terça-feira, 8 de outubro de 2019

Tal como na balada



“Os passos imprime e traça na brancura do caminho…” É o caso destes textos de Salles da Fonseca, contando-nos coisas, suavemente, mas com técnica certeira, como a neve que cai na tal balada do Augusto Gil, insistente e proporcionando vinco. Coisas que gostamos de saber, que levam o traço suave do ensinamento e da filosofia de vida e de sociedade, com o seu quê de leve ironia e muito aprazível para nós, hoje.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÂO, 07.10.19
Que Nietzsche se dedicava à música era tema meu desconhecido até ter começado a ler a biografia escrita por Sue Prideaux com edição portuguesa do Círculo de Leitores, Abril de 2019. Pelos vistos, sentava-se ao piano e lia à primeira vista qualquer partitura que lhe pusessem à frente e era também reconhecido nos meios estudantis como um grande improvisador.
Estando já na Suíça a dar aulas de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, teve também oportunidade de se dedicar à composição. A amizade próxima que o ligava ao casal Wagner também o incentivaria nesse sentido.
E porque queria saber o que o Mestre pensava da sua obra, decidiu certo Natal oferecer uma composição a Cosima, mulher de Wagner e filha de Liszt, que se prontificou a tocá-la em conjunto com Hans Richter pois que se tratava duma peça a quatro mãos.
Mas as relações de Wagner e Nietzsche vinham azedando pois o compositor era totalmente germanófilo e o filósofo era a favor da Cultura Universal cuja sede era então em Paris. Mas, para além desta questão político-cultural, havia outro motivo de azedamento das relações entre os dois homens: querendo Nietzsche publicar o seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, enviou o manuscrito ao editor de Wagner sem nada lhe dizer, o que levou o compositor a uma enorme irritação. E esta, sim, mais do que a discórdia política, foi a razão do muito mau feitio de Wagner para com Nietzsche naquela época. Mas, mesmo assim, o filósofo foi convidado para passar o Natal com os Wagner e, pelos vistos, também com o maestro Richter.
Retomando o fio, transcrevo da pág. 123 e seg. da obra citada:
«Nietzsche considerava-se um compositor com algum talento e sentia-se exultante com a expectativa da admiração de Wagner. Quando Hans Richter e Cosima Wagner se sentaram finalmente ao piano de Tribschen para tocar o dueto para Wagner, o Mestre deu sinais de impaciência durante os vinte minutos que demorou a execução. A peça era típica das composições de Nietzsche neste período, um «pot pourri» de Bach, Schubert, Liszt e Wagner. Desconexas, demasiado emotivas e curtas no desenvolvimento, as suas composições despertam invariavelmente a ideia de que, caso tivesse vivido até mais tarde, talvez pudesse ter conhecido o êxito como compositor de música de cena para o cinema mudo. No entanto, por muito que rissem em privado, Wagner e Cosima calavam a fraca opinião que tinham da peça. Ela agradeceu-lhe a «bela carta» que acompanhava a prenda, mas não fez qualquer referência à música em si
Posto o que a filosofia ficou com mais tempo na vida de Nietzsche.
Lisboa, 7 de Outubro de 2019
Henrique Salles da Fonseca
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