
Esta
assembleia constituinte, embora com a incumbência primeira de elaborar uma Constituição, designou desde logo um novo governo, a
Regência, substituindo a Junta
Provisional do Governo Supremo do Reino, que
tinha dirigido o país desde o triunfo da Revolução. Legislou
igualmente de forma soberana sobre os mais variados assuntos de natureza
política, económica e social e impôs ao Rei D. João VI o seu regresso do Brasil – onde se havia refugiado com a corte após as
invasões francesas - para prestar juramento das Bases da
Constituição.
Instituiu-se,
assim, o primeiro sistema de governo parlamentar controlado por uma assembleia
que viria a aprovar, em 23 de setembro, a Constituição de 1822.
Após
a sessão preparatória de 24 de Janeiro para verificação dos mandatos dos
Deputados, a sessão inaugural das Cortes Constituintes teve lugar dois dias
depois, pelas 14h30, na Livraria do Convento das Necessidades, conforme
descrito na acta da
reunião:
“Aos
26 dias do mês de Janeiro de 1821, nesta Cidade de Lisboa, Paço e Sala das
Cortes, reunidos os Senhores Deputados, cujos Diplomas e Poderes tinham sido
verificados e havidos por legais na Sessão Preparatória do dia 24; e,
achando-se presente em seus respectivos lugares a Junta Provisional do Governo
Supremo do Reino, e a Preparatória das Cortes, abriu-se a Sessão pelas duas
horas e meia da tarde”.
O Presidente
do Governo, Conde de Sampaio,
dirigiu-se aos 74 Deputados
presentes:
“Ilustres
Representantes da Nação Portuguesa: Chegou por fim o dia venturoso que os
Portugueses tão ansiosamente desejavam, e que vai a coroar seus ardentes votos,
e suas lisonjeiras esperanças; dia para sempre glorioso e memorável, que fará a
mais brilhante época na Historia da Monarquia (…) Em vossas mãos, Senhores, está ao presente a
sorte desta Magnânima Nação, a felicidade da nossa cara e comum Pátria. O
ilustrado zelo e patriotismo dos Portugueses a confiou à vossa virtude e
sabedoria: eles não se acharão enganados em sua escolha, nem serão iludidos em
suas esperanças".
Nesta
sessão, foi eleito Presidente das Cortes o Arcebispo da Baía e
Vice-Presidente Manuel Fernandes Tomás.
Conforme
descrito no Mnemosine
Constitucional de 29 de Janeiro de 1821, após a sessão "à noite
iluminou-se toda a cidade e no Real Teatro de S. Carlos houve um novo Elogio
Alegórico, em que apareceu copiado na cena o Palácio do Governo, na
frente do Palácio do Rossio, e no seu centro um magnífico arco triunfal
com o Retrato de S. Majestade, circulado desta legenda: Viva
El-rei, vivam as Cortes."
No
dia 30 de Janeiro,
o Presidente das Cortes Constituintes discursava a propósito do juramento dos
membros da Regência:
"Não
careço eu de instruir a Vossas Exas. sobre a importância dos deveres que hoje
contrairão, e de cujo cumprimento ficam devedores a toda a Nação desde o
momento em que, assumidos pela mais escrupulosa e acrisolada eleição para tão
alto e importante Emprego, se acham obrigados a pôr em uso toda a
desteridade, eficácia, incorruptibilidade, e mais virtudes que cumprem ao
Fiscal da Lei, e cujo desenvolvimento a Nação inteira espera de vossas luzes, e
bem notório honrado comportamento.
Bem
sabeis, Senhores, que a Lei, embora sábia, providente, e o melhor meditada para
conseguir o seu fim, [o] qual deve ser o bem comum da sociedade, que outro não
é senão a soma do bem possível de todos os indivíduos que a formam; que esta
Lei, digo, quando somente estampada ainda nos mais belos e nítidos caracteres,
mas sem a devida prática, é uma Lei, uma regra morta, silenciosa, inerte,
incapaz de conseguir seu grande fim; e que é somente o seu Fiscal, e activo
Promotor, que a vivifica, anima, e põe em saudável uso, para bem do todo, e
particular de cada um. Sem esta mola real, sem este princípio reanimante da
mais sábia legislação, toda ela seria, quando muito, o digno objecto da
admiração do Sábio, e do Filósofo no segredo do seu Gabinete, nunca porém, qual
cumpre, seria o fundamento da felicidade social, bem como a matéria de luz,
dormente e inútil, sem a presença do primeiro e luminoso astro, que a desperta,
e põe em doce movimento."
