sábado, 5 de outubro de 2019

Tristeza e severidade no estilhaçar



Alberto Gonçalves serve-se de uma história de uma relação amorosa, vista em documentário, para contar, amargamente, (contrariando a sua vocação chocarreira), da reacção de uma jornalista da nova vaga, dos que conspurcam o sentido do real, no radicalismo acéfalo e brutal dos novos “guardadores de rebanhos”, zelosamente convictos da verdade exclusiva das suas opiniões severas a respeito do conservadorismo saloio dos “velhos do Restelo”. Mas é sempre uma lição que nos dá, AG, que, se merece a seriedade de alguns comentadores, provoca também a sujidade moral dos gráficos “guardadores” zelosos (que eliminei, é claro).
Leonard Cohen e os novos puritanos /premium
É um mundo fragmentado e desolador, repleto de beatos e bufos. Todos sonham construir carreiras assim, a denunciar, a perseguir, a excomungar, a destruir quem calha e a propósito do que calha.
ALBERTO GONÇALVES     OBSERVADOR, 05 oct 2019
There’ll be the breaking of the ancient Western code  /  Your private life will suddenly explode  /  There’ll be phantoms  /  There’ll be fires on the road      L. Cohen, “The Future”
Vi “Leonard & Marianne: Words of Love”. O documentário trata da história de amor entre Leonard Cohen e a norueguesa Marianne Ihlen, durante a década de 1960. O encontro de ambos aconteceu em Hidra, a ilha grega para onde Cohen se mudou após a morte do pai e a herança subsequente. Marianne já lá estava, com o marido e o filho, parte da boémia “exilada” de artistas e candidatos a artistas. Talvez tenha sido paixão à primeira vista. À segunda, de qualquer modo, Marianne passou a viver com o canadiano, à época um escritor com certos louros e pouco dinheiro. Assim permaneceram meia dúzia de anos, entre o sol, o sexo, os amigos, o vinho, a guitarra, as drogas e as depressões a que Cohen periodicamente descia. Quando a escassez material acabou de amarfanhar a doçura daquela existência, e o tempo fez o mesmo com a volúpia, Cohen partiu sozinho para a América em busca de uma carreira de “songwriter” e um meio de subsistência. Marianne ficou em Hidra, e em Hidra continuou, à espera dos regressos cada vez menos frequentes e menos demorados do amante. Ocasionalmente, ela própria o acompanhou nos EUA e Canadá. Entre as viagens, percebeu a fama crescente de Cohen, agora cantor, e as distracções que a fama trazia. E percebeu, triste, que aquilo se esgotara. A protagonista relutante da canção “So Long, Marianne” deixou o idílio de Hidra, teve diversos homens, casou, envelheceu e, um dia, soube que estava a morrer.
À distância de Los Angeles a Oslo, Cohen soube que ela estava a morrer e enviou-lhe uma carta pequenina: “Bem, Marianne, chegamos ao ponto em que estamos tão velhos que os nossos corpos caem aos bocados e acho que te seguirei muito em breve. Fica a saber que me encontro tão perto de ti que, se esticares a mão, alcanças a minha. E sabes que sempre te amei pela beleza e pela sabedoria, mas não preciso de dizer mais nada sobre isso porque sobre isso sabes tudo. Agora só te quero desejar boa viagem. Adeus, velha amiga. Amor infinito, vejo-te pelo caminho.”
O documentário mostra o momento em que, numa cama de hospital, Marianne ouve alguém ler a carta. Por um instante, aquela mulher moribunda murmura: “Que bonito! Tão bonito!”, e chega a sorrir. Dois dias depois, morreu. Três meses depois, morreu ele. “Leonard & Marianne”, o filme, terá eventuais falhas. Leonard & Marianne, o romance, não tem nenhuma – ou tem todas, como todos os romances e todas as pessoas que justificam o nome. É, desculpem a repetição, uma história de amor, que marcou para o bem e para o mal os envolvidos e que, dada a circunstância de um deles ser figura notável da música popular, foi de alguma forma partilhada com milhares ou milhões de criaturas. Umas tantas verão o filme, comovidas aqui, exultantes ali, entretidas acolá. No máximo aliviam-se de um par de comentários ligeiros. E a seguir retornam à vidinha. O normal, não é?
