Um texto estranho de um homem
progressivamente estranho – para mim, pelo menos. Quando foi do caso Pedro Passos Coelho, fraudulentamente despojado de um
governo cujas eleições ganhara, o socialista Francisco Assis, condenara - lembro-me bem – a atitude usurpadora do
seu partido e do seu chefe Costa. Era um homem sábio, que eu costumava ouvir
com apreço nos debates, educado sempre, para mais, o que comprovou na altura em
que o seu partido fraudulentamente se instalara no poder e isso ainda repugnara
ao seu sentido de hombridade e nobreza. Entretanto, lá nas Europas, creio,
ganhou novas forças de uma ideologia menos drástica e adaptável aos sofismas de
um governo de geringonça e ei-lo que se acomodou. É um homem culto, não há
dúvida, e hoje toma o partido da esquerda, na questão da Catalunha, pugnando pela separação desta e
acolitando-se ao reconhecido valor literário e filosófico de um homem político
e lutador, hoje trazido à ribalta de um filme chileno. O que me espanta é,
sobretudo, o despojamento de Francisco
Assis, que se serve de um episódio entre um nacionalista defensor acérrimo
da unidade de Espanha, atacando os que pediam a independência do País Basco e
da Catalunha, em 1936, (tendo assim contribuído para a prisão de Unamuno, pela
exaltada resposta deste, como nos conta Francisco Assis, o que a Internet
confirma), para defender o separatismo que hoje a Catalunha exige. O que me
parece é que Francisco Assis deseja com este seu texto, revelar a sua
exuberante modernidade, apoiando o tal separatismo, que não convence,
naturalmente, os nacionalistas espanhóis. Nem se compreende o período seguinte
do seu texto, pois não é óbvio que o progresso de um povo dê lugar à falta de sentimento
nacional desse povo. Porque cá por casa isso aconteceu - mas, enfim, sempre havia
litorais distantes a separar-nos - o mesmo não acontece na Espanha coesa,
embora cá como lá também dos
Portugueses/ Alguns traidores houve algumas vezes". Diz, pois FA
e isso não me parece óbvio: «Olhando
para a sociedade espanhola somos levados a constatar um importante paradoxo.
Por um lado, foi uma das sociedades que mais se modernizou, se liberalizou e se
democratizou no contexto europeu nos últimos quarenta anos; por outro lado,
revela imensa dificuldade em libertar-se de sectarismos atávicos e de superar
antinomias desactualizadas.»
Não, não me parece óbvio, o que se vê
hoje até, é os países gostarem de alargar os seus domínios, (não por amor
pátrio , é certo, mas por ambição tramada, o que Trump exemplifica, despudorado
que é). Mas aceitar que uma nobre Espanha se desfaça de uma parte do seu
território, conquistado outrora e sucessivamente … Volto a citar o nosso Camões:
Canto
III
17
«Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio e glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A Fortuna inquieta pôr-lhe noda
Que lha não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.
«Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio e glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A Fortuna inquieta pôr-lhe noda
Que lha não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.
OPINIÃO
“Vencereis mas não convencereis“
Nos últimos anos viveram-se em Espanha
tempos de radicalismo retórico e de acentuação excessiva de clivagens políticas
e doutrinárias. Todos os partidos concorreram para que tal tivesse sucedido.
Talvez seja a hora de recuperarem algum sentido de moderação.
PÚBLICO, 3 de Outubro de 2019
“Vencereis mas não convencereis. Porque convencer significa persuadir e
para persuadir necessitais de algo que vos falta nesta luta: razão e direito”. Não é certo que Miguel
de Unamuno tenha
proferido exactamente estas afirmações no célebre confronto com José
Millán-Astray ocorrido a 12
de Outubro de 1936 na Universidade de Salamanca. Isso, porém, é de somenos
importância, já que o que conta não é o absoluto respeito pela literalidade do
que terá sido pronunciado, mas antes a plena apreensão do espírito e do
sentido de um conjunto de frases destinadas a projectarem-se na História.
Por
estes dias a Espanha regressa a um tempo e a um espaço trágicos e à contemplação
de um homem superior. Fá-lo através de um filme de um realizador de origem
chilena, Alejandro Amenábar, intitulado Mientras
dure la guerra. O filme
trata dos últimos meses da vida de Miguel de Unamuno que
decorrem no contexto da Guerra Civil espanhola. O episódio acima
referido foi um dos mais marcantes desse sombrio período histórico espanhol.
Unamuno
era reitor da Universidade de Salamanca
e presidia a um acto académico que coincidia com a celebração da Festa da Raça. O ambiente era de grande tensão. A dada altura um
dos oradores, catedrático de Literatura naquela Universidade, desferiu violentos
ataques contra a Catalunha e o País Basco, bem como a todos quantos não
compartilhavam os propósitos do movimento subversivo fascista, apelidando-os de
“anti-Espanha”.
Unamuno, perante tais palavras, ter-se-á levantado e
manifestado a sua viva oposição às mesmas. Terá sido nessa altura que
Millán-Astray terá pedido permissão para falar e, no meio de uma enorme
confusão, terá gritado “morram os intelectuais! Viva a morte! “. Unamuno,
dando provas de uma extraordinária coragem, não terá interrompido o seu
discurso e terá ousado mesmo imprecar frontalmente o Chefe da Legião.
Foram-lhe
atribuídas as seguintes palavras que merecem ser citadas: “Acabo de ouvir o
grito de “Viva a morte! “. ( … ) O General Millán-Astray é um inválido de
guerra. Podemos dizê-lo sem usar um tom mais suave. Também o foi Cervantes. Mas
os extremos não se tocam nem nos servem de norma. Desgraçadamente, há hoje
demasiados inválidos em Espanha e brevemente haverá ainda mais, se Deus nos não
ajudar. Causa-me dor pensar que o General Millán-Astray possa ditar normas de
psicologia às massas. Um inválido que careça da grandeza espiritual de
Cervantes sentir-se-á reconfortado ao observar o aumento do número de mutilados
à sua volta. O General Millán-Astray não é um espírito selecto: quer criar uma
Espanha nova à sua própria imagem. Deseja ver uma Espanha mutilada. “Esta
foi a versão que passou à História pelas mãos de Portillo Pérez, um professor
de Direito amigo de Miguel de Unamuno. Os dois principais biógrafos deste
último, o casal francês Jean-Claude e Colette Rabaté, admitem que possa
haver alguma discrepância com a realidade mas salientam o carácter excepcional
daquilo que foi proferido, já que levou ao imediato saneamento de Unamuno de
todos os cargos cívicos e políticos que desempenhava. O grande
intelectual espanhol, ibérico e europeu morreria poucos meses depois.
É
uma Espanha de novo profundamente dividida, preparada para ir a eleições
legislativas pela quarta vez em dois anos, prestes a transferir os
restos mortais do velho ditador para um cemitério comum e
ansiosamente à espera da publicação das sentenças a aplicar aos ex-governantes
catalães, aquela que, através do cinema, recorda e celebra um dos seus
espíritos maiores, Miguel de Unamuno. Ignoro se as novas gerações
espanholas lêem o antigo reitor de Salamanca e se o seu notável magistério
moral e intelectual ainda exerce alguma influência no país vizinho. Por isso
mesmo é importante que este filme gere polémica e instigue a discussão
crítica.
Olhando
para a sociedade espanhola somos levados a constatar um importante paradoxo.
Por um lado, foi uma das sociedades que mais se modernizou, se liberalizou e se
democratizou no contexto europeu nos últimos quarenta anos; por outro lado,
revela imensa dificuldade em libertar-se de sectarismos atávicos e de superar
antinomias desactualizadas. Este paradoxo não aponta para a ideia de
duas Espanhas, mas sim para a representação de uma Espanha ainda demasiado
enredada na contemplação das suas tragédias contemporâneas. É verdade que
nenhum povo consegue expurgar em absoluto a dimensão trágica do seu percurso
existencial. Nem nenhum povo, nem sequer nenhum indivíduo, como nos recorda
o próprio Miguel de Unamuno numa das suas obras maiores, Do Sentimento Trágico da
Vida.
Olhando para a sociedade espanhola
somos levados a constatar um importante paradoxo. Por um lado, foi uma das
sociedades que mais se modernizou, se liberalizou e se democratizou no contexto
europeu nos últimos quarenta anos; por outro lado, revela imensa dificuldade em
libertar-se de sectarismos atávicos e de superar antinomias desactualizadas.
Daqui a menos
de um mês os espanhóis terão um novo parlamento. Não se auguram
significativas mudanças. Muito provavelmente o PSOE ganhará sem maioria
absoluta; a esquerda radical recuará um pouco; a direita, na sua diversidade,
manterá mais ou menos a mesma votação. Ao fim de quatro eleições não será possível
continuar a ignorar a evidência: a Espanha precisa de um novo “Pacto
de Moncloa”. Há hoje
quem acuse esse pacto histórico, alcançado no dealbar da democracia, de tudo e
mais alguma coisa. Não creio que lhes assista qualquer tipo de razão.
Esse pacto foi essencial, no seu tempo, para a consolidação do novo regime e
para a aproximação do país ao projecto europeu.
Nos
últimos anos viveram-se tempos de radicalismo retórico e de acentuação
excessiva de clivagens políticas e doutrinárias. Todos os partidos concorreram
para que tal tivesse sucedido. Talvez seja a hora de recuperarem algum sentido
de moderação. A responsabilidade maior nesse esforço caberá, sem dúvida, ao
PSOE, dada a enorme possibilidade de ganhar as eleições. Pedro Sanchéz já o
terá percebido e assumido.
O
homem que se apresentava como mais genuinamente de esquerda que os seus
antecessores, o paladino de uma suposta pureza ideológica, o líder que se
propunha a todo custo governar com o apoio da extrema-esquerda espanhola, deu
lugar a um político de recorte centrista, aberto ao diálogo com múltiplos
sectores da sociedade espanhola. Há, aliás, um momento paradigmático desta
metamorfose: foi quando Sanchéz disse que não dormiria tranquilo se tivesse o
Podemos a governar com ele. Creio que está tudo dito.
Militante
do PS
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