Na
reunião de 5
de Fevereiro de 1821, Manuel Fernandes Tomás concluiu a leitura do "Relatório
acerca do Estado Público de Portugal", que se mandou dar ao prelo:
“Senhores,
O dia 1.º de Outubro do ano de 1820, reunindo em um só os Governos Provisórios
do Porto e de Lisboa, marca em Portugal a época para sempre memorável, de
uma nova administração pública, encarregada
à Junta Provisional. Como
participante de seus honrosos trabalhos, e como órgão dela na Repartição do
Interior, e da Fazenda, cabe-me em sorte a obrigação de indicar-vos sua
conduta, na dificultosa tarefa de que foi incumbida. Lançarei ao mesmo
tempo para vossa informação uma vista rápida sobre o estado do reino, nestes
dois interessantíssimos objectos; e eu me consideraria feliz se pudesse fazer,
tão dignamente como devo a Vós, e à Nação que representais, esta breve mas
franca exposição, para a qual é indispensável que eu chame a vossa atenção.
As
causas, que produzirão nossa revolução venturosa, não são desconhecidas de um
só de nossos concidadãos, porque cada um, na parte que lhe tocava, sentia sobre
si o peso enorme das desgraças que afligiam Portugal; e nenhum deixa hoje de estar convencido de que era
chegado o último instante da existência política desta infeliz Pátria, se o
braço do Omnipotente, confundindo projectos insensatos, não arrancasse das
bordas do abismo tão precioso depósito, para o entregar à vossa guarda, e
vigilância.
Males de toda a ordem se experimentam em todos os ramos da economia
particular do Estado, porque a ignorância, e a imoralidade tudo tinham
contaminado, corrompido tudo. Erros de séculos, e que por séculos haviam
adquirido a força, e o império dos hábitos, não podiam emendar-se em três
meses. A corrupção espalhada por todo o corpo político não podia
debelar-se completamente sem remédios lentos e gerais, porque o veneno atacara
ao mesmo tempo toda a massa do sangue, e todo o sistema vital.
(…)
Sem
particular informação de cada um dos ramos da Administração, e sem meios de a
conseguir em tão curto espaço de tempo, não era seguro, nem conveniente
preferir um a outro objecto; porque em todos havia mais ou menos abusos, todos
precisavam de reforma, e de todos se faziam queixas. Mas estas queixas eram
pela maior parte da conduta de alguns Administradores. A opinião pública
se havia pronunciado decisivamente contra eles, designando-os como causa dos
males, que se experimentavam, e foi preciso respeitar a opinião publica, porque
os males existiam de facto, e via-se que as leis não eram observadas.
Achar
pronto um homem de conhecida moral, e ao mesmo tempo de bastantes luzes, para
ocupar o lugar daquele que era necessário remover, não parecia com efeito muito
fácil: mas era menos fácil ainda experimentado já nos negócios de que devia ser
encarregado; porque no antigo sistema de governar o merecimento o mais
distinto dava antes um título para ser perseguido, do que empregado. Os
homens mais dignos de servir a Pátria viviam por isso no retiro, e na
obscuridade. Para os conhecer devia passar tempo;
e a necessidade de remediar os abusos era tão instante, que obrigava a
aproveitar até os mais ligeiros momentos.
Tal
foi, Senhores, a origem das Comissões, que se criaram para diferentes ramos da
Administração pública. Este método pareceu com efeito o melhor, porque reúne
duplicadas vantagens. Reparte por muitos os cuidados e fadigas superiores às
forças de um só, porque os trabalhos devem crescer agora em proporção da
necessidade de fazer nas Repartições longas, e amiudados exames para vos serem
apresentados; dá ao mesmo tempo a esses trabalhos toda a notoriedade,
inspirando ao público esta confiança que é o mais seguro apoio dos Governos,
porque a Nação vê empregados nestes objectos os cidadãos mais conspícuos de
diversas classes, e mais distintos por sua probidade, e por seu amor à Pátria.
(…)
Quando um Governo, Senhores, trata os
interesses dos povos pelo modo que tendes ouvido, e que desgraçadamente é muito
verdadeiro, fazendo, ou consentindo que se façam males tão grandes, ninguém
poderá deixar de confessar que ele é um Governo mau: e em tal caso seria bem
admirável, que houvesse ainda quem se lembrasse de disputar à Nação o direito
de escolher, ou de fazer outro melhor."
No
dia 9 de março de 1821, as Cortes aprovaram as Bases da Constituição, documento
que sintetiza os princípios da Constituição que seria aprovada no ano seguinte.
O texto está dividido em secções:
I
–Dos direitos individuais do Cidadão, consagrando, em outros, os princípios da igualdade
perante a lei, da liberdade de expressão, da segurança e da propriedade
pessoais e instituindo o direito de petição.
II
– Da Nação Portuguesa, sua Religião,
Governo e Dinastia, que define a Nação Portuguesa como “a união de todos os
Portugueses de ambos os hemisférios”, a religião “Católica Apostólica Romana”
com religião oficial e a Casa de Bragança como dinastia reinante. “A soberania reside essencialmente na Nação”, que, através dos seus representantes eleitos
elabora a Constituição. As Bases da Constituição consagram a
divisão dos poderes legislativo (Cortes),
executivo (rei e ministros) e judiciário (juízes).
