E a curiosidade ultrapassa a “seca”
deste “romance” de “ameaços “, de avanços aparentes, de recuos consistentes, de
atrevimentos e zangas, de “cada vez mais na mesma”, que um dia terá o seu fim,
e não será o “casaram e foram muito felizes”, que já ninguém acredita possível,
vivendo-se cada vez mais numa época assexuada, talvez por excesso de apetências
concretizadas, talvez por um excesso de exacerbação, de “vidros partidos” e não
só pelos arruaceiros de encomenda. Mas que sabemos nós? Mais uma análise
apenas, fundamentada com apoios bibliográficos, de referências e deduções… Desta vez de Cátia Bruno, no Observador.
A conjuntura é mais favorável do que
nunca para o primeiro-ministro, que conseguiu um acordo ao mesmo tempo que
domesticou os sectores pró-Brexit mais radicais. Difícil é convencer os
trabalhistas.
CÁTIA BRUNO OBSERVADOR, 24
oct 2019
“Na
segunda-feira, os membros terão oportunidade de debater e aprovar uma moção
sobre eleições antecipadas”. Foi com esta frase que o ministro dos
Assuntos Parlamentares, Jacob-Ress Mogg,
oficializou na Câmara dos Comuns aquilo que já tinha sido insinuado pelo
Governo ao longo da semana: Boris Johnson
e o seu Executivo irão voltar a tentar forçar uma ida às urnas esta
segunda-feira, já depois de ter provavelmente sido concedido um adiamento
do Brexit pela União Europeia (UE). E até já há data para a votação: 12 de
dezembro, a caminho do Natal.
Esta será a segunda vez que o Governo de
Boris insiste em apresentar a votação uma moção
sob a Lei dos Mandatos Fixos Parlamentares, para que sejam convocadas
eleições antecipadas. E, tal como da primeira vez (em setembro), o problema
para o Executivo é só um: a moção
necessita de ser aprovada por dois terços da Câmara dos Comuns, tornando por
isso o apoio do Partido Trabalhista fulcral.
Mas se no Brexit há muita coisa que se
mantém teimosamente no mesmo lugar, também há muito que muda: entre setembro e outubro, Boris Johnson
conseguiu renegociar um novo acordo com a UE, o que não é de somenos. E todos os
outros pontos que já o motivavam a tentar este golpe de sorte, que é provocar
eleições para sair reforçado, mantêm-se. Razão pela qual Boris deseja,
mais do que nunca, ir a votos. Mas porquê, afinal?
As sondagens dão-lhe vantagem
Em primeiro lugar, os números, que não
mentem. O Partido Conservador segue
destacadamente à frente nas sondagens desde que Boris Johnson se tornou o seu
líder, em julho — e essa liderança não só tem sido mantida como tem até
atingido níveis melhores ao longo dos tempos.
De acordo com os dados mais recentes do YouGov, de 21 de outubro, os tories têm
actualmente 37% das intenções de voto, contra apenas 22% do Labour — uma
vantagem de 15 pontos percentuais. É preciso recuar a 4 de março deste ano para
encontrar um momento melhor para o Partido Conservador (40%), aí ainda sob a
liderança de Theresa May, numa altura em que a primeira-ministra negociava
alterações com a Comissão Europeia ao seu acordo (que ainda tinha sido chumbado
apenas uma vez). Nessa altura, os trabalhistas também estavam mais perto de
morder os calcanhares aos conservadores, com 31% das intenções de voto.
Se tivermos em conta o sistema eleitoral
britânico, o first past the post, o cenário é ainda mais apetecível para
Boris Johnson, já que este é um sistema que favorece o vencedor em termos do
número de deputados na Câmara. Em agosto, quando os conservadores
reuniam cerca de 30% das intenções de voto nas sondagens, a Foreign
Policy estimava que isso pudesse render-lhe uma maioria absoluta no
Parlamento de cerca de 30 deputados de vantagem — o que contrasta com a maioria
negativa que tem actualmente, depois de mais de 20 deputados do partido terem
sido expulsos e de os 10 deputados dos aliados do DUP terem votado contra o seu
calendário para um acordo.
