Embora estas sejam de importação. Mas
também parece absurdo que as votações dos emigrantes sejam feitas
posteriormente às dos cidadãos nacionais, pesem embora as razões de AHC, haja dó!
Portugueses de segunda /premium
Existem ainda 4 deputados por eleger nos
círculos da diáspora. Isso não impediu a indigitação do vencedor para formar
governo. Se fosse futebol, seria como entregar a taça antes de soar o apito
final.
ALEXANDRE HOMEM CRISTO
OBSERVADOR, 10 oct 2019
Os
partidos fizeram as suas propostas, os cidadãos votaram, os resultados foram
anunciados, a nova composição do parlamento foi conhecida, o Presidente
indigitou o vencedor para formar governo, as negociações para acordos
parlamentares iniciaram-se. Tudo normal? Mais ou menos. Por um lado, esta sequência corresponde aos
procedimentos regulares numa democracia representativa e foi o que sucedeu em
Portugal. Por outro lado, observou-se uma excepção fundamental: existem ainda
milhares de votos de emigrantes por contabilizar e quatro deputados por eleger
nos círculos eleitorais da diáspora.
Esses votos apenas serão contabilizados na próxima semana, deixando o acto
eleitoral pendente e impedindo formalmente de dar os resultados até agora
conhecidos como finais. Mas, lá está, isso não impediu tudo o resto,
incluindo a indigitação pelo Presidente da República do vencedor das eleições
para formar governo. Se isto fosse futebol, seria como entregar a taça
antes de soar o apito final — por mais golos de vantagem que se tenha, os jogos
só acabam ao minuto 90. Ora, como isto é ainda menos sério do que futebol, o
mínimo a reconhecer está na mensagem subjacente: para o regime, há votos que
contam menos do que outros — o que equivale a dizer que há portugueses de
primeira e portugueses de segunda.
A
responsabilidade desta ultrapassagem toca a todos. É do Presidente da República, que convoca partidos sem os resultados estarem
fechados e até indigita formalmente o vencedor sem que todos os votos estejam
contabilizados. É do primeiro-ministro, que não estranha ser indigitado com resultados ainda
provisórios. É de todos os
partidos, que alinham
nesta quebra institucional e neste desrespeito para com os eleitores. É da Comissão Nacional de Eleições (CNE), cujo arcaísmo impõe este intervalo temporal na
contagem dos votos dos círculos eleitorais da Europa e Fora da Europa — nos
tempos actuais, pode-se aceitar que apenas no dia 16 de Outubro esses votos
sejam contabilizados (10 dias depois do dia das eleições)? E, por fim, a responsabilidade é da sociedade civil,
em particular da comunicação
social, que não
acha nada disto suficientemente anormal para fazer perguntas ao Presidente da
República, ao presidente da Assembleia da República e ao primeiro-ministro, de
modo a que nos esclareçam sobre a sua justificação para atropelar procedimentos.
Acrescente-se
a hipocrisia de tudo isto ocorrer ainda sob ecos dos lamentos sobre os níveis
de abstenção eleitoral. Sim, a abstenção é muito mais elevada do que se
desejaria e isso deveria constituir motivo de preocupação. Deveria, mas
obviamente não constitui. Se fosse o caso, existiriam inúmeras propostas de
políticas públicas destinadas a incentivar à participação eleitoral — bons
exemplos internacionais não faltam.
Ou, no mínimo dos mínimos, só para não piorar o actual cenário, não se
desqualificaria assim o voto de milhares de portugueses da diáspora que, na
próxima vez que forem chamados a exercer este direito, terão forçosamente de
ponderar a utilidade do acto.
Antecipo-me
à pergunta dos mais cínicos: se não muda nada nas contas dos
equilíbrios políticos e maiorias parlamentares, porquê esperar pela contagem
desses votos? Pela mesma razão que os jogos de
futebol só terminam ao minuto 90. Porque há que preservar as instituições
democráticas — uma república define-se pela transparência das suas regras e
previsibilidade dos seus procedimentos. Porque, na medida em que os votos
representam a vontade dos portugueses, devem valer todos o mesmo e ser todos
tratados com igual dignidade. E porque, mesmo que se possa ter expectativas
(com base em inquéritos e histórico eleitoral) sobre que deputados serão
eleitos nesses círculos, não esperar para ver é contrário ao espírito
democrático. Afinal, ninguém é dono da vontade popular e, se a democracia fosse
baseada em expectativas, não se fariam eleições.
Portugal
é isto: um país onde se rasgam vestes pelas democracias americana e britânica
(ambas das mais institucionais e estáveis do mundo), mas onde a fragilidade das
instituições democráticas portuguesas não se enxerga, mesmo quando está à
frente do nosso nariz. Uma república democrática está doente quando as suas
instituições são sucessivamente desconsideradas e os procedimentos formais
ultrapassados. E, infelizmente,
não há cura possível enquanto não houver quem se importe realmente com isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário