quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Por isso repomos o Archie


Bunker, deUma Família às direitas”, (como traduzimos All in the Familly”), que mais uma vez a TV Memória retoma, a fazer-nos rir e a lembrar-nos o tal mundo criado para preservarmos a satisfação e o culto do ego masculino, cada macaco no seu galho, como convém a uma sociedade ordeira. Por cá, temos os programas femininos nos três canais da sensibilidade, do amor e da alegria, e esses nos bastam para irmos deglutindo ideias e pratos suficientes para nossa ilustração e apetite. Tão arredios andamos da cultura, que bons programas instrutivos são apresentados furtivamente no segundo canal, que não conta para a luta por audiências, que o primeiro canal perderia, caso fosse ele a apresentá-los.

Contentemo-nos, pois, com as aparições esporádicas femininas, em programas como “Barca do Inferno” que foi um exemplo da falta de harmonia feminina, embora aprazível, que eu gostava de ver. Manuela Ferreira Leite parece-me a pessoa mais segura e calma, sem requebros vedetistas e com bastante segurança de conhecimento político para representar o elenco feminino português na discussão política. Gosto de ouvir Clara Ferreira Alves no seu grupo meio faceto do “Eixo do Mal”, mas julgo que perderia em outras circunstâncias de debate político. Mas talvez esteja enganada e  Maria João Marques faz muito bem em puxar a brasa à sua sardinha. Precisamos de uma juventude esforçada e atenta e conhecedora das realidades do mundo. Sem parti pris, todavia.

OPINIÃO

As televisões também não gostam de batom

A decisão editorial das televisões de supressão de opiniões femininas na noite eleitoral é mais sexista e daninha que qualquer insulto de Ventura.

MARIA JOÃO MARQUES

PÚBLICO, 27 de Janeiro de 2021

No período eleitoral das presidenciais assistimos a um caso paradigmático, digno de constar nos livros, de misoginia. Não, não me refiro à boçalidade do candidato Ventura com o batom de Marisa Matias. Muito pior. Trata-se daquele machismo insidioso, mais silencioso e eficaz: as três estações televisivas generalistas excluíram as mulheres de opinar sobre a noite eleitoral, assim efectivamente calando a voz de metade da população à volta de uma eleição importante para o país.

Na SIC esteve uma mulher antes das primeiras projecções: Marina Costa Lobo. Na RTP, ao fim da noite, depois de toda a gente ter ido dormir, Luísa Meireles e Graça Franco. Nas três horas do horário nobre da noite eleitoral, a única opinadora avistada foi Manuela Ferreira Leite na TVI. Homens para este período? Onze. Onze homens para uma mulher comentando nas televisões.

A decisão editorial das televisões de supressão de opiniões femininas na noite eleitoral é mais sexista e daninha que qualquer insulto de Ventura. (E, de resto, quando estes surgem, estão amparados e reforçados pelo ambiente que as televisões criam.) Retira as mulheres do espaço público. Remete-as para a invisibilidade que lhes foi destinada por séculos. Dá informação da política como assunto e domínio masculino, onde as mulheres são intrusas – dediquem-se à casa e aos filhos, se faz favor. E, igualmente mau, estabelece a narrativa das eleições só dos pontos de vista masculinos.

Um exemplo? Ouvi várias vezes que a votação em Ventura significava vontade de mudança (e de toda a gente, nem só da pequena parte que nele votou). Bom, penso que um homem inteligente, se olhar para a floresta em vez de somente para a árvore, percebe que votar em alguém do partido Chega não é nada disso. Em todo o caso, qualquer mulher, negro, gay, imigrante asiático, etc., comentaria o óbvio: Ventura é o contrário da vontade de mudança; é, na verdade, a recusa da mudança e a tentativa da reversão da mudança.

Esta exclusão das mulheres não foi infeliz acaso. Já noutras noites eleitorais aconteceu igual. Nas noites quotidianas, o mesmo. Os espaços de comentário individual, nos canais generalistas, estão a cargo de homens (mais Manuela Ferreira Leite). Há vários entregues a pessoas tão frescas que me recordo a vida toda, desde criança, de as ver nas televisões.