O acordo que conseguiu com a UE alarga a
sua base de apoio
Poucos
previam em julho, quando Boris Johnson tomou posse como primeiro-ministro, que
a sua estratégia inflexível de ameaçar a UE com um no deal poderia ser eficaz
em fazer os europeus negociar — mas foi isso, de facto, que acabou por
acontecer, muito embora o Governo britânico tenha cedido também bastante
durante a maratona negocial.
Até aqui, Boris foi consolidando a sua vantagem
ao comer eleitorado aos Brexiteers mais radicais: ao prometer que iria sair a 31 de outubro, “aconteça o que
acontecer”, conseguiu roubar votos ao Partido do Brexit e neutralizar Nigel
Farage e conseguiu também domesticar a ala mais eurocéptica do seu partido, do
European Research Group, que depositou fé em Boris desde o primeiro dia.
Depois das últimas semanas, com um
acordo alcançado em Bruxelas, o primeiro-ministro fez a quadratura do círculo: manteve esse apoio dos que querem o Brexit
“custe o que custar” e ainda consegue apelar aos conservadores mais moderados
que não querem uma saída sem acordo (e alguns trabalhistas pró-Brexit, de
bónus). Com este acordo, Boris faz o 2 em 1 e reúne todos
os apoiantes de um Brexit (seja ele de que tipo for) à sua volta. Perde apenas os unionistas da Irlanda do
Norte, desagradados com o acordo — mas essa também é uma região que
sempre foi fortemente pró-Remain e que, portanto, pode parecer aos olhos do
primeiro-ministro como um dano
colateral, se for compensada por ganhos para o próprio partido
noutras zonas.
E, apesar de ir claramente falhar na sua
promessa de sair a 31 de outubro, não parece que isso lhe venha custar votos.
Como? Isso leva-nos ao próximo ponto…
A vitória em eleições seria uma legitimação
Até aqui o primeiro-ministro apostou
todas as fichas numa estratégia de colocar
o Governo contra o Parlamento (e até os tribunais), numa lógica de quem afirma
que está a tentar conseguir o Brexit, mas é travado por todos os lados, por
várias forças a favor de uma manutenção na UE.
Se conseguisse ir a eleições e saísse
vencedor desse acto eleitoral, Boris veria essa estratégia vingar e poderia
combater as acusações da oposição, que falam num líder ilegítimo e indigno do cargo. Por um lado, é-lhe frequentemente
apontado que não foi eleito pelo povo (tendo sucedido a Theresa May num
processo interno do partido) e esse argumento deixaria de colher; por
outro, veria vingada a sua afirmação
de que a decisão do Supremo Tribunal de considerar a suspensão do Parlamento
ilegal não faz sentido — pelo menos para a maioria do eleitorado, embora possa
fazer sentido para os juízes.
Isso
mesmo já tinha
apontado ao Observador o especialista em Ciência Política
Simon Usherwood, em finais
de setembro, após a decisão do Supremo: “Ele
quer retratar isto como uma situação do povo vs. a elite, como se o
Parlamento e os tribunais estivessem a tentar impedi-lo de retirar o Reino
Unido da UE a 31 de outubro. Se aquilo que ele quer é uma eleição, esta pode
ser uma estratégia que lhe serve”, disse à altura o professor da
Universidade de Surrey.
A estratégia de ir às urnas para sair
reforçado não é de agora
Não é de todo novidade que Boris Johnson
deseja há muito ir a eleições, para tentar
conseguir inverter a tendência da antecessora, Theresa May. Esta
dispunha de uma maioria parlamentar e convocou eleições antecipadas na
esperança de a alargar — mas acabou por falhar nesse objectivo e acabar a ter
de cozinhar uma aliança parlamentar com o DUP para ter maioria na Câmara.
Boris
procura fazer o oposto: partir de uma maioria que era magra, chegando a ter um
Governo por vezes minoritário na Câmara (foram mais as votações que perdeu do
que as que ganhou), convocar eleições e transformar essa maioria instável numa
clara maioria absoluta.
Nada de novo. Já em Agosto surgiam
vários rumores de que poderia ser essa a estratégia do primeiro-ministro,
assentes em vários dados: a contratação do estratega e operativo eficaz do
referendo Dominic Cummings, conjugado com um programa de Governo apostado em
investimento público (sobretudo no Serviço Nacional de Saúde) eram argumentos
fortes que apontavam para uma lógica de campanha eleitoral dentro de Downing
Street. “Isto, conjugado com uma
campanha publicitária pelo Brexit, parece mesmo que se estão a preparar para
uma eleição lá para setembro, outubro ou novembro”, dizia à
altura ao Observador o professor Paul Webb, da Universidade de Sussex.