Não, senhor: o normal não é o que era. E os anormais ameaçam tomar conta disto. Na revista britânica “New Statesman”, uma colunista, Ellen Peirson-Hagger, decretou que o filme “glorifica o sexismo”. Argumentação? A dona Ellen descobriu, e não gostou de descobrir, que o papel de Marianne se limitava ao da musa do macho criativo – no filme e na realidade. É a própria Marianne, aliás, que confirma quase por essas palavras o dito papel, e uma situação que aceitou voluntariamente. Porém, a dona Ellen não lida bem com as escolhas dos outros. A dona Ellen incomoda-se com a tolerância de Marianne face às infidelidades de Cohen. A dona Ellen incomoda-se com a referência de Cohen a uma sanduíche que Marianne lhe preparou, “como se Ihlen fosse uma criada, passiva a velar activamente por Cohen”. A dona Ellen chega a incomodar-se com o encantamento dos espectadores da sessão de “Leonard & Marianne” a que ela assistiu. A dona Ellen, que não é ninguém mas simboliza a fúria de multidões, incomoda-se imenso.
E incomoda no processo gente que não lhe diz respeito. Nem valeria a pena imaginar a sentença da dona Ellen perante qualquer biografia de Joni Mitchell (para não mudar de assunto e citar uma das amantes posteriores de Cohen), e do cortejo de homens passivos desejosos de a inspirarem. Provavelmente, rabiscaria umas pantominices acerca da mulher emancipada e tal. À semelhança dos demais cultos contemporâneos, o feminismo não presta atenção à racionalidade. A ideia é estabelecer um quadro das regras que devem regimentar a humanidade, e de seguida catar exemplos de violação das regras. Por fim, convém punir os prevaricadores. Não sei se há ironia no facto dos filhos e dos netos dos campeões do “amor livre” lutarem por abolir os últimos vestígios de liberdade do amor, e reduzi-lo a um reflexo contratual, um inventário de critérios, uma caricatura repulsiva da coisa autêntica. Sei que os novos puritanos fazem os antigos parecer tolerantes. E escassos: fica a impressão de que, hoje, meio mundo vigia a metade restante.
É um mundo fragmentado e desolador, repleto de beatos e bufos. Uns são genuinamente tresloucados, os pragmáticos fingem. Todos sonham construir carreiras assim, a denunciar, a perseguir, a excomungar, a destruir quem calha e a propósito do que calha. Começa-se pelos negócios, pelo ambiente, pela comida e termina-se na cama. E não promete terminar nunca. Embora metam dó, os novos puritanos metem principalmente medo.
COMENTÁRIOS
Cipião Numantino: Hoje o nosso estimado AG brinda-nos com uma história de amor. Quer dizer, amor que rima com desamor e encontro que rima imperativamente com desencontro. Vidas atribuladas em que os desencontros teriam sido bem mais expressivos que os encontros que isto de se viver uma vida sem peias ou freios sempre aporta vicissitudes várias. Numa alegoria recorrente que, para se apreciar o doce, teremos fatalmente que saborear o amargo. É isto, é justamente isto, que os adeptos do caos e da bufaria jamais conseguem ou algum dia conseguirão compreender. E é como AG bem expressa que se torna caricato que os descendentes do Maio de 68 e de Woodstock se tenham engajado numa imensa urdidura de bufaria onde a ética e a honra são mais raros do que cobra espojando-se ao sol num intenso dia de nevoeiro.
Já nada parece ter ou fazer sentido. E comparado com esta seita ardilosa que nos vão confinando em compartimentos estanques, os PIDES, seriam autênticos meninos de coro. Pelo menos muitos deles usavam o esquema como mero instinto de sobrevivência enquanto, os actuais pidescos, rebolam-se de gozo na iniquidade e espumam freneticamente no deleite de cercear a liberdade do próximo e de provocar sofrimento.
Esta gente é profundamente miserável. Miserável nos propósitos e ainda mais miserável nas acções onde infligir danos e incómodos a terceiros é uma espécie de profissão de fé. Gente infeliz e frustrada que sentindo-se confinada no seu carácter mesquinho tudo fazem para que os demais se perfilem como clones deles próprios.
A História está cheia de casos e situações deste tipo. E, invariavelmente, acabam sempre por ser esmagados pelas suas próprias contradições. Quanto mais não seja porque a liberdade é um dos mais fortes sentimentos humanos e do caos sempre acaba por brotar a bonança. Muitas vezes surgindo atitudes musculadas por parte das sociedades num paradigma de acção vs reacção que pode levar algumas vezes a confrontos que se tornaram altamente violentos. O problema é que enquanto esse tipo de ajustes não se activam e a dialéctica que os precede não exerce o seu recorrente caminho, todo este tipo de coisas provoca imenso sofrimento. Tenho a firme sensação que nos encontramos numa espécie de beco sem saída. O descaramento e audácia desta seita que nos pretende condicionar a bolsa e a vida está a tornar-se decididamente insuportável. Se, sob qualquer forma, não tivermos ousadia de afrontar esta rebaldeira canalha poderemos provavelmente contar com uma nova idade das trevas em que pelo menos metade da população praticava a bufaria contra a outra metade.
Muita gente foi garrotada, outros arderam nas fogueiras heréticas e outros apodreceram nas enxovias dos cárceres da Inquisição. Muitos responderão: pois, mas essas coisas tinham a ver com questões religiosas! Acham mesmo? Não é o esquerdismo niilista uma espécie igualmente de religião? Responderão ainda outros: credo, que exagero, ninguém foi ainda expulso do país e ainda menos queimado na fogueira. Mas é claro que não!
Mas Roma e Pavia não se fizeram num dia e, com o tempo, lá acabarão por chegar. Quanto mais não seja lembro quem me lê que os ascendentes directos desta malta que nos atazana agora a vida mataram cerca de 500 milhões de pessoas como quem bebe um copo de água. Sem aliás qualquer sentimento de culpa já que nas suas cabecinhas vazias e alucinadas pensavam com tais actos promover a revolução e criar o tão propalado homem novo. O misticismo dessa gente pouco difere de semelhante propósito religioso. Convencem-se a eles próprios que infligem sofrimento em prol de um resplandecente futuro seja em nome de amanhãs que cantam ou de pretensas igualdades racial ou social. No fundo, bem no fundo mesmo, esta gente é na sua grande maioria sociopata.
E não é por virem com milongas doces e cheias de subtilezas que deixam de ser seres altamente ignóbeis. Trampa social que há que confinar tenazmente pois, tal como a Hidra de Lerna, sempre lhe nasce uma nova cabeça quando uma destas é cortada!...
Ruik Krull: Alberto Gonçalves, já devias estar mais que preparado para este mundo de hienas mas, lembra-te que cada uma dessas traiçoeiras sozinhas são umas cobardolas, não prestam pra nada.
MCMCA: tem toda a razão porque ciclicamente uma pequena parte da humanidade, que se auto-intitula de moderna e civilizada, investe puritanamente contra uns tantos que não professam a religião do momento, aterrando a maioria que, covardemente, se cala por receio de ser apontada a dedo como não pertencente ao grupo dos “civilizados”. E, assim se criaram goulags, campos de extermínio nazi e fogueiras da Inquisição. A cruzada contra quem não pensa como eles está aí e prepara-se para destruir conduzindo-nos, tal como os outros processos destrutivos, a um retrocesso civilizacional caracterizado pela profunda intolerância

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