Foi o que disse o Lobo Feroz ao Cordeirinho,
que bebia a água do rio em posição inferior à do Lobo, que, bebendo na parte
superior do mesmo, o acusava, contudo, de lhe conspurcar a água, ainda límpida,
naqueles tempos impolutos - ecologicamente, digo. Bem se esforçou o Cordeirinho
por demonstrar a ignomínia, bem visível, da calúnia, mas o Lobo desavergonhado
não quis saber de argumentos e papou o Cordeirinho com a desculpa aplicada ao pai
deste. Nós somos os cordeirinhos de hoje, no meio dos lobos que acusam os
nossos pais e os deles também, pondo todos ajoelhados a pedir perdão pelas violências
cometidas - em todos os tempos, ao que conta a História, pelos que têm nas mãos
o poder. Hoje os ditadores são os que se regem pelos preceitos da bondade
democrática, que arranjaram esse modo de humilhar os próprios que os pariram,
mesmo os que não têm o direito de casar, como o Papa e seus acólitos. E vá de
os forçar a escorraçar o passado, mesmo o das glórias, e ajoelharem perante os
que maltrataram, mesmo sem culpas no cartório, nem os sacrificados de então se
lembram mais disso, habituados que estão às suas bulhas próprias, que eles
próprios igualmente fomentam entre si ou com os vizinhos. O certo é que a crónica
de António Barreto é uma bela
página de prosa, condenatória das parlapatices hipócritas do Parlamento Europeu
– e não só - a respeito dos remorsos que não sentem pelas gentes que não amam.
OPINIÃO: O
perdão e o remorso
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou
mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos
longínquos: é estúpido, mas é moda.
A moção
aprovada há dias pelo Parlamento Europeu e apenas contrariada, ao
que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo, condena
um e outro, quase os equipara, de ambos diz que massacraram milhões, o que é
verdade, mas cuja equiparação é absolutamente inútil e patética. Sabe-se hoje que, sem contar as vítimas da guerra, o nazismo
alemão causou a morte de dez milhões de pessoas e o comunismo russo perto de
vinte. Fazer um ranking
destas mortandades é ridículo. Estabelecer qual deles é pior é obtuso. Ambos
são hediondos, ponto final. Equipará-los é inculto. São muito diferentes nos
seus propósitos, mas são ambos medonhos nos meios e nos resultados. Declarar
que o capitalismo é muito pior, pois desde há trezentos anos já morreram, nas
fábricas e na guerra, com a indústria e a escravatura, muitas centenas de
milhões de pessoas, é ignorante. E também não nos ajuda a compreender o mundo,
mas tão só a odiá-lo e a descrer da humanidade. Anunciar que são iguais é tão
idiota quanto afirmar que são radicalmente diferentes.
Julgar
e condenar ou absolver a história parece inútil. Mas não é. Há sempre uma “agenda oculta” e um
propósito implícito. Aqueles que, hoje, em Portugal e no mundo, lutam para
culpar os homens, os brancos, os adultos, os ocidentais, os cristãos, os
ricos, os heterossexuais, os democratas, os capitalistas e os militares estão
evidentemente a tentar criar uma ortodoxia, uma cultura predominante e,
sobretudo, a construir um “credo” que permita condenar e proibir, assim como
limitar a liberdade de expressão. Fazem-no
com a mesma intolerância e o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco
tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam
que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que
os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam
e que os ciganos roubavam.
Julgar
a história, condenar o passado e condicionar o pensamento: eis três objectivos
dos virtuosos do presente. A discussão sobre o alegado Museu Salazar foi, à nossa
escala, um tema que permitiu exibir os mesmos reflexos condicionados. As
polémicas à volta do Museu dos Descobrimentos tiveram o mesmo
sentido. Curiosamente, nestes dois casos, tal como no resto do mundo e para
outras matérias, os intolerantes estão a levar a melhor.
Decretar
que não houve massacre de arménios perpetrado por turcos, proibir que se diga
que o Holocausto não foi assim tão mau como dizem, culpar os judeus pela morte
de Jesus Cristo, garantir que não houve na Polónia massacres de comunistas e de
judeus e negar que tenha existido o Gulag na União Soviética são gestos prepotentes,
mas muito em voga. Proibir o estudo de Darwin revela estupidez, mas é o
que se faz em várias latitudes. Substituir o estudo, o debate público e a
liberdade de expressão pelo decreto-lei é atitude hoje louvada por muitos,
sempre com intuito oportunista de estabelecimento de um poder autoritário. Ao
mesmo tempo que os decretos que definem o que foi e não foi na história, surgiu
também, nas últimas décadas, o imperativo do pedido de perdão. Pessoas, povos, Estados, políticos e igrejas
pedem perdão. Pedem perdão por todos os males e por factos de há dez, cem ou
mil anos. Reinterpretam a história, inventam culpados, identificam os maus e as
vítimas e pedem perdão a quem lhes convém.
Papas já pediram perdão aos judeus. Alemães também, mas por outras razões. Muitos
europeus pediram perdão aos árabes, aos muçulmanos e aos negros pelo
colonialismo e pela escravatura. Americanos pediram perdão aos índios.
Espanhóis pediram perdão aos incas, aos azetecas e aos maias. Portugueses ainda
não pediram perdão aos africanos, aos indianos e aos índios, mas vai acontecer
em breve. Já houve portugueses que pediram perdão aos judeus. Franceses pedem
perdão aos africanos, aos árabes e aos vietnamitas. Há Ingleses que se preparam
para pedir perdão ao mundo inteiro, dos índios aos indianos, dos negros aos
muçulmanos. Já se pede perdão aos negros pela escravatura, aos índios pela
conquista, aos indianos pelas descobertas, aos chineses pelas guerras, aos mouros
pelas expulsões e aos árabes pelos massacres. E também está nas cartas que se
vai pedir perdão aos republicanos pela monarquia e aos socialistas e comunistas
pelo Estado Novo.
Por que diabo hei-de pedir perdão aos escravos, aos índios, aos indianos, aos egípcios,
aos judeus e aos mouros? É que se as culpas não forem minhas, são objectivas e
históricas. Se não foste tu, foram os teus avós. Ou tetravós. Se não
foste tu, foram os cristãos. Ou os brancos. Ou os portugueses. Ou os europeus.
Ou quem quer que seja. Mas de uma coisa podes estar seguro: és culpado,
deves ter remorsos, tens de pedir perdão e, eventualmente, pagar reparações,
conceder privilégios, bater no peito, deixar passar à frente e recolher-te à
tua insignificância dado que alguém, algures e em qualquer tempo, maltratou,
roubou, oprimiu e torturou. Evidentemente, as culpas têm momentos históricos e
objectos precisos. Hoje, por exemplo, pedir-se-á perdão aos negros
africanos e aos muçulmanos (desde que não sejam ricos…), mas não aos
retornados, aos repatriados, aos frades, aos monges, aos aristocratas e aos
proprietários.
Decretar
o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei
acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é
estúpido, mas é moda. Vai ser difícil
afastar esta praga: estabelecida uma ortodoxia do pensamento, dura sempre
anos. Pena é que o pluralismo e a liberdade fiquem a perder. Mas ganha
a moda que é a de pedir perdão pelo que outros fizeram. Pedir perdão pelo
que antepassados, não importa quão remotos, fizeram ou beneficiaram com o mal e
o sofrimento de outros. Pedir perdão a escravos que serviram mestres, a
negros usados pelos brancos, a soldados que obedeceram a oficiais, a
trabalhadores explorados por patrões, a mulheres espancadas pelos homens, a
jovens frustrados por adultos, a judeus queimados por arianos, a árabes
humilhados pelos cristãos, a alunos dominados por professores…
Aos
espíritos intolerantes não interessa saber que a culpa, o castigo e o perdão se
dirigem aos indivíduos, por vezes associações ou grupos, nunca povos ou etnias.
