quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Para mim isto é chinês



O que sempre me desvalorizou, por tanta incompreensão em relação aos trocos com que lido – tanto agora, no tempo do euro, como dantes, no tempo do escudo, que se dizia moeda sem valor, apoiada numa economia sem apreço, apesar do vinho do Porto do orgulho nacional, juntamente com a cortiça e os azeites. Mas a China é outra coisa, domina espaços cada vez mais amplos, de gente cada vez mais espalhada, nas lojas das muitas tralhas, dirigidas por gentes estáticas, sem dias santos nem feriados, nem horas de lazer, de sol a sol, mudas e quedas, colaborantes com os seus chefes de mansidão só aparente, e prestáveis aos yuans do seu império. Só me pergunto se têm vida própria ou se esta também é desvalorizada em termos devoção exclusiva aos seus mandatários de aparência impassível, que jogam pela calada, numa mansidão infiltrante, superior actualmente à do ciclo das águas, nas vastas áreas a desertificarem-se, por este mundo de Cristo. Salles da Fonseca é economista, ele lá sabe o que diz, e a gente lê-o com alegria, por tanta vida, a superar outros problemas, mais importantes, afinal, do que esses dos yuans ou ienes de maior ou menor monta, gente que de vez em quando fecha as portas em falência aparente, não de desvalorização própria, mas de desprezo por nós, para não pagarem os impostos  dessas firmas-fantoche, que logo a seguir reabrem, sob idêntico formato, sem empregados a quem tenham de pagar ordenados e a quem devam estipular horários que os próprios não têm, desvalorizada essa vida humana, gerida lá de longe, mansamente, decisivamente, numa eficiência mecanizada e sem alma …
Quanto vale o yuan? Eu diria “quanto vale o ser humano” para esse estranho “Império do Meio” avassalador,  do nosso espanto sem quebras.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 15.10.19
QUANTO VALE O YUAN
As conversas são como as cerejas: agarrada a uma vem sempre outra e assim por aí além…
Já não sei como começou mas lembro-me de termos passado pela polémica marca chinesa de telemóveis e termos chegado ao valor real do Yuan.
E a questão a que chegámos, afinal, centra-se no conceito mais inesperado, na palavra «real», não no «valor». Que valor algum há-de ele ter, quanto mais não seja o que o Decreto determina.
Mas centremo-nos no que está em causa: quanto vale o Yuan?
E aqui se dividem as opiniões entre os que dizem que…
… está sobrevalorizado porque, depois de ter absorvido toda a massa quase incalculável das «senhas» (não convertíveis) que circulavam entre os chineses comuns, deveria ter-se desvalorizado para níveis certamente muito mais baixos do que o definido por Decreto;
está subvalorizado para facilitar as exportações e dificultar as importações.
Desde já me coloco do lado dos que acusam o Yuan de estar sobrevalorizado. Porquê?
Porque uma moeda cujo valor é definido por Decreto, não representa certamente uma economia transparente em que os preços se formem livremente. E isto mantém-se válido apesar de, entretanto, o Yuan ter sido indexado a um cabaz de moedas credíveis como são o Dólar americano, o Euro, o Yen e o Won da Coreia do Sul. Só que o valor de base é duvidoso pois ninguém me faz acreditar que a absorção de toda a massa monetária não convertível (o Renminbi não convertível) pelo sistema de uma única moeda em toda a República Popular da China, não tenha provocado grande mossa no valor da moeda que já então era convertível, o Yuan. E mais ainda, o «gato escondido com rabo de fora», revela-nos o Yuan, o Dólar de Hong Kong e a Pataca com o mesmo valor. Tudo cheira a artificial e, por causa da tal absorção da moeda não convertível, cheira a falsidade no sentido da sobrevalorização – o Yuan deveria ter um valor muito mais baixo.
Mas, para além destas anormalidades, há ainda outra que tem a ver com o volume de dinheiro anualmente lançado no mercado quando os orçamentos do Partido Comunista Chinês e das Forças Armadas chinesas são segredo de Estado. Qual a política monetária que sustenta uma tal opacidade orçamental? Sim, tudo me cheira a falso.
Quanto à hipótese de o Yuan já estar subvalorizado para sustentar as exportações e dificultar as importações, tenho a recordar que as desvalorizações…
… ou são discretas e decretadas depois do encerramento das grandes praças financeiras, de preferência ao final da tarde de 6ªs feiras para dar tempo à digestão do novo câmbio (até à 2ª feira seguinte) pelos mercados, ou…
… ou são deslizantes – o chamado «crawling peg» - de modo a que os preços se vão adaptando ao ritmo anunciado da própria desvalorização deslizante.
