Um texto de Maria João Avillez, no seu
tom de suspense, que se vai desenrolando com a delicadeza de quem conhece da
vida, nas suas várias facetas, e de quem reconhece o valor das causas e das
gentes, e que, ao invés de usar o discurso objectivo tantas vezes impregnado de
realismos descritivos para chocar ou criar a gargalhada tosca, se rodeia de
todos os requintes linguísticos para simultaneamente exprimir incredulidade e
admiração, sem nunca expor as causas da primeira, exibindo, pelo contrário, uma
prestação de profunda gratidão pelo milagre da vida, na sua dimensão vária. Um
texto que nos faz desabar em lágrimas, por eles todos - os responsáveis que se
empenham em torno dos a quem restam, inesperadamente, virtudes e competências,
estes, a quem se deseja que continuem assim. Emoção de pena, emoção de
admiração, súplica de mudança que um caminho desses, de empenhamento
acompanhado, pode favorecer. E gratidão, afinal, por uma cronista humana, de
requinte e delicadeza, no tracejar descritivo e omisso do que a comoveu, e
igualmente a nós, só pela leitura e as fotos…
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A
dificuldade de contar era directamente proporcional à incredulidade que
suscitaria, mas não tinha eu “visto”? E o desafio não era afinal a descoberta
de que “ali” também podia escorrer o talento?
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR,
16 oct 2019
1- O
talento não tem morada, pousa sem anúncio e cintila onde quer. O que o pode tornar diferente, ou muito diferente, é
o seu eco e nisto mesmo, nesta espécie de ingrata contabilidade, reflectia eu,
assistindo, no salão nobre de um hospital, a um desfile de roupa produzido
pelas suas doentes. Desafiante gesto, portanto. À mesmíssima hora e dia em que
ocorria a Moda Lisboa onde os criadores nacionais expunham o melhor da sua
inspiração e do seu traço, numa fértil mistura de “melhores”, ali no Centro
Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL) — ex-Júlio de Matos — também se
tratava de melhor, mas de um outro, mais delicado. Um melhor “diferente” e
nesse sentido esta coincidência temporal entre “modas”, não me deixou incólume:
de um lado a predisposição para o brilho e o aplauso;
do outro, um espectáculo caseiro, numa revelação quase escondida, confinada
àquelas quatro paredes e no entanto, também capaz e oh quanto, de cintilação. Tão surpreendente que percebi que era quase
obrigatório contá-lo. Tarefa à partida espinhosa – a dificuldade de contar,
surgia-me como directamente proporcional à incredulidade que suscitaria – mas
paciência: não tinha eu “visto”? E o desafio não era afinal o meu próprio
confronto com descoberta de que “ali” também podia escorrer — e escorreu — criatividade
e o talento para a concretizar?
2- Celebrava-se
o Dia da Saúde Mental – seja lá o que isso signifique para esta espécie de
estorvo na Saúde Pública — de modo
que o CHPL que mora naquele vastíssimo recinto arborizado de 23 hectares em
plena Lisboa, se sentiu naturalmente convocado. Como ali colaboro, já aqui um
dia dei notícia da pulsação de vida que ocorre, em circunstâncias
complexíssimas, nos múltiplos pavilhões deste hospital psiquiátrico; da
qualidade clínica e humana dos seus técnicos e profissionais, da generosidade
que a tudo atende num constante, ininterrupto, fazer de omeletes com poucos
ovos. Também contei que lá existe uma Rádio (“Aurora”, de seu nome, que
emite “a sério”), exposições de artes plásticas onde artistas de renome
colaboram com doentes do hospital, ateliers de costura, cozinha, e tanto mais.
A celebração do dia da Saúde Mental vivia-se – e viajava — por alguns
lugares daquela imensa área, através de diversos gestos, “mostras” e
ocorrências mas o que desta vez me acendeu a curiosidade foi o observar ao vivo
o trabalho da “Ar’Cos
(artesanato e costura) , assim
se chama esta “valência” da Unidade de Terapia Ocupacional. Como me explicaram ela é ao mesmo tempo “um fórum com
actividades sócio ocupacionais no domínio da costura, destinado a utentes do
CHPL, para promover e disponibilizar-lhes condições para o desempenho de actividades
ocupacionais e socialmente úteis, através do desenvolvimento das suas
capacidades criativas e criadores”.
Palavras
demasiado áridas, porventura e que talvez ponham a milhas de distância desta
crónica os leitores mais apressados ou distraídos embora mesmo assim, eu faça
questão de dizer o que habita por de trás da secura cortante deste vocabulário:
habita uma vontade de afirmação que abata a “diferença”; um talento e uma
criatividade que por serem olhados ao viés, não diferem afinal assim tanto dos
talentos “oficiais”; habita a desarmante naturalidade que envolveu este
acontecimento, posta e transposta na firme decisão em fazer “como os outros”,
quando não se é exactamente como eles. Como se não houvesse distância, muros, o
selo do estigma. Como se não houvesse “diferença”.
3- Júlia
Melão, alta e elegante como os vestidos que
idealiza, é “monitora de design criativo” no CHPL e pintora e decoradora de interiores em (escassos) tempos livres. Percebe-se que é uma
“inspirada”, tudo nela o sinaliza. Concebeu todos os modelos exibidos nas
edições destes desfiles anuais, esta foi a sexta. “Ponho o pano à minha
frente e corto… e depois vejo nascer uma peça de roupa”, diz ela como se fosse
só assim: “O que talvez seja inovador é que tudo é criado aqui, feito aqui e
vendido aqui”. Às vezes Júlia faz (boa) equipa com a costureira Regina Gomes,
que “apoia o atelier sempre que pode” e sabe olhar para um modelo e perceber
o que lhe falta para estar perfeito. Os tecidos são oferecidos,
reciclados ou comprados, graças à venda da roupa e à existência de um pequeno
fundo de maneio que também distingue todas as utentes que ali trabalham – umas
internas, outras em regime de ambulatório — com um “incentivo monetário”.
No
dia que em que visitei este pavilhão havia várias cabeças de diversas idades
debruçadas sobre bordados, novelos de lã, pedaços de tecido, agulhas, tesouras.
Trabalhava-se como em qualquer outro atelier de costura, sob o olhar feliz de Odette Gomes,
(atentíssima) coordenadora desta Unidade.
“Sabe
o que é sempre o mais importante? Não é o desfile, não são os aplausos do
público, não foi nós termos gostado. Foi o elas terem gostado, terem-se sentido
bem, realizadas. E como tal, terem passado um momento tão alegre.”
“Elas” foram as que cozeram os modelos criados por
Júlia Melão, confecionando também chapéus, tricotando écharppes, montando
adereços. E depois,
viram-se as mesmas “elas”, bem penteadas e bem maquilhadas, desfilar numa
passerelle branca, ladeadas por dois utentes que no traje e na atitude não
destoavam dos que vimos fazer o mesmo, fora daquela ilha da Avenida do Brasil.
4 -
Grande parte do combustível que me alimenta a
profissão e acelera o motor que a faz andar é um empenho vital de contar: o
saber que há “o” que contar e depois saber que o posso fazer. As vezes é apenas
uma vontade jubilosa, um vivo impulso de partilhar o que se viu ou descobriu.
Mas também pode ocorrer que o contar seja uma responsabilidade ou parecido com
isso e não, não é blá blá, é o dever de anunciar. Não é por acaso que sigo à
letra uma frase de Virginia Woolf, lida há anos e anos — há séculos? — quase
fazendo dela lema, inspiração, guia, tudo junto. Dizia Virginia — escrevo isto
vezes sem conta – que “nada acontece até ser contado”. Ela sabia . Não
acontece. E por isso hoje — deixando intencionalmente entre parêntesis o fazer
e desfazer de acordos e governos, as Sírias, os Brexits ou a perigosamente
dividida Barcelona – ecoei o que vi no Centro Hospitalar Psiquiátrico de
Lisboa.
Não
sei se consegui. Mas contei. E dia destas também ainda hei-de contar tudo isto
à Eduarda Abbondanza.
COMENTÁRIOS:
Carlos Chaves: E muitíssimo
obrigado Maria João, por tão bem e assiduamente seguir o “conselho” da Virgínia
Woolf, e nos contar histórias que nos enchem o coração como sem sombra de
dúvidas esta o é.
Maria Nunes: Obrigada
Maria João Avilez. O seu testemunho é muito importante, para não nos
esquecermos desse mundo, que de tão oculto, parece que nem existe. Um bem hajam
a todos os profissionais e voluntários, que dão tanto de si próprios.
Marie de Montparnasse: Conseguiu sim
Maria João Avillez, com o engenho da sua escrita, descrever-nos um pedaço de um
belo mundo paralelo. Obrigada.
Diogo Manoel: OBRIGADO
Maria João Avillez por contar mais esta "maravilha! Obrigado
victor guerra: Não percebi a
intenção, se a houve.
Maria Rocha > victor guerra: Contar,
só isso e não é pouco.
Maria Augusta
Martins: Até
os manicómios perdem qualidades e características o que até nos faz pensar que
cada vez há menos tolos. Mas não se enganem. Cada vez há mais tolos e pior que
isso andam a importá-los como se não chegassem os autóctones.
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