Fernão Lopes garante que Álvaro Pais
disse ao Mestre de Avis que uma das receitas para se ser rei e exercer o poder
consistia em “perdoar a quem nunca te fez mal”! Esta agora é uma nova versão:
“peço perdão a quem nunca fiz mal”!
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Alexandre
Bernardes, 27.10.2019: Ressentimento
e má consciência. Duas características que Nietzsche identificou na genealogia
dos sistemas morais. É o que vemos no politicamente correcto em todo o seu
esplendor. A tipologia das forças reactivas estão presentes naqueles que são
como que os “sacerdotes” do seu tempo e cuja vontade de poder é agida pelo
ressentimento e a má consciência para constituir o seu sistema moral. A vitória
do sistema moral é atingida quando há uma “culpa” que é confessada. O
ressentimento inventa uma culpa, a má consciência assume a culpa, assume a
culpa a um confessor, a um inquisidor, hoje, diremos, a um activista social…
Antonio Leitao, 27.10.2019: Que mal tem que os Estados reconheçam o
mal que fizeram, se na mesma senda glorificam os seus "feitos"? É tão
estúpido Portugal - leia-se o Estado português - pedir perdão, ou reconhecer o
passado - como arengar as descobertas. Por aí passa também a preservação da
verdade, e essa é uma forma de mostrar todo o jogo de poder por detrás dela,
não ficassem estes paladinos da liberdade de expressão tão ofendidinhos.
PdellaF, 27.10.2019: Este
artigo é oportuno e certeiro pelo que podemos ler nas reacções de uma boa parte
dos comentadores, tão apostados que estão nesta nova forma de Totalitarismo que
se está a formar por estes dias através da manipulação da história e da
memória. Os seus aliados são a cobardia, a ignorância e a cultura pop que
grassa entre o público.
Fowler Fowler, 27.10.2019: Por detrás da crónica está o homem que
ao longo da sua história tem fechado portas, sem remorsos, sabendo, porém, o
que ficou escondido atrás da porta. Pode vir com o papão da “intolerância” e o
chavão da “liberdade de expressão”, que mais nada vislumbro senão alguém que,
paradoxalmente, pretende ajustar contas com o passado e consigo próprio.
José Manuel Martins, 27.10.2019: o totalitarismo fascista
do 'antifascismo' já começou. De resto, é o que o artigo anuncia.
Fowler Fowler, 27.10.2019: Reconhecer sincera e livremente o erro,
humano ou histórico, e pedir perdão às suas vítimas, só dignifica e enobrece
quem o pratica. Se não houve tempo nem coragem no passado, que o presente sirva
para repor a verdade dos factos e, com ela, acautelar o futuro das relações de
pessoas, famílias, grupos e povos. Lembro, por exemplo, que o Papa João Paulo
II pediu perdão pelas omissões e cobardia da ICAR no holocausto dos judeus.
Como poderiam os homens bons desta Igreja desenvolver o seu apostolado com
estes e muitos outros pecados escondidos no armário?
Sethe, 27.10.2019: Um homem da sua área de conhecimento,
Balazs Aczel, diz algo como: a atitude mais estúpida que alguém pode ter é
sobrestimar-se. Iniciar um artigo tão determinista com « ... apenas
contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo... »
para depois passar um atestado de imbecilidade a todos os que diz «pensarem à
moda», o que é que lhe «parece»? A mim o que me «parece» é que você não pede
desculpa, mas condena. E condena-se sobretudo a si pelas suas antigas
«simpatias».