A proposta que Boris Johnson apresentou
no Parlamento para convocar eleições antecipadas em Setembro confirmou isso
mesmo. E agora a nova moção, em finais de Outubro, volta a apontar na mesma
direcção. A estratégia não mudou.
Quer aproveitar as fragilidades do
Labour — mas esse também pode ser o seu problema
Tudo isto só resulta porque, do outro
lado dos Comuns, o maior partido da oposição está fragilizado, muito
embora esteja longe do poder há anos. Com Jeremy Corbyn à frente do partido,
o Labour tem levado a cabo uma estratégia
hesitante face ao Brexit, que parece não convencer alguns eleitores,
porque tenta agradar aos dois lados da barricada no tema. Corbyn afirma
que, com um Governo do Labour, seria negociado um novo acordo para o Brexit,
mas este seria referendado, dando oportunidade a todos para se pronunciarem. O
líder só não clarifica pelo que é que faria campanha nesse acordo.
E
essa posição tem tido consequências nas sondagens, como explicou
ao Observador Steven Fielding, especialista no Partido Trabalhista:
“Esta posição que o Labour tem tido, de tentar agradar tanto aos que votaram Leave
como aos que votaram Remain, não está a funcionar. Basta ver as eleições
europeias, onde perderam cerca de 30% dos seus eleitores”, apontou o professor
da Universidade de Nottingham. “O problema de Corbyn é que, a não
ser que altere a sua política face ao Brexit e torne o seu partido num partido
pró-Remain, irá dividir os votos com os liberais-democratas e fragmentar o
eleitorado, enquanto que do outro lado Boris Johnson agrega os votos à sua
volta”, analisava Fielding em
inícios de setembro.
Os conservadores sabem-no e tentarão
explorar essa fragilidade, sobretudo em zonas tradicionalmente trabalhistas,
mas pró-Brexit, como as Midlands ocidentais ou o nordeste do país, explica a Spectator: “Irão
argumentar que um voto no Labour é um voto num segundo referendo inquinado a
favor do Remain e que virá aí mais um ano de disputa sobre o Brexit”, resume a
revista.
Mas são precisamente estas fragilidades
— e, uma vez mais, os números das sondagens, que não enganam — que podem fazer
com que os trabalhistas não mordam o isco e não aprovem esta ida às urnas.
A
confirmar-se o adiamento do Brexit esta sexta-feira, seria
estranho que não o fizessem, já que Jeremy
Corbyn tem dito repetidamente que apoiaria eleições antecipadas caso o país
esteja livre do risco de um no deal. Ainda esta quinta-feira, já depois
de ser conhecida a intenção do Governo, reforçou isso mesmo: “Ando a pedir
eleições desde que tivemos a última, porque este país necessita de uma para
lidar com todos os problemas de injustiça social que tem — mas o no deal tem de sair de cima da mesa.”
Isso
não significa, contudo, que a aprovação esteja garantida para Boris Johnson. Em caso de
adiamento curto, o mais certo é o Labour argumentar que o risco se mantém. Em caso
de extensão até finais de Janeiro, o jogo de retórica complica-se, mas não
seria a primeira vez que o Labour conseguiria dar a volta ao texto. Dentro do
partido, há quem ache que é altura de ir a jogo: Bring it on, disse a Momentum, associação da sociedade civil vista como muito
próxima de Corbyn.
Mas também há quem esteja totalmente
contra essa hipótese e já ensaie outros argumentos: “Esta ‘oferta de eleições’
é uma ameaça vã [de Boris] para esconder a sua própria hesitação e atraso em
apresentar de novo o acordo ao Parlamento”, apontou a deputada Lucy Powell, que prefere
focar tudo no jogo parlamentar e nas discussões sobre o calendário do acordo
proposto pelo primeiro-ministro.
Esta segunda-feira saberemos qual
das correntes de pensamento do Labour saiu por cima e se Boris Johnson
conseguiu o que quer. Mas, como diz o ditado, é preciso ter cuidado com o que
se deseja. Porque em política tudo é imprevisível e, em tempos de Brexit, não
há dados adquiridos — muito menos a vitória numa eleição.
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