sábado, 9 de janeiro de 2021

Viu-se, viu-se


Considera Alberto Gonçalves, citando exemplos de anteriores “rapaziadas” mais serenamente referidas pela tal imprensa servil e sectária em que ela se tornou, A G aproveitando para lançar a sua diatribe contra o jornalismo prosélito dos nossos tempos de sectarismo virtuoso, destinado às lavagens aos cérebros, e não à expressão mais nobre de uma informação devidamente esclarecida. Todavia, há quem acuse AG de idêntico sectarismo na designação dos factos. Talvez sim, um pouco, ele é sobretudo um inteligente artista da palavra escrita na pintura dos costumes.

Desde 2020 que a América não via nada assim /premium

Lá e cá, os tumultos animados pelos apoiantes da dona Hillary foram tratados com pinças e compreensão. Já os apoiantes de Trump, além do próprio, são considerados abaixo de animais.

ALBERTO GONÇALVES

OBSERVADOR, 09 jan 2021

Conforme nos lembraram incontáveis especialistas, nunca, nunca, nunca se tinha visto um episódio como o de quarta-feira, em Washington, quando manifestantes favoráveis a Trump e incitados por este invadiram o Capitólio. Nunca, ou pelo menos desde 2016, quando uma quantidade imensamente superior de manifestantes invadiu as ruas de diversas cidades americanas com protestos pacíficos que envolveram tiroteios, pancadaria, fogo posto e destruição de propriedade alheia. Dado que a amnésia parece galopante, talvez valha a pena um desvio pelos tortuosos caminhos da memória.

“Milhares de pessoas estão a manifestar-se nas ruas de dezenas de cidades nos Estados Unidos.” (10 de Novembro de 2016) “Os protestos centram-se em cidades-bastião do Partido Democrata. Em cada cidade, os manifestantes, na sua maioria jovens, foram convocados por grupos sociais e políticos de Esquerda, em choque com a escolha de Donald Trump como novo Presidente, para rejeitar a eleição.” (10 de Novembro de 2016).      A manifestação de Portland, uma das maiores do país, adquiriu tons violentos quando pessoas encapuzadas causaram danos a veículos e lojas.” (11 de Novembro)    “A vitória de Donald Trump, na noite de terça-feira contra a candidata democrata, Hillary Clinton, tem levado desde então milhares de manifestantes a saírem à rua em protesto em várias cidades norte-americanas. Apesar de a maioria dos protestos ser descrita como pacífica, as autoridades disseram que alguns tornaram-se violentos, tendo resultado em danos de propriedade.” (13 de Novembro de 2016)      O presidente dos EUA, Donald Trump, tomou posse nesta sexta-feira no meio de violentos protestos em Washington.” (20 de Janeiro de 2017)        Em Washington, mais de 200 pessoas foram detidas após horas de incidentes.” (20 de Janeiro de 2017)

Etc., etc., etc., e nem menciono os pandemónios chegados ao auge em 2020. De um lado, temos uma grotesca tentativa de assalto ao Capitólio que se resolveu em poucas horas, infelizmente com vítimas, felizmente sem grandes danos materiais. Do outro, tivemos um processo de contestação organizada, furiosa, subvencionada e demolidora que durou anos, com vastos danos físicos e sobretudo materiais. Imaginem qual dos eventos mereceu a tolerância e até a simpatia dos “media”, para não referir o entusiasmo quase sexual do enviado da SIC aos EUA. Não é um exercício complicado. Terá sido porque, ao contrário do irresponsável Trump, a dona Hillary jamais apelou à baderna? Vejamos: “‘Lutem pela América’, pediu a ex-candidata democrata à presidência” (17 de Novembro de 2016). Pois, se calhar não é isso.

