segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Se não foste tu foi teu pai…



Foi o que disse o Lobo Feroz ao Cordeirinho, que bebia a água do rio em posição inferior à do Lobo, que, bebendo na parte superior do mesmo, o acusava, contudo, de lhe conspurcar a água, ainda límpida, naqueles tempos impolutos - ecologicamente, digo. Bem se esforçou o Cordeirinho por demonstrar a ignomínia, bem visível, da calúnia, mas o Lobo desavergonhado não quis saber de argumentos e papou o Cordeirinho com a desculpa aplicada ao pai deste. Nós somos os cordeirinhos de hoje, no meio dos lobos que acusam os nossos pais e os deles também, pondo todos ajoelhados a pedir perdão pelas violências cometidas - em todos os tempos, ao que conta a História, pelos que têm nas mãos o poder. Hoje os ditadores são os que se regem pelos preceitos da bondade democrática, que arranjaram esse modo de humilhar os próprios que os pariram, mesmo os que não têm o direito de casar, como o Papa e seus acólitos. E vá de os forçar a escorraçar o passado, mesmo o das glórias, e ajoelharem perante os que maltrataram, mesmo sem culpas no cartório, nem os sacrificados de então se lembram mais disso, habituados que estão às suas bulhas próprias, que eles próprios igualmente fomentam entre si ou com os vizinhos. O certo é que a crónica de António Barreto é uma bela página de prosa, condenatória das parlapatices hipócritas do Parlamento Europeu – e não só - a respeito dos remorsos que não sentem pelas gentes que não amam.
OPINIÃO:  O perdão e o remorso
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda.
ANTÓNIO BARRETO PÚBLICO27 de Outubro de 2019,
A moção aprovada há dias pelo Parlamento Europeu e apenas contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo, condena um e outro, quase os equipara, de ambos diz que massacraram milhões, o que é verdade, mas cuja equiparação é absolutamente inútil e patética. Sabe-se hoje que, sem contar as vítimas da guerra, o nazismo alemão causou a morte de dez milhões de pessoas e o comunismo russo perto de vinte. Fazer um ranking destas mortandades é ridículo. Estabelecer qual deles é pior é obtuso. Ambos são hediondos, ponto final. Equipará-los é inculto. São muito diferentes nos seus propósitos, mas são ambos medonhos nos meios e nos resultados. Declarar que o capitalismo é muito pior, pois desde há trezentos anos já morreram, nas fábricas e na guerra, com a indústria e a escravatura, muitas centenas de milhões de pessoas, é ignorante. E também não nos ajuda a compreender o mundo, mas tão só a odiá-lo e a descrer da humanidade. Anunciar que são iguais é tão idiota quanto afirmar que são radicalmente diferentes.
Julgar e condenar ou absolver a história parece inútil. Mas não é. Há sempre uma “agenda oculta” e um propósito implícito. Aqueles que, hoje, em Portugal e no mundo, lutam para culpar os homens, os brancos, os adultos, os ocidentais, os cristãos, os ricos, os heterossexuais, os democratas, os capitalistas e os militares estão evidentemente a tentar criar uma ortodoxia, uma cultura predominante e, sobretudo, a construir um “credo” que permita condenar e proibir, assim como limitar a liberdade de expressão. Fazem-no com a mesma intolerância e o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam.
Julgar a história, condenar o passado e condicionar o pensamento: eis três objectivos dos virtuosos do presente. A discussão sobre o alegado Museu Salazar foi, à nossa escala, um tema que permitiu exibir os mesmos reflexos condicionados. As polémicas à volta do Museu dos Descobrimentos tiveram o mesmo sentido. Curiosamente, nestes dois casos, tal como no resto do mundo e para outras matérias, os intolerantes estão a levar a melhor.
Decretar que não houve massacre de arménios perpetrado por turcos, proibir que se diga que o Holocausto não foi assim tão mau como dizem, culpar os judeus pela morte de Jesus Cristo, garantir que não houve na Polónia massacres de comunistas e de judeus e negar que tenha existido o Gulag na União Soviética são gestos prepotentes, mas muito em voga. Proibir o estudo de Darwin revela estupidez, mas é o que se faz em várias latitudes. Substituir o estudo, o debate público e a liberdade de expressão pelo decreto-lei é atitude hoje louvada por muitos, sempre com intuito oportunista de estabelecimento de um poder autoritário. Ao mesmo tempo que os decretos que definem o que foi e não foi na história, surgiu também, nas últimas décadas, o imperativo do pedido de perdão. Pessoas, povos, Estados, políticos e igrejas pedem perdão. Pedem perdão por todos os males e por factos de há dez, cem ou mil anos. Reinterpretam a história, inventam culpados, identificam os maus e as vítimas e pedem perdão a quem lhes convém.
