sábado, 26 de outubro de 2019

Já não corro o risco



De ser castigada. Lembrei-me, pois, de copiar para o meu blog um texto de uma “aventura docente”, acontecida nos idos de 1977, no Liceu Passos Manuel, e que não receei colocar no meu livro, então, publicado em 1981, “Cravos Roxos – Croniquetas verde rubras”, a cuja III Parte pertenceria, com o título “Escalão C”. Tudo isto porque, 42 anos depois, deu escândalo a notícia sobre um professor de uma “escola de Alvalade”, suspenso e detido por agressão a um aluno. Não conhecendo o professor, compreendo quanto a desordem na escola, sem um conselho directivo equilibrado, que não se deixe atemorizar pelas regras da “promiscuidade” disciplinar estabelecidas aquando das mudanças democráticas massificadoras nas escolas como na sociedade em geral, causa cada vez mais desequilíbrios nervosos nos professores, sem um mínimo de condições de orientação nas suas aulas. Eis porque decido transcrever um excerto desse texto, que poderia, quando muito, chamar a atenção para a “Justiça” julgadora que, antes de condenar o professor ou o aluno, terá que ser sensível à responsabilidade dos sucessivos governos para quem a tal indisciplina e grosseria generalizadas nas escolas, só os afectam quando descem à sua rua, e que os próprios ministros não deixam de perder a cabeça, quando confrontados com as ironias desrespeitosas de velhos arruaceiros, caso recente de um dos nossos cortejos eleitorais.

Eis o excerto de “Escalão C”:
«Primeiro dia, no 3º G: o estupor absoluto, ante a absoluta grosseria. Alguém imita a voz de um canídeo.
- Quem ladrou? pergunto, nos modos vocabulares da democracia à la page.
Levanta-se um: - Fui eu.
-Põe-te na rua!
Segue-se a restolhada dos camaradas levantando-se e saindo dignamente, em enternecedora demonstração de camaradagem para com o colega ofendido.
Mais tarde, acusar-me.iam de lhes ter chamado cães. Se assim fora, o próprio aluno o confirmara.
Dou aula a duas alunas. A atitude viril dos camaradas não se mantém. Abrem a porta, gritam, dão pontapés. Colaboracionismo ou impotência dos contínuos?
Quando escrevo o sumário, entra a malta para a “plataforma”. Mostro-me alegremente irónica, não estão habituados a tanta resistência. A professora anterior dera aula apenas um dia. Ao fim dele, entregara as cadernetas, num riso descontrolado.
Um aluno, de bigodinho e habituado sem dúvida a finezas, conduz-me protectoramente à saída, com o braço na minha cintura. Desvanecida com o gesto cavalheiresco, que me transporta aos tempos frágeis da juventude, declino-o, todavia, numa seriedade impondo distância. Inútil. No intervalo seguinte o mesmo aluno pede-me um autógrafo.
ººº
Cena de bofetadas no 3º E, na aula posterior à dos beijos.
O aluno dos beijos aparece pimpão, a meio da aula, longo casaco elegante bem abotoado, batendo com a porta e com os tacões e dizendo graçolas sobre a professora e as suas aulas sem interesse.
Tento abstrair-me e sobrepor a minha voz à sua, para captar a atenção dispersa do bando atento … ao orador, mas depressa reconheço a inutilidade da pretensão. Uso a ironia:
- Então hoje vieste só, sem a tua moça?
- A setora, para falar na minha moça…
- A tua mulher! ajudam os colegas.
- … terá que se pôr em sentido!
- De facto! – concordo. E estou já. Sou pessoa vertical.
Mas reinicio a aula, arrependida da intervenção, ciente da impossibilidade de acompanhar o aluno no seu campo de actuação verbal e gestual.
Satisfeito com as suas manobras, o jovem dândi continua. Acende um papel, atira-o para o chão, apagando a labareda com largo estrépito de tacões.
Comparsas da cena entram e saem da aula, ante os risos satisfeitos dos companheiros sentados.
Quase no fim da aula, mais duas moças se apresentam. Oponho-me com energia:
- Não, vocês não entram, vão-se embora.
O dândi imediatamente se ergue, e com amplo gesto protector acode:
- Ó Isabelinha, vem cá, querida, e senta-te.
A querida vai e eu vou igualmente. Aperto-lhe o braço exclamo: - Sai!
O rapaz cresce para mim, e a minha mão cai irresistivelmente sobre o seu rosto ameaçador.
-A srª não me bate, só os meus pais me podem bater, ora bata-me e verá que a desfaço.
Perante a ordem, obedeço, ainda irresistivelmente.
Cresce mais, em atitude homérica:
- Bata-me outra vez, atreva-se!
Não me atrevo. O seu metro e oitenta impõe-se inegavelmente ao meu respeito, e não fora a energia que captei da costela paterna, teria soçobrado.
Volto-me a seguir para a turma e exclamo, em jeito ciceroniano:
- Só lamento, pobres de vós, que sejais obrigados a suportar este indivíduo na turma.
Retomo a lição. Foco o conceito de liberdade, como limitado entre um auto-respeito e o respeito alheio para seres dignos da espécie humana.
O aluno incendiário escapa-se, entretanto, a curtir-se das duas bofetadas e a ruminar vinganças futuras.
Mais tarde soube que no ano anterior ia matando alguém com uma carteira que atirara do varandim para o pátio. Altos desígnios de Deus que soubera obstar a um voo desses para mim.
ºººººººº
…. Alguns alunos no 3º E saem quando entro. Sento-me na aula deserta e vou copiando os nomes dos alunos para a caderneta. Um mensageiro – o que justificara os beijos do colega (referido no capítulo anterior, “Exposição ao Ministro da Educação”)– surge na minha frente, lendo, em papel sebento, uma proposta aceite por unanimidade, segundo esclarece: em virtude da minha atitude agressiva que não poupa as bochechas dos camaradas meus discípulos, além de que nas minhas prelecções os tinha apodado de cobardes porque se valiam da sua posição maioritária para imporem a sua autoridade, ante a impassibilidade dos gestores, eles consideravam-se desligados das minhas aulas.
Respiro aliviada. “Podes ir”, agradeço, recolhendo-me à santa paz da classe deserta, e continuando a tarefa anterior.» ........
... A notícia de que perderiam o ano por faltas corre. Cientes do resultado das suas ausências, os alunos do 3ºE apresentam-se na aula… fechando-me a porta na cara. O contínuo abre-a e vejo-me encurralada por corpos e expressões ameaçadoras, soltando indecências que me ilustram a respeito da riqueza linguística do português hodierno ……………..
………………..

Não vou continuar, embora o relato tenha continuado num certo tom de facécia, inútil para este caso do professor da escola de Alvalade. Só desejo que esta desordem em que vivemos em tantos níveis possa ter fim um dia. E que a Justiça, antes de condenar o professor, faça uma análise séria sobre a hipocrisia que comanda toda uma sociedade de astúcia, falsidade e cobardia, afinal.

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