Luis Morgado, 27.10.2019: A manifestação da culpa histórica pode
justificar-se em alguns casos, mas não deve tornar-se um paranóico estado de
espírito do presente que diaboliza grupos separando-os por cores,
nacionalidades e religiões, classificando-os como vítimas e opressores. Na
sua pior versão, a culpa histórica é paternalista, estigmatiza grupos por um
passado do qual não são responsáveis, acentua as clivagens entre "nós e os
outros", e evita que se construam sociedades sem preconceitos de etnia,
grupo, religião, etc. Acho bem que a Alemanha peça desculpa aos judeus,
numa cerimónia, mas não me parece bem que se eduquem as novas gerações de
alemães como culpados. Deve-se antes pedir desculpa HOJE pelo racismo,
sectarismo, prepotência, injustiça e falta de solidariedade com os mais fracos,
que existem HOJE.
nelsonfari, 27.10.2019: Mas a pior barbaridade aconteceu mais ou
menos por volta de 1942. o ano de nascimento do cronista. A que se junta a de
Estaline ainda antes desta data. Andar mais para trás é um exercício sem
sentido. O Homem é finito e tem a ambição de, na sua curta permanência, querer
abarcar a vida e todos os tempos. Uma clara perda de tempo, quando o tempo é
escasso - é um bem escasso como se diz na Economia. Falar em Hitler e em
Estaline e nas mortandades que provocaram já faz sentido, mas não abusando do
papel do indivíduo na História: a História não é a soma ou o resultado de
acções individuais. É, antes, uma força que acrescenta sinergias - não é a mera
aplicação da segunda lei de Newton, F = ma. Por esta razão, Barreto
nunca encontrará a solução do problema da vida social: a desigualdade que mata.
antoniofialho1, 27.10.2019: Concordo perfeitamente. Vamos culpar o
inventor do carro, do avião, do motor de combustão pela poluição? Vamos culpar
o inventor dos instrumentos marítimos que nos permitiram chegar a África e
assim envolvemos na escravatura? Criminalizar a aproximação entre homens e
mulheres para reduzir o assédio? os ataques às convicções de muitos cidadãos
apenas geram reacções aproveitadas por políticos populistas...
José Cruz Magalhaes, 27.10.2019: A globalização
não podia deixar de fora a catarse, qualquer que ela fosse e a pandemia das
consciências perturbadas. Como sempre, os autos de fé e os cerimoniais da
remissão tinham de substituir o pensamento e o raciocínio, puro e duro, ou o
outro, sensível e sensato. Foi desta forma que se ergueram os Tribunais do
Santo Ofício, da Congregação da Fé, para ajudar à remissão da culpa é à
eliminação dos culpados. A construção das Torres de Babel é uma especialidade
humana, para louvar os deuses ou para aliviar as consciências.
AndradeQB, 27.10.2019: Seria suposto
que a lógica arrasadora do que António Barreto diz fosse algo aceite
universalmente e contra o que somente um provocador ou perturbado se oporia.
Infelizmente não, parece que a lógica tende a ser politicamente incorrecta. Pelo
meu lado fico a aguardar o pedido de desculpas dos árabes, dos romanos e dos
franceses. Depois de resolver isso, vou então preocupar-me com o que fazem os
vivos.
Colete Amarelo, 27.10.2019: Excelente
artigo.
Armando Heleno, 27.10.2019: Absolutamente
pertinente e certeiro. Realmente também eu fico pasmado quando há por ex. um
atentado com dezenas de vítimas, temos as reacções de lamúrias e prantos, como
é natural. Mas daí a reforçarem com "condenamos vivamente este
atentado"! Alguém que se considere gente, apoia isso? É necessário
expressá-lo? Calados, dizemos muito. Pela minha parte condeno estas
intervenções redundantes.
viana, 27.10.2019: O "(...)há
bem pouco tempo(...)" nesta frase "(...)o mesmo preconceito com que
outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres
inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados
da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam
mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam. (...)" torna
transparente o que António Barreto pensa e a sua estratégia. Porque obviamente
ainda hoje é assim. E ele sabe disso. Deve-se lembrar da defesa que fez da
Bonifácio. Ele sabe que em qualquer sociedade existe uma narrativa dominante,
que guia as acções individuais da maioria. Portanto, o que ele não quer é que
haja mudanças nessa narrativa, com a qual está "confortável". Quem se
sente num pedestal daí não que sair...
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