Em ambas as desvalorizações, os operadores económicos são beneficiados com a informação suficientemente atempada para se poderem adaptar aos novos câmbios e na respectiva correspondência a nível dos preços no mercado doméstico. E na actual sociedade da informação, é inútil pensar que o efeito surpresa exista.
Ora, se o instrumento da competitividade cambial era o efeito surpresa, então ele nunca existiu e actualmente, com a globalização, menos eficácia tal efeito poderia ter. A menos que haja preços tabelados e respectivo controlo policial, nessa situação, a ruptura dos abastecimentos só será evitada pelos mercados paralelos.
Eis por que cada vez mais tenho a política cambial por decreto como um bluff que, para além do mais, tenta esconder os factores da incompetitividade da economia cuja moeda é sujeita a tais desvalorizações. E a China tem outros motivos de salvaguarda da sua competitividade internacional a começar pela inexistência de sindicalismo livre e, consequentemente, pela prevalência de um mercado esclavagista de trabalho.
Então, se eu não acredito na política cambial que possa ou não estar subjacente ao Yuan, para quê preocupar-me com o tema?
Muito simplesmente porque a República Portuguesa se empenhou não há muito tempo em Yuans e o valor dessa moeda deixou de me ser indiferente: quanto mais desvalorizada, melhor para nós, seus devedores. É que eu, ao contrário de um tal que por aí anda, acho que as dívidas devem ser pagas – mas, se pudermos beneficiar de alguma desvalorização da dívida, tanto melhor.
15 de Outubro de 2019
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca, 15.10.2019: Abraço. Jorge C.
Isabel Pedroso, 16.10.2019: Para o português mais genuíno dos poucos que existem por aí, vai toda a minha gratidão, por tudo o k tão bem escreves k nos ajuda a arejar a mente e muitas vezes a abrir horizontes, ainda bem k existes queremos é mais gente assim 
Anónimo, 16.10.2019: Apenas dois ou três comentários breves, Henrique: Na realidade desconheço se o yuan está sobrevalorizado ou não, mas não me custa aceitar que o esteja. Refiro, todavia, que, quando necessário, as autoridades chinesas desvalorizam a moeda para facilitar as exportações e dificultar as importações. Foi o que fizeram no início de agosto último perante o anúncio da Casa Branca de nova tarifa aduaneira adicional de 10% sobre produtos chineses a ter lugar a partir de setembro. O yuan fixou-se no patamar mais baixo dos últimos 11 anos, tendo gerado uma queda das bolsas e de moedas de países emergentes, em paralelo com a subida do dólar dos EUA. Logo a Casa Branca denunciou manipulação da moeda chinesa, como forma de a China ganhar vantagem competitiva injusta no comércio internacional. Mas o FMI veio de imediato afirmar que não confirmava aquela acusação, porquanto, segundo a sua opinião, o yuan tem estado “amplamente alinhado” com os fundamentos económicos. E assim vai a guerra comercial e cambial sino-americana… Sublinho também as declarações da Presidente do IGCP, desta semana, em que afirma que, de momento, não é prioridade a emissão de dívida em outras divisas que não o Euro, a fim de não dificultar o programa do BCE. Recorde-se que a emissão de dívida pública em moeda chinesa teve como objetivo, segundo então anunciado, atrair novos investidores.
Finalmente, e tanto quanto me recordo, quando Macau estava sob administração portuguesa, tínhamos já o cuidado, atendendo à interdependência das duas economias, de alinhar a pataca ao dólar de Hong-Kong e ambas as divisas estavam alinhadas, em geral, ao dólar de EUA (alinhadas, não paridade). Abraço.
