quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Por isso lhe chamam República das bananas



Embora estas sejam de importação. Mas também parece absurdo que as votações dos emigrantes sejam feitas posteriormente às dos cidadãos nacionais, pesem embora as razões de AHC, haja dó!
Portugueses de segunda /premium
Existem ainda 4 deputados por eleger nos círculos da diáspora. Isso não impediu a indigitação do vencedor para formar governo. Se fosse futebol, seria como entregar a taça antes de soar o apito final.
ALEXANDRE HOMEM CRISTO                OBSERVADOR, 10 oct 2019
Os partidos fizeram as suas propostas, os cidadãos votaram, os resultados foram anunciados, a nova composição do parlamento foi conhecida, o Presidente indigitou o vencedor para formar governo, as negociações para acordos parlamentares iniciaram-se. Tudo normal? Mais ou menos. Por um lado, esta sequência corresponde aos procedimentos regulares numa democracia representativa e foi o que sucedeu em Portugal. Por outro lado, observou-se uma excepção fundamental: existem ainda milhares de votos de emigrantes por contabilizar e quatro deputados por eleger nos círculos eleitorais da diáspora. Esses votos apenas serão contabilizados na próxima semana, deixando o acto eleitoral pendente e impedindo formalmente de dar os resultados até agora conhecidos como finais. Mas, lá está, isso não impediu tudo o resto, incluindo a indigitação pelo Presidente da República do vencedor das eleições para formar governo. Se isto fosse futebol, seria como entregar a taça antes de soar o apito final — por mais golos de vantagem que se tenha, os jogos só acabam ao minuto 90. Ora, como isto é ainda menos sério do que futebol, o mínimo a reconhecer está na mensagem subjacente: para o regime, há votos que contam menos do que outros — o que equivale a dizer que há portugueses de primeira e portugueses de segunda.
A responsabilidade desta ultrapassagem toca a todos. É do Presidente da República, que convoca partidos sem os resultados estarem fechados e até indigita formalmente o vencedor sem que todos os votos estejam contabilizados. É do primeiro-ministro, que não estranha ser indigitado com resultados ainda provisórios. É de todos os partidos, que alinham nesta quebra institucional e neste desrespeito para com os eleitores. É da Comissão Nacional de Eleições (CNE), cujo arcaísmo impõe este intervalo temporal na contagem dos votos dos círculos eleitorais da Europa e Fora da Europa — nos tempos actuais, pode-se aceitar que apenas no dia 16 de Outubro esses votos sejam contabilizados (10 dias depois do dia das eleições)? E, por fim, a responsabilidade é da sociedade civil, em particular da comunicação social, que não acha nada disto suficientemente anormal para fazer perguntas ao Presidente da República, ao presidente da Assembleia da República e ao primeiro-ministro, de modo a que nos esclareçam sobre a sua justificação para atropelar procedimentos.
Acrescente-se a hipocrisia de tudo isto ocorrer ainda sob ecos dos lamentos sobre os níveis de abstenção eleitoral. Sim, a abstenção é muito mais elevada do que se desejaria e isso deveria constituir motivo de preocupação. Deveria, mas obviamente não constitui. Se fosse o caso, existiriam inúmeras propostas de políticas públicas destinadas a incentivar à participação eleitoral — bons exemplos internacionais não faltam. Ou, no mínimo dos mínimos, só para não piorar o actual cenário, não se desqualificaria assim o voto de milhares de portugueses da diáspora que, na próxima vez que forem chamados a exercer este direito, terão forçosamente de ponderar a utilidade do acto.
Antecipo-me à pergunta dos mais cínicos: se não muda nada nas contas dos equilíbrios políticos e maiorias parlamentares, porquê esperar pela contagem desses votos? Pela mesma razão que os jogos de futebol só terminam ao minuto 90. Porque há que preservar as instituições democráticas — uma república define-se pela transparência das suas regras e previsibilidade dos seus procedimentos. Porque, na medida em que os votos representam a vontade dos portugueses, devem valer todos o mesmo e ser todos tratados com igual dignidade. E porque, mesmo que se possa ter expectativas (com base em inquéritos e histórico eleitoral) sobre que deputados serão eleitos nesses círculos, não esperar para ver é contrário ao espírito democrático. Afinal, ninguém é dono da vontade popular e, se a democracia fosse baseada em expectativas, não se fariam eleições.
Portugal é isto: um país onde se rasgam vestes pelas democracias americana e britânica (ambas das mais institucionais e estáveis do mundo), mas onde a fragilidade das instituições democráticas portuguesas não se enxerga, mesmo quando está à frente do nosso nariz. Uma república democrática está doente quando as suas instituições são sucessivamente desconsideradas e os procedimentos formais ultrapassados. E, infelizmente, não há cura possível enquanto não houver quem se importe realmente com isso.

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