Todos têm o direito de descansar,
coitados. Dias seguidos a percorrer sítios e a debitar sentenças … Foi um bom
dia para todos, tenho a certeza.
O dia em que somos tratados
como bebés
A forma como vivemos o dia de reflexão é
um absurdo, um arcaísmo herdado dos dias da revolução. O black-out informativo
deste sábado é uma forma de infantilizar os eleitores e menorizar o jornalismo.
JOSÉ MANUEL FERNANDES, Publisher
e colunista do Observador
OBSERVADOR, 05 oct 2019
Hoje é dia de reflexão.
E como é dia de reflexão regressamos todos,
colectivamente, à condição infantil de eleitor manipulável à guarda dessa
vigilante severa que é a Comissão Nacional de Eleições. Hoje, neste sagrado dia
de reflexão, manda a ortodoxia e estabelecem as normas vigentes que o país
entra em black-out. Não, não é bem apenas black-out: é como que fechado numa
mina funda, sem luz e sem som, de forma a que não lhe chegue qualquer sinal do
que se passou nos dias, semanas e meses que terminaram às 24 horas de
sexta-feira.
Hoje,
sacrossanto dia de reflexão, temos de reflectir sobre o que não pode ser
noticiado, relatado, mostrado, divulgado, investigado ou comentado. Tudo porque
no entendimento vigente ao fim da campanha eleitoral também corresponde o fim
de qualquer referência noticiosa a essa mesma campanha eleitoral.
Estamos
perante um absurdo, um arcaísmo herdado do cuidado com que foram feitas as leis
para as primeiras eleições depois do 25 de Abril – há mais de 44 anos –, uma
prática em tudo desajustada dos dias que correm.
Compreende-se
que exista um dia de pausa entre o fim das campanhas e a ida às urnas, um
espaço de respiração entre o frenesim das “arruadas” e demais folclore cada vez
mais desajustado deste tempo que vivemos e o domingo em que a maioria dos
cidadãos vota. Pelo menos compreende-se enquanto mantivermos esta forma de
votar. Mas é completamente disparatada a imposição do silêncio mediático total
que é imposta por uma leitura dogmática do artigo 61º da Lei Eleitoral, que
define o que é propaganda eleitoral. Diz então esse artigo que “Entende-se por
propaganda eleitoral toda a actividade que vise directa ou indirectamente
promover candidaturas (…), nomeadamente a publicação de textos ou imagens que
exprimam ou reproduzam o conteúdo dessa actividade.” Na leitura da Comissão
Nacional de Eleições, que tem feito lei e jurisprudência nas últimas décadas, o
jornalismo também é propaganda pois reproduz por textos e imagens (e já agora
também sons) o conteúdo das campanhas eleitorais. Em consequência dessa leitura
absurda, nenhum jornal em papel pode este sábado imprimir uma linha que seja
sobre a campanha, nenhuma rádio ou televisão pode estar a dar conta do que se
passou nas últimas horas da campanha e nas publicações online, como o
Observador, tivemos de proceder, à passagem da meia-noite, à ridícula tarefa de
retirar da nossa homepage todas as notícias, reportagens, comentários,
opiniões, especiais, fact-check e tutti quanti que se relacionasse com a
campanha, ou pudesse ser com ela relacionado, uma diligência pueril pois nenhum
desses trabalhos desapareceu do nosso site ou deixou de estar à distância de um
click de qualquer leitor interessado. Naturalmente que nada disto faz o menor
sentido, nada disto contribui para a serena reflexão dos cidadãos, nada disto
reequilibra eventuais desequilíbrios de meios no jogo da propaganda eleitoral,
nada disto faz sentido no século XXI e no meio comunicacional do século XXI.
Primeiro
que tudo, como já reconheceram até aqueles que fizeram estas leis há muitas
décadas, a simples introdução do voto antecipado criou duas realidades
distintas: a dos portugueses que podem votar sem dia de reflexão e a dos que
não só necessitam de um dia de reflexão, como um total black-out informativo.
Depois,
nunca fez sentido confundir as acções de campanha propriamente ditas com
noticiá-las, analisá-las e comentá-las. Jornalismo não é propaganda, nenhuma
lei imporá essa distorção, nenhuma Comissão Nacional de Eleições pode querer
impor ad eternum essa leitura insidiosa da lei. Também não faz sentido tapar o
sol com uma peneira. No tempo da Internet e das redes sociais a circulação da
informação não pára por decreto, a cloud não se esvanece por milagre, nada
deixa de continuar à disposição de todos.
Com
uma agravante: com o jornalismo proibido no dia de reflexão, o que quer que
fique por esclarecer das últimas notícias de campanha é deixado nas mãos de
quem não tem de seguir as regras do jornalismo, e nenhuma Comissão Nacional de
Eleições conseguirá jamais quebrar o fluxo de informação que circula “entre
amigos e amigos de amigos” nas redes sociais, informação certa ou errada,
equilibrada ou manipulada.
Nas
últimas horas desta campanha tivemos esta sexta-feira episódios que
justificariam que hoje os jornalistas estivessem a procurar esclarecê-los
melhor, a dar-lhes mais enquadramento, a recordar episódios semelhantes, no
fundo a carrear informação que poderia ajudar os eleitores a reflectir. Mas não
podem. Os jornalistas este sábado estão amordaçados.
A
continuação deste status quo – vou mais longe: o mantermo-nos neste pântano – é
intolerável. No passado, há quase 30 anos, impulsionei um movimento de
desobediência cívica destinado a acabar com o absurdo de em Portugal não se
poderem publicar sondagens depois de iniciada a campanha eleitoral, uma norma
arcaica que também herdáramos das primeiras eleições democráticas. A verdade é
que foi possível mudar a lei.
Mais
recentemente também foi possível mudar a lei dos debates entre candidatos
depois de uma interpretação vesga da Comissão Nacional de Eleições os ter na
prática inviabilizado. É pois chegado o momento de exigir ao próximo Parlamento
que reveja estas normas absurdas. Caso contrário, os jornalistas devem
seriamente considerar o seu dever de desobediência cívica num próximo acto
eleitoral e num próximo “dia de reflexão”.
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