Carlos Traguelho
Henrique Salles da Fonseca, 16.10.2019: M/ Caro Dr. Salles da Fonseca, Ora aí está uma questão bem colocada. Eu começaria por responder que o Yuan não é "dinheiro", é a "unidade monetária" em que se expressam as dívidas livremente transmissíveis do Banco Central da RP China e dos Bancos Comerciais chineses. É a liquidez, por lá. Como a liquidez denominada em Yuan não é livremente transmissível entre não residentes na RP da China, nem entre residentes e não residentes na RP China, representa certamente "dinheiro" (isto é, terá funções monetárias plenas) no território da RP China para quem aí resida (designando-se, então, renmimbi), mas terá funções monetárias (poder liberatório e reserva de valor) muito limitadas no exterior. No território da RP China: (i) pagam-se os impostos entregando saldos de liquidez em Yuan; (ii) extinguem-se dívidas, mesmo em processo de execução judicial, entregando saldos de liquidez em Yuan; (iii) os Bancos Comerciais estabelecidos na RP China têm a sua Base Monetária denominada em Yuan. A liquidez em Yuan é um facto, mas é algo que só a eles diz respeito. No exterior da RP China: (i) nem é possível pagar impostos entregando saldos de liquidez em Yuan; (ii) nem o credor a quem seja oferecido um saldo de liquidez em Yuan está obrigado a considerar o seu crédito pago, e a dar a correspondente quitação; (iii) alguns Bancos Comerciais podem deter activos financeiros em Yuan, mas encontrar-se-ão expostos ao risco cambial, porque a sua Base Monetária está expressa noutra liquidez. O Yuan não é ainda uma divisa livremente convertível (talvez venha a ser um dia). Em regime de câmbios flutuantes (que não é o que se passa na RP China), a liquidez em Yuan vale exactamente aquilo que um não residente na RP China esteja na disposição de pagar por um saldo de liquidez em Yuan.
Como o Banco Central da RP China tem descomunais Reservas em divisas convertíveis é ele, apesar de ser residente, o primeiro e principal comprador de saldos de liquidez em Yuan (vendendo divisas convertíveis) - e o primeiro e principal vendedor de saldos de liquidez em Yuan (comprando divisas convertíveis). E, em determinadas circunstâncias, está sempre comprador e sempre vendedor: é um "Market-Maker".
Agora a resposta à questão inicial: Enquanto o Banco Central da RP China nadar em divisas convertíveis, o Yuan (leia-se: a liquidez denominada em Yuan) valerá exactamente aquilo que ele estiver na disposição de pagar ou entender pedir. Abraço António Palhinha Machado

Anónimo, 16.10.2019: Como te tenho dito, Henrique, foi no teu blog que fiz a minha estreia de comentador, e sempre que comento fico com a ansiedade da dimensão do comentário, procurando que ele seja ligeiro, não muito profundo, nem demasiado técnico. Tive a sorte de ler dois comentários do nosso António Palhinha Machado, um sobre o futuro (?) aeroporto e agora este, e vejo que o António, e bem, naqueles temas que comenta, fá-lo com profundidade, concorde-se ou não com os seus argumentos. Ainda bem que assim é, até pela valorização que isso carreia para o blog, mas eu vou manter as características acima citadas quando me permitires, Henrique, que comente algo. Com licença tua e da do António, e para benefício dos leitores do blog, vou avançar com alguns conceitos ou esclarecimentos para simplificar as questões. Como diz o António, o yuan é uma unidade de conta (como era o conto português, ou como são os Direitos Especiais de Saque, do FMI, de que, infelizmente, num passado recente, muito ouvimos falar), enquanto o renminbi (RMB) é o nome da moeda oficial chinesa. Em linguagem correcta, diz-se que o RMB se valorizou e não que o yuan se valorizou. Por outro lado, fala-se que o preço de uma mercadoria é de 5 yuans e não de 5 RMB. Para complicar um pouco mais a situação, existem dois RMB – um onshore, para uso só na China, que não é convertível, penso, e outro externo, offshore, convertível, não sei, confesso, se inteiramente, ou com algumas limitações. Não estou totalmente de acordo com o último parágrafo do António (mas isso é um pormenor), pois, como dei nota, existe alguma supervisão sobre o comportamento da moeda chinesa (veja-se a atitude do FMI, por mim recordada, perante a acusação da Casa Branca de manipulação da moeda chinesa). Já agora, aproveito a oportunidade de ter voltado ao espaço de comentários ao teu artigo, Henrique, para, em relação também ao teu último parágrafo, informar que, tanto quanto sei, a emissão de dívida pública portuguesa, em RMB, foi objecto de imediato swap, pelo que não está denominada, para efeitos de risco cambial, nessa moeda. Vou pedir-te licença para transmitir aqui um sentimento íntimo de “realização”, quando no início da década 90 do século passado, passou a circular em Macau uma nota de 5 patacas, com a minha assinatura, na qualidade de administrador do Banco Nacional Ultramarino
Um abraço para o Henrique e outro para o António.
Carlos Traguelho


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