Se calhar, cá e lá e em toda a parte, é apenas porque o jornalismo abdicou de informar e passou a difundir  os estados de alma dos seus praticantes. Não é a questão das “fake-news” (estrangeiro para “notícias falsas”): é a necessidade de enfeitar as notícias com doses fortíssimas de sentimento, para cúmulo um sentimento comum, monolítico, impositivo, alucinado e falsamente “progressista”, a que ninguém deve fugir sob pena de excomunhão. Lá e cá, os tumultos animados pelos apoiantes da dona Hillary foram tratados com pinças e compreensão. Os apoiantes de Trump, além do próprio, são considerados abaixo de animais. Não cabe aqui discutir a influência desta discriminação na dita radicalização da sociedade americana, em que metade dos cidadãos despreza sinceramente a metade restante, e em que só uma das metades determina o “espírito da época”. A radicalização não é inédita e a América, país de que gosto muito, saberá, espero, lidar com ela.

Não estou tão optimista sobre o futuro do jornalismo, actividade de que gostei bastante. Em determinada altura, cuja data não sei precisar, o jornalismo decidiu que a sua função consistia em mudar o mundo para melhor. Para já, conseguiu mudar o jornalismo para pior, bastante pior. Quanto ao mundo, é duvidoso que uma agenda” anti-capitalista, embalada por “ideais” caducos, por fundamentos opressores e por um culto da “sensibilidade”, do primarismo mental, da ofensa fácil e da divisão social conduza ao paraíso prometido. Desgraçadamente, por má-fé ou pura idiotia, é nesta miséria que a informação se transformou: um instrumento de doutrina ao serviço do atraso de vida. Claro que há excepções, e a circunstância de me permitirem escrever isto prova-o. O problema é a regra.

E a regra suscita uma pergunta sem resposta: o “jornalismo” que em geral hoje se pratica procura infantilizar ou, para efeitos de sobrevivência, adaptou-se a um público infantilizado? A primeira hipótese é velhaca, a segunda é triste. Ambas conduzem uma profissão outrora indispensável pelos caminhos da irrelevância. Se o objectivo é estimular paixão e irracionalidade, as “redes” já o fazem com empenho. É evidente que a actuação de Trump foi vergonhosa. Mas vergonha maior, caso a tivessem, é a dos que alertaram para a gravidade do recente esboço de golpe, depois de justificarem sem escrúpulos os esforços golpistas dos democratas em 2016– e, de facto, em 2017, 2018, 2019 e 2020. Em democracia, a legitimidade de semelhantes palhaçadas é sempre, sempre, sempre nula, nula como o “jornalismo” que não o admite.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA  AMÉRICA  MUNDO

COMENTÁRIOS:

Miguel Sanches: Aquando da recente destruição e pilhagem das melhores lojas de Manhattan, pelos rapazes do Black Lives Matter e dos Antifa, verdadeiros "democratas" apoiantes do sr. Biden, alguém ouviu uma condenação pública dos ditos actos por parte do agora presidente eleito? Eu sei que os dois actos são diferentes no significado político, mas não deixam de ser iguais no vandalismo, logo, na violação da lei JB Dias: Tem toda a razão do Mundo o cronista. Não se trata de justificar disparates com outros disparates, como alguns insistem em afirmar, mas apenas, e só, de colocar o acento tónico na gigantesca falta de isenção, no absurdo facciosismo e na inaceitável manipulação com que disparates de igual calibre são tratados. Começou-se por misturar informação com entretenimento para se avançar decididamente na sua transformação em sessões de propaganda e promoção de ideologias e/ou perspectivas pessoais dos seus promotores. Costa Ribas é um exemplo que só não vê quem não quer mas muito bem iria a coisa de fosse a excepção a confirmar uma regra que se exigiria de isenção e factualidade. Muito do que hoje assisto em todo o tipo de órgãos que se afirmam ainda como de informação não se distingue já dos comentários dos "jose marias" que por aqui e por todo o lado vão vendendo o que lhe convém - ou aos que lhes pagam para tal - ou o que gostariam que tivesse sido em relatos, por vezes alucinantes, de "realidades" alternativas.         André Ondine: Quando Alberto Gonçalves acerta (e, na minha opinião, acerta quase sempre) é assertivo, mordaz, corajoso e perspicaz, talvez como nenhum outro comentador do vasto painel de pensadores que habitam o nosso espaço mediático. Mas quando não acerta (e isso é sempre subjectivo à opinião de cada um) também o faz com estrondo. E, esta semana, julgo que não acerta. É evidente que, por estes dias, o espaço dos leitores deste jornal está cheio de adeptos de Trump e de Ventura. Que defendem os ídolos utilizando as mesmas tácticas de bullying e humilhação contra aqueles que ousam ter opinião diferente (estratégia, aliás, também muito amiga do nosso querido Habilidoso). Por isso, é natural que este texto de AG tenha fervorosos apoiantes e ainda mais fervorosas críticas a quem discordar. Hoje, não estou de acordo com AG. Normalizar Trump é normalizar uma aberração. Relativizar o que se passou no Capitólio, mesmo comparando com exemplos também lamentáveis, é relativizar comportamentos selvagens e primitivos que podem ter consequências trágicas. Como comparar com 2016? Na essência, foi tudo diferente. Trump, cavalgando mentiras convenientes, apelou, em discursos inflamados, aos instintos mais básicos e selvagens dos seus apoiantes mais fanáticos. No discurso de dia 6, praticamente apelou ao ataque ao Capitólio. Promoveu aquele ataque indescritível e demorou a condená-lo (e só o fez sabe-se lá a troco de quê). Como comparar? Onde estão os discursos de Hillary a apelar à revolução (palavra muito usada pelos cavalheiros que atacaram o Capitólio)? Não é comparável. Também não gosto deste novo jornalismo activista que nos quer ensinar a viver de acordo com o novo politicamente correto, mas parece-me um exagero dizer que o jornalismo ignorou o que se passou em 2016 e empolou o ataque ao Capitólio. A violência é sempre condenável. A de 2016 e a de agora. São comportamentos inaceitáveis. Mas não posso concordar com AG nesta comparação e memorização o que se passou no Capitólio. Aquilo aconteceu promovido pelas palavras e tweets incendiários de Trump, dos seus filhos e do seu advogado. O que se passou de condenável em 2016 (e passou-se muito) não pode servir para normalizar, desculpar ou minimizar o ataque ao Parlamento de anteontem. Desculpar actos ignóbeis indo buscar outros actos ignóbeis é inconsequente e impede análises mais rigorosas e justas.        Elisabete Carvalho > André Ondine: Caro comentador, creio que lhe está a escapar muita informação, o que não é difícil de obter por enquanto. Só se poderá formular uma opinião concreta depois de se questionar o que é veiculado pelos MSM. Dá trabalho, mas vale a pena.                Dusclaimer: NÃO sou "apoiadora" do Sr. Trump, nem um pouco, pois creio saber qual é a sua própria "agenda", a qual também "dispenso". Mas é fundamental conhecer a "outra", e verificar TUDO o que falta conhecer. Pensar que Biden vai "liderar" os States é como achar que o Pai Natal existe. E que o teatro ontem montado, e há muito "previsto", é "normal", e não uma peça de (mau) teatro, como disse atrás. Shakespeare dizia, numa das suas obras, que: "Há mais entre o céu e a terra, Horácio, do que a tua filosofia pode imaginar." Cito de memória, por isso poderá ser uma tradução não "ipsis literis". Também poderá pesquisar. Isto é GLOBAL, e será difícil reverter a menos que haja uma massa crítica suficiente com coragem e discernimento para o fazer. Do que, sincera e infelizmente, duvido. Os "meninos jornalistas" também se deveriam informar melhor do que os espera, a não ser que achem que não lhes vai bater à porta. Para o AG, vá aguentando neste "jornal" até poder. Em breve vai ter que "desistir", se não aceitar um "problema de... escoliose"... Está tudo "a prazo". Mesmo para os "-istas"... Só não fale mais das "vacinas", AG, por favor...          Maria L Gingeira: Esta crónica impunha-se. Estou-lhe imensamente grata porque chego a pensar que me tornei “do contra” porque vejo um mundo às avessas. Do jornalismo nem se fala. Faz-se interpretação de factos, de imagens e até das declarações de cada um. Inventa-se. Manipula-se. Por vezes acho que tudo o que aprendi nesta profissão foi subvertido. Mas sei reconhecer também, em raros momentos como o que me proporcionou esta análise lúcida, rigorosa e contra a corrente, que o jornalismo é de facto algo muito bom. É um exercício de liberdade.

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