Papas já pediram perdão aos judeus. Alemães também, mas por outras razões. Muitos europeus pediram perdão aos árabes, aos muçulmanos e aos negros pelo colonialismo e pela escravatura. Americanos pediram perdão aos índios. Espanhóis pediram perdão aos incas, aos azetecas e aos maias. Portugueses ainda não pediram perdão aos africanos, aos indianos e aos índios, mas vai acontecer em breve. Já houve portugueses que pediram perdão aos judeus. Franceses pedem perdão aos africanos, aos árabes e aos vietnamitas. Há Ingleses que se preparam para pedir perdão ao mundo inteiro, dos índios aos indianos, dos negros aos muçulmanos. Já se pede perdão aos negros pela escravatura, aos índios pela conquista, aos indianos pelas descobertas, aos chineses pelas guerras, aos mouros pelas expulsões e aos árabes pelos massacres. E também está nas cartas que se vai pedir perdão aos republicanos pela monarquia e aos socialistas e comunistas pelo Estado Novo.
Por que diabo hei-de pedir perdão aos escravos, aos índios, aos indianos, aos egípcios, aos judeus e aos mouros? É que se as culpas não forem minhas, são objectivas e históricas. Se não foste tu, foram os teus avós. Ou tetravós. Se não foste tu, foram os cristãos. Ou os brancos. Ou os portugueses. Ou os europeus. Ou quem quer que seja. Mas de uma coisa podes estar seguro: és culpado, deves ter remorsos, tens de pedir perdão e, eventualmente, pagar reparações, conceder privilégios, bater no peito, deixar passar à frente e recolher-te à tua insignificância dado que alguém, algures e em qualquer tempo, maltratou, roubou, oprimiu e torturou. Evidentemente, as culpas têm momentos históricos e objectos precisos. Hoje, por exemplo, pedir-se-á perdão aos negros africanos e aos muçulmanos (desde que não sejam ricos…), mas não aos retornados, aos repatriados, aos frades, aos monges, aos aristocratas e aos proprietários.
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda. Vai ser difícil afastar esta praga: estabelecida uma ortodoxia do pensamento, dura sempre anos. Pena é que o pluralismo e a liberdade fiquem a perder. Mas ganha a moda que é a de pedir perdão pelo que outros fizeram. Pedir perdão pelo que antepassados, não importa quão remotos, fizeram ou beneficiaram com o mal e o sofrimento de outros. Pedir perdão a escravos que serviram mestres, a negros usados pelos brancos, a soldados que obedeceram a oficiais, a trabalhadores explorados por patrões, a mulheres espancadas pelos homens, a jovens frustrados por adultos, a judeus queimados por arianos, a árabes humilhados pelos cristãos, a alunos dominados por professores
Aos espíritos intolerantes não interessa saber que a culpa, o castigo e o perdão se dirigem aos indivíduos, por vezes associações ou grupos, nunca povos ou etnias.
Fernão Lopes garante que Álvaro Pais disse ao Mestre de Avis que uma das receitas para se ser rei e exercer o poder consistia em “perdoar a quem nunca te fez mal”! Esta agora é uma nova versão: “peço perdão a quem nunca fiz mal”!
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Alexandre Bernardes, 27.10.2019: Ressentimento e má consciência. Duas características que Nietzsche identificou na genealogia dos sistemas morais. É o que vemos no politicamente correcto em todo o seu esplendor. A tipologia das forças reactivas estão presentes naqueles que são como que os “sacerdotes” do seu tempo e cuja vontade de poder é agida pelo ressentimento e a má consciência para constituir o seu sistema moral. A vitória do sistema moral é atingida quando há uma “culpa” que é confessada. O ressentimento inventa uma culpa, a má consciência assume a culpa, assume a culpa a um confessor, a um inquisidor, hoje, diremos, a um activista social…
Antonio Leitao, 27.10.2019: Que mal tem que os Estados reconheçam o mal que fizeram, se na mesma senda glorificam os seus "feitos"? É tão estúpido Portugal - leia-se o Estado português - pedir perdão, ou reconhecer o passado - como arengar as descobertas. Por aí passa também a preservação da verdade, e essa é uma forma de mostrar todo o jogo de poder por detrás dela, não ficassem estes paladinos da liberdade de expressão tão ofendidinhos.
PdellaF, 27.10.2019: Este artigo é oportuno e certeiro pelo que podemos ler nas reacções de uma boa parte dos comentadores, tão apostados que estão nesta nova forma de Totalitarismo que se está a formar por estes dias através da manipulação da história e da memória. Os seus aliados são a cobardia, a ignorância e a cultura pop que grassa entre o público.
Fowler Fowler, 27.10.2019: Por detrás da crónica está o homem que ao longo da sua história tem fechado portas, sem remorsos, sabendo, porém, o que ficou escondido atrás da porta. Pode vir com o papão da “intolerância” e o chavão da “liberdade de expressão”, que mais nada vislumbro senão alguém que, paradoxalmente, pretende ajustar contas com o passado e consigo próprio.
José Manuel Martins, 27.10.2019: o totalitarismo fascista do 'antifascismo' já começou. De resto, é o que o artigo anuncia.
