Uma análise ponderada e honesta de um homem
educado e juridicamente preparado para opinar com argumentos válidos sobre o
problema do separatismo catalão e suas consequências sobre a estabilidade dos
mesmos. E a europeia, por inferência.
OPINIÃO
A Europa já está a arder?
Não estamos confrontados apenas com a
incerteza de um “Brexit”. Está a explodir-nos na cara uma outra ruptura: a da
Catalunha.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
PÚBLICO, 24 de
Outubro de 2019
Receio que estejamos a olhar com
demasiada displicência e superficialidade o que se
passa aqui ao lado, na Catalunha. É um desafio de enorme seriedade e
de extremo perigo.
Esta
não é a primeira
crise de confrontações violentas nas ruas de Barcelona nos últimos
anos. É muito perigoso. Pode contagiar. Os carros incendiados e os caixotes
do lixo que ardem nas ruas de Barcelona não ardem só em Barcelona. Ardem na
Europa. São capazes de ser mais um sinal de uma Europa em risco, uma Europa que
já foi posta a arder.
Não estamos confrontados apenas com a incerteza de um “Brexit".
Está a explodir-nos na cara uma outra ruptura: a da Catalunha. Uma, a britânica, rola nos termos do Direito
estabelecido, mas ainda ninguém sabe se vai ser, quando vai ser e como vai ser.
A outra, a catalã, está lançada de cabeça contra o Direito e ninguém sabe
também se, quando e como vai ser.
Para
os que pensem que esta crise é apenas espanhola, tirem daí o sentido. A crise
é também europeia. Se a Catalunha se tornasse independente,
sairia ipso facto da União Europeia. Há quem
sustente o contrário e os independentistas não querem isso. Porém, é
evidente que, se quisesse ser membro, não poderia fugir a longo e incerto processo
de apreciação.
Na
separação de uma parcela de um Estado-membro, o novo Estado não é membro
automático da UE. Nenhum
Estado é membro automático de qualquer união de Estados – pode querer, mas tem
de ser aceite. Quanto aos tratados assinados pelo Estado de que se separou, o
novo Estado teria de declarar se quer suceder, ou não, nos respectivos direitos
e obrigações – é uma questão clássica e complexa do direito internacional. Aqui, seria problema novo, não regulado nos tratados
europeus. Trata-se, aliás, de um problema que, obviamente, nunca será regulável
pelos tratados europeus: nenhum Estado (ou união de Estados), no seu são juízo,
é capaz de pré-regular os efeitos internacionais da secessão de uma parcela. Não
escaparia certamente a novo processo de adesão ou um equivalente ad hoc maginário
(“desdobramento” da adesão de Espanha), implicando decisão por unanimidade de
todos os Estados-membros, Espanha incluída.
No dia em que a Catalunha se
separasse de Espanha, ficaria fora da UE e da aplicação dos seus tratados e
legislação derivada, fosse por saída imediata ou por “suspensão”. Dizendo de outro modo: ficaria fora do direito da
UE, ficaria fora das fronteiras da UE, ficaria fora da moeda euro, ficaria fora
dos fundos comunitários e de todos os programas europeus, desde o Erasmus à
cooperação científica e tecnológica, ficaria fora de qualquer representação nos
órgãos da União e por aí adiante. Seria um passo ainda maior para o abismo
profundo do caos. Os catalães passariam a necessitar de passaporte para ir a
qualquer lugar da Europa, incluindo França e Espanha ali ao lado, o mesmo
sucedendo a qualquer europeu, incluindo espanhol, que fosse visitar ou
trabalhar na Catalunha. Se a União não fosse clara na aplicação deste regime –
que tanta tinta tem feito correr quanto à Irlanda do Norte –, abriria crise
gravíssima com Espanha, que a não merece e nada fez por ela. E uma eventual
crise da UE com Espanha, a culminar o “procés”, seria dramática e de
consequências imprevisíveis.
Que
seria da União Europeia se a Catalunha se separasse de Espanha ao colo do resto
da União, como parece andar Puigdemont? Por que não, então, a Padânia?