A 4
de julho de 1821, D. João VI desembarca em Lisboa, vindo do Brasil para onde transferira a corte em
1807. Nesse mesmo dia, com o povo a encher as ruas, o rei dirigiu-se ao Palácio
das Necessidades, onde teve
lugar o Acto de Juramento das Bases da Constituição, conforme descrito na acta da sessão:
“Às
cinco horas da tarde entrou na sala das Cortes S. Majestade precedido das duas
Deputações que lhe haviam sido enviadas, e acompanhado dos oficiais da sua
casa; e subiu imediatamente ao trono a ocupar a cadeira que lhe estava
destinada. Então, o senhor Presidente, acompanhado dos quatro senhores
Secretários, se dirigiu igualmente ao trono, levando um dos senhores
Secretários o livro dos santos Evangelhos; e sendo-lhe este apresentado pelo senhor presidente,
Sua Majestade, pondo a mão sobre ele, pronunciou o seguinte juramento:
Eu
D. João VI, pela graça de Deus, e pela Constituição, Rei do Reino Unido de
Portugal, Brasil, e Algarves, juro aos santos Evangelhos manter a Religião
Católica Apostólica Romana; observar, e fazer observar as Bases da Constituição
decretadas pelas Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação
Portuguesa, e a Constituição que elas fizerem e ser em tudo fiel à mesma Nação.
Ao
que acrescentou Sua Majestade:
Assim
o juro de todo o meu coração.
Por
se achar muito fatigado pronunciou Sua Majestade em voz mais baixa estas
memoráveis palavras, as quais não puderam por isso ser ouvidas de toda a
Assembleia; mas o foram distintamente pelos senhores Presidente, e Secretários,
e por alguns outros dos senhores Deputados que ficavam mais próximos ao trono.
O senhor Presidente informando o Congresso de tão atendível circunstância,
representou a necessidade de ser muito expressamente consignada na Acta; não só
para constar a toda a Nação, mas para ser pública à Europa e ao Mundo
inteiro a espontânea e cordial adesão com que Sua Majestade se rende aos votos
do Povo português.”
A elaboração da Constituição ocupou
um lugar central nos trabalhos do primeiro Parlamento português. No entanto, as Cortes, que contaram com 482 sessões
plenárias, registadas no primeiro jornal oficial parlamentar,
aprovaram ainda legislação sobre várias matérias de natureza política,
económica e social, como, por exemplo, a extinção das coutadas abertas, a abolição da Inquisição e dos chamados direitos banais “que formam privilégios
exclusivos contrários à liberdade dos cidadãos”, a amnistia aos presos por opiniões politicas e
a lei da liberdade de imprensa, que a par da questão do Brasil, marcou os debates parlamentares.
As
Cortes dedicaram-se ainda a regulamentar matérias mais comuns, como são
exemplo, a proibição da importação do azeite de oliveira e de
nabo, de produção estrangeira, por mar e por terra ou as normas para a utilização do laço nacional.
As
comissões parlamentares, criadas para tratar de matérias especializadas, são
também eco das preocupações comuns. Os requerimentos, petições, queixas
recebidos atestam a importância dada ao Parlamento pela população na resolução
dos seus problemas.
A 23 de Setembro de 1822, foi aprovada a
primeira Constituição portuguesa.
A
Constituição tem um curto proémio, no qual as Cortes afirmam a sua íntima convicção
de que as desgraças públicas, que “tanto têm oprimido e ainda oprimem [a Nação
Portuguesa], tiveram a sua origem no desprezo dos direitos do cidadão e no
esquecimento das leis fundamentais da Monarquia; e havendo outrossim
considerado que somente pelo restabelecimento destas leis, ampliadas e
reformadas, pode conseguir-se a prosperidade da mesma Nação e precaver-se que
ela não torne a cair no abismo, de que a salvou a heroica virtude de seus
filhos (…)”.
No
primeiro texto constitucional português ficaram consagrados os princípios
ligados aos ideais liberais da época: representação,
separação de poderes, igualdade jurídica e respeito pelos direitos pessoais.
Na
sequência da Revolta da
Vilafrancada, em maio
de 1823, liderada por D. Miguel,
e da nomeação de um novo Governo, D. João VI dissolveu as Cortes
e revogou a Constituição.
A Constituição de 1822 vigorou menos
de um ano, entre 23 de Setembro de 1822 e 3 de Junho de 1823. Na sequência da Revolução de Setembro, em 1836,
teria uma curta e quase simbólica segunda
vigência, de 10 de Setembro de 1836 a 4 de Abril de 1838, data do juramento da Constituição de 1838.
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