O comentário político em grupo em painéis fixos nos canais de notícias também é masculino. Há vários programas só com homens. Nenhum só com mulheres – o que dá ideia de como piorou e se insere na mesma tendência de surgimento de um Chega que tem como alvos os direitos das mulheres. Há umas décadas existiam. Lembro-me, por exemplo, do “Frou-frou”, em horário nobre da RTP. Várias mulheres entrevistando um convidado e com espaço de opinião para cada uma. Agora, nos melhores casos, temos uma mulher (para parecer inclusivo) ao lado de dois, três, quatro comentadores masculinos. Paritário na opinião temos "O Último Apaga a Luz “(RTP3) e não me recordo de mais.

Rita Figueiras publicou há anos um livro sobre comentário político em Portugal. Concluiu que, de 2000 até 2015, do total de comentadores políticos televisivos, somente 18% foram mulheres. Menos de cinquenta mulheres em quinze anos nas várias televisões.

A exclusão da voz das mulheres não é vício só português, se bem que por cá se pratique em doses cavalares. Há uma enorme dificuldade – no alegadamente igualitário mundo ocidental – com a voz própria, a agenda e a independência de pensamento das mulheres. A receita mais fácil e eficaz é nem dar oportunidade para mulheres falarem com visibilidade.

Mary Beard escreveu há uns anos um livro essencial: Mulheres & Poder, Um Manifesto. Na primeira parte, dedica-se a ilustrar os literais ataques de pânico que o mundo tem de cada vez que as mulheres falam e querem dizer coisas publicamente e ter voz própria. Vêm desde a Antiguidade (a autora é classicista de Cambridge) e ainda se mantêm com irritante semelhança. Recomendo enfaticamente o livro a todos os membros das direcções de informação das televisões.

Um estudo de 2016, “Women Are More Seen Than Heard in Online Newspapers", partindo de uma análise a grande número de artigos dos sites jornalísticos de língua inglesa, concluiu que os homens dominam tanto no corpo dos textos (ao tom de 77% das vezes) como nas imagens (69%). Quando aparecem, as mulheres são normalmente colocadas nas imagens, mas mais raramente como objecto das notícias. O estudo refere a ideia de as mulheres serem ‘simbolicamente aniquiladas’ nas notícias.

Segundo o longo relatório sobre igualdade de género nos media informativos, “Who Makes the News", da Global Media Monitoring Project, em 2015 somente 19% dos especialistas ouvidos nas notícias em todo o mundo eram mulheres. A Europa fica atrás da América Latina.

A estratégia de manter mulheres arredadas da visibilidade pública é global. Mas tal não serve de desculpa para as televisões portuguesas. Nem para legisladores nem tutela política. Afinal, pensava eu, a igualdade de género (que inclui a igualdade de oportunidades) é um pilar dentro dos valores do Estado português, que cabe aos responsáveis políticos zelar que seja cumprido. A Conferência de Beijing, em 1995, em que Portugal participou, declarou os media como uma prioridade para alcançar os direitos humanos das mulheres.

Ora a RTP é uma estação pública, sustentada por taxas pagas por toda a gente obrigatoriamente, incluindo pela metade da população feminina. Se a RTP se torna afinal um agente da supressão da voz das mulheres, então ou tem de ser extinta ou, melhor, legisladores e tutela política explicam, com desenho, à administração e direcções da RTP que têm especiais obrigações de representatividade de toda a população. E, de seguida, monitorizam e exigem responsabilidades pelo produto final.

E a SIC e TVI têm licenças (e legislação) que as obrigam, por exemplo, a passar tempos de antena, em troca do uso das ondas de rádio (bens públicos) para a difusão dos seus programas. Não vejo como atentar contra os direitos de participação na vida democrática (que não se esgotam só nas listas eleitorais) de metade da população possa fazer parte do contrato de licenciamento.

Televisões, governo, legisladores, Presidente da República – todos estão notificados para não continuarem com a supressão da participação feminina plena no debate público. E os homens que participam alegremente em painéis exclusivamente masculinos têm obrigação moral de não aceitarem mais convites nestes moldes.

Economista

TÓPICOS

IGUALDADE DE GÉNERO  TELEVISÃO  MULHERES  PRESIDENCIAIS 2021  ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS  MEDIA  PORTUGAL

COMENTÁRIOS

1comentador.1040321 INICIANTE: Maria João Marques tem razão: este tipo de misoginia é discreto e extraordinariamente eficaz. Sejam eleições, seja a pandemia chamam-se os homens para discorrer sobre o assunto porque não se atribui às mulheres competência para falar sobre estes assuntos.

 

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