Também não quer “sustentar” a Campânia, a Calábria e a Sicília, tal como a
Catalunha não quer “sustentar” a Andaluzia. E se as
agendas anti-imigrantes se apoderassem, a pouco e pouco, do mesmo separatismo
populista que já arde em Barcelona? Se
a Saxónia ou a Baviera, por exemplo, quisessem separar-se para trancar a
imigração que a Alemanha não pare? Se, ilustrada pelo residente
Puigdemont, a Flandres fizesse o mesmo, ali mesmo em cima da sede das
instituições europeias? Parece
caminho de loucura. É-o na verdade. Mas a loucura político-social costuma
avançar depressa, mal se acende o rastilho e as circunstâncias estão de feição.
Sou
insuspeito de castelhanismo ou de iberismo. Para mim, ibérico, nem o porco: é
porco preto alentejano ou porco de montado. Não gosto de alguma soberba madrilista. Arrepia-me a
judicialização da crise catalã e a dureza das penas aplicadas, muito
embora não veja, honestamente, como pudesse ser diferente. A resposta
judiciária disparou novo incêndio, mas não vejo outra resposta que fosse
solução, nem como poderia fugir-se ao Estado de direito. Dói o sofrimento
das pessoas nas ruas. Respeito a Espanha e a sua democracia. Respeito os
catalães, o seu brio e a sua cultura própria. Mas sei que há dois lados, de
que agora só nos mostram um.
“Nos
quieren extranjerizar, poner una frontera donde no la había. Quieren poner
fronteras donde no las había, por razones etnolingüísticas” – protestava,
há dias, numa televisão, uma jovem mulher só, valente e emocionada, no meio do
caos em Barcelona. “La gente tiene miedo, pero por lo bajini está harta.” Denunciava:
“Si te identificas y estás contra esto, es tu muerte civil. No somos
extranjeros en nuestra casa.” E insistia: “Hay que ser valientes y dar la cara.
No podemos escondernos, y con nosotros toda España.” Foi a voz do
outro lado, que é maioria na Catalunha.
A
verdade é que foi a irresponsabilidade e o fanatismo temerário dos dirigentes
separatistas que lançou a Catalunha neste sarilho, na violência e no caos, sem
a menor legitimidade para o efeito e contra a vontade da maioria. Nas eleições catalãs de 2015, os independentistas
obtiveram maioria parlamentar (72 deputados), mas receberam minoria de votos: a
sua votação não foi além de 47,6% dos votantes, 35,7% dos eleitores. Foi
com esta minoria que Puidgemont precipitou a Catalunha na aventura do referendo
ilegal, desencadeando os efeitos fracturantes que se sucederam em cascata. Em
nenhuma parte do mundo, senão por revolução não-democrática, uma tão
minoritária base popular permitiria lançar a separação. Em nenhuma parte do
mundo, aquele referendo revolucionário seria aceite como expressão democrática.
A seguir, apesar da brutal dramatização provocada pelo referendo e pela
repressão, as eleições catalãs de 2017 confirmaram a ilegitimidade. A maioria
parlamentar dos independentistas ficou mais pequena (70 deputados) e
confirmou-se a minoria dos seus votos: 47,3% dos votantes, 37,4% dos inscritos.
Quando
Pacheco Pereira escrevia, há dias, que “o que não vêem ou admitem é
que possa haver uma vontade, uma determinação, uma razão pela independência da
maioria dos catalães”, é preciso atentar precisamente que os números mostram
que não é a maioria, mas uma minoria, que manifesta essa vontade. Não mentimos se dissermos que há dois milhões de
catalães que querem a independência. São muitos, é verdade. Mas isso significa
que, apesar de toda a pressão contínua, há três milhões e meio que a não
querem. Ninguém pode ignorar e esmagar os direitos destes, como aquela mulher e
milhões com ela que recusam uma fronteira que nunca existiu e protestam contra
esta fractura.
Pelo contrário, todos temos de apelar
aos dirigentes e partidos separatistas, se são democratas, para respeitarem o
sentimento da maioria, pararem a violência nas ruas, regressarem à legalidade e
respeitarem a maioria dos concidadãos, que não quer romper com a autonomia, a
democracia e o Estado de direito de que todos gozam em Espanha. Além disso, se
se sentem como europeus e querem a Europa democrática e em paz, devem
interromper já esta obcecada viagem desenfreada contra a parede ou pelo abismo
abaixo, com que fazem a União Europeia correr riscos tremendos. Se são
democratas e europeus, está na hora de apagar o incêndio, fazer as pazes, repor
a normalidade e a tranquilidade civil, retomar a legalidade da autonomia e o
fio da ordem democrática.
Advogado e antigo líder do CDS
Nenhum comentário:
Postar um comentário