Fowler Fowler, 27.10.2019: Reconhecer sincera e livremente o erro, humano ou histórico, e pedir perdão às suas vítimas, só dignifica e enobrece quem o pratica. Se não houve tempo nem coragem no passado, que o presente sirva para repor a verdade dos factos e, com ela, acautelar o futuro das relações de pessoas, famílias, grupos e povos. Lembro, por exemplo, que o Papa João Paulo II pediu perdão pelas omissões e cobardia da ICAR no holocausto dos judeus. Como poderiam os homens bons desta Igreja desenvolver o seu apostolado com estes e muitos outros pecados escondidos no armário?
José Manuel Martins, 27.10.2019: não trouxeste o violino para cordeirinhos?
Sethe, 27.10.2019: Um homem da sua área de conhecimento, Balazs Aczel, diz algo como: a atitude mais estúpida que alguém pode ter é sobrestimar-se. Iniciar um artigo tão determinista com « ... apenas contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo... » para depois passar um atestado de imbecilidade a todos os que diz «pensarem à moda», o que é que lhe «parece»? A mim o que me «parece» é que você não pede desculpa, mas condena. E condena-se sobretudo a si pelas suas antigas «simpatias».
Luis Morgado, 27.10.2019: A manifestação da culpa histórica pode justificar-se em alguns casos, mas não deve tornar-se um paranóico estado de espírito do presente que diaboliza grupos separando-os por cores, nacionalidades e religiões, classificando-os como vítimas e opressores. Na sua pior versão, a culpa histórica é paternalista, estigmatiza grupos por um passado do qual não são responsáveis, acentua as clivagens entre "nós e os outros", e evita que se construam sociedades sem preconceitos de etnia, grupo, religião, etc. Acho bem que a Alemanha peça desculpa aos judeus, numa cerimónia, mas não me parece bem que se eduquem as novas gerações de alemães como culpados. Deve-se antes pedir desculpa HOJE pelo racismo, sectarismo, prepotência, injustiça e falta de solidariedade com os mais fracos, que existem HOJE.
nelsonfari, 27.10.2019: Mas a pior barbaridade aconteceu mais ou menos por volta de 1942. o ano de nascimento do cronista. A que se junta a de Estaline ainda antes desta data. Andar mais para trás é um exercício sem sentido. O Homem é finito e tem a ambição de, na sua curta permanência, querer abarcar a vida e todos os tempos. Uma clara perda de tempo, quando o tempo é escasso - é um bem escasso como se diz na Economia. Falar em Hitler e em Estaline e nas mortandades que provocaram já faz sentido, mas não abusando do papel do indivíduo na História: a História não é a soma ou o resultado de acções individuais. É, antes, uma força que acrescenta sinergias - não é a mera aplicação da segunda lei de Newton, F = ma. Por esta razão, Barreto nunca encontrará a solução do problema da vida social: a desigualdade que mata.
antoniofialho1, 27.10.2019: Concordo perfeitamente. Vamos culpar o inventor do carro, do avião, do motor de combustão pela poluição? Vamos culpar o inventor dos instrumentos marítimos que nos permitiram chegar a África e assim envolvemos na escravatura? Criminalizar a aproximação entre homens e mulheres para reduzir o assédio? os ataques às convicções de muitos cidadãos apenas geram reacções aproveitadas por políticos populistas...
José Cruz Magalhaes, 27.10.2019: A globalização não podia deixar de fora a catarse, qualquer que ela fosse e a pandemia das consciências perturbadas. Como sempre, os autos de fé e os cerimoniais da remissão tinham de substituir o pensamento e o raciocínio, puro e duro, ou o outro, sensível e sensato. Foi desta forma que se ergueram os Tribunais do Santo Ofício, da Congregação da Fé, para ajudar à remissão da culpa é à eliminação dos culpados. A construção das Torres de Babel é uma especialidade humana, para louvar os deuses ou para aliviar as consciências.
AndradeQB, 27.10.2019: Seria suposto que a lógica arrasadora do que António Barreto diz fosse algo aceite universalmente e contra o que somente um provocador ou perturbado se oporia. Infelizmente não, parece que a lógica tende a ser politicamente incorrecta. Pelo meu lado fico a aguardar o pedido de desculpas dos árabes, dos romanos e dos franceses. Depois de resolver isso, vou então preocupar-me com o que fazem os vivos.
Colete Amarelo, 27.10.2019: Excelente artigo.
Armando Heleno, 27.10.2019: Absolutamente pertinente e certeiro. Realmente também eu fico pasmado quando há por ex. um atentado com dezenas de vítimas, temos as reacções de lamúrias e prantos, como é natural. Mas daí a reforçarem com "condenamos vivamente este atentado"! Alguém que se considere gente, apoia isso? É necessário expressá-lo? Calados, dizemos muito. Pela minha parte condeno estas intervenções redundantes.
viana, 27.10.2019: O "(...)há bem pouco tempo(...)" nesta frase "(...)o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam. (...)" torna transparente o que António Barreto pensa e a sua estratégia. Porque obviamente ainda hoje é assim. E ele sabe disso. Deve-se lembrar da defesa que fez da Bonifácio. Ele sabe que em qualquer sociedade existe uma narrativa dominante, que guia as acções individuais da maioria. Portanto, o que ele não quer é que haja mudanças nessa narrativa, com a qual está "confortável". Quem se sente num pedestal daí não que sair...

Nenhum comentário: