Paulo Rangel vem
comprovar, com a sua própria, a honestidade intelectual de Teresa de Sousa, (do texto anterior) apegando-se ambos às
consultas de apoio cultural imprescindível – aquela, a jornais britânicos de
reconhecida reputação, este, à decisão do Supremo Tribunal do Reino Unido sobre
a suspensão do Parlamento Britânico imposto por Boris Johnson, decisão que condenou, naturalmente, tão leviana
medida de 1º Ministro britânico. É claro que o texto de Paulo Rangel (como o de TS também) mereceu chufas de comentadores,
provavelmente indivíduos que invejam os que têm capacidades, não se importando,
todavia, de comer da mesa de quem lhes fornece a comida, cuspindo a seguir na
mão que lha forneceu. Paulo Rangel
cumpre
o seu papel – como Teresa de Sousa o dela – ambos
estudiosos e defendendo a democracia alargada a uma União Europeia que nos deu
a mão, a nós, portugueses, sem o que provavelmente estaríamos afundados no
lamaçal criado.
Tanto Paulo Rangel como Teresa
de Sousa são personalidades de que nos devemos orgulhar, honestos e criteriosos
que são, embora de partidos distintos.
OPINIÃO: Supremo britânico: uma sentença imprescindível
Ler, saborear e digerir uma sentença
como esta é um acto de cidadania. Ela permanecerá como um marco assinalável.
PÚBLICO, 1 de Outubro de 2019
1 .A
decisão de 24 de Setembro de 2019 do Supremo Tribunal do Reino Unido é uma das mais importantes decisões judiciais da
história recente da democracia ocidental. Não tanto pela sua conclusão ou estatuição final,
mas antes pelos seus fundamentos, pelo seu percurso argumentativo, pela
decantação dos pilares de uma ordem democrática. Insiste-se, ela
não vale pelo sentido final da decisão – a inconstitucionalidade do
decretamento da suspensão do Parlamento pelo primeiro-ministro. Ela
vale pela caracterização impecável do que foi, é e deve ser uma ordem
democrática e liberal, fundada na separação dos poderes e na primazia do
direito e dos direitos.
Trata-se
de uma verdadeira lição de direito constitucional, escrita numa linguagem
elegante e acessível, que chega a tocar o brilhante. Uma lição, não apenas para
os sistemas tipicamente parlamentares e, em particular, para o sistema
britânico, mas, mutatis mutandis, para toda e qualquer democracia liberal, que
não queira ser convertida numa simples “ditadura da maioria” ou na “tirania de
todos”, de que falava Montesquieu. Ler, saborear e digerir uma sentença como
esta é um acto de cidadania. Assente numa longa tradição constitucional,
evocando recorrentemente a grande disputa constitucional do século XVII inglês
(de que tantas vezes aqui se falou), ela enfrenta o maior repto político-constitucional
do nosso tempo: a irreprimível pulsão para a “democracia directa”.
2. Não sabemos
e ninguém sabe para que destino se dirigem as democracias liberais do Ocidente:
se para a demagogia e populismo das pretensas democracias directas; se para uma
reinvenção das democracias representativas. Mas seja como for, esta decisão
permanecerá como um marco, um marco assinalável: ou o momento em que a pulsão
populista foi travada e invertida; ou o canto do cisne em que a velha ordem
representativa se despede da novel vertigem populista.
3. “Deixem-nos
recordar os fundamentos da nossa constituição. Vivemos numa democracia
representativa” – diz-se, já a findar, no § 55. Eis o inciso em que os juízes –
que deliberaram por unanimidade – revelam a absoluta consciência da essência
do problema político-constitucional dos nossos dias. E desenvolvendo o
princípio representativo e o correspondente lugar do Executivo, prosseguem de
imediato: “A Câmara dos Comuns existe porque o povo elegeu os seus membros.
O Governo não é directamente eleito pelo povo (ao invés do que se passa em
algumas outras democracias). O Governo subsiste porque goza da confiança da
Câmara dos Comuns.”
Estas
afirmações lapidares vêm na sequência argumentativa dos dois princípios
constitucionais do direito britânico que relevam para o caso: o
princípio da soberania parlamentar
(§ 41) e o princípio da “responsabilidade” parlamentar do Governo (§ 46). A soberania – ou, talvez fosse mais
adequado, chamar-lhe “primazia” – parlamentar foi reiteradamente afirmada por vasta jurisprudência dos tribunais
britânicos desde o século XVII. Com efeito,
afigura-se evidente que uma prerrogativa governamental de suspensão ilimitada
(ou excessiva) do Parlamento poria em causa a “primazia” do Parlamento (§ 42),
a quem estariam a ser vedadas as competências legislativas e de controlo do
Executivo. Por sua vez, e no que diz
respeito ao cânone da responsabilidade parlamentar, afirma-se taxativamente: “a
condução da governação por um primeiro-ministro e Governo colectivamente responsáveis
e demandáveis pelo Parlamento está no coração da democracia de Westminter” (§
46; citação de Lorde Bingham of Cornhill). Pois bem, também uma suspensão
indefinida ou desproporcionada põe em causa o exercício dos poderes de
supervisão do Parlamento (§ 50).
4. O
poder de suspender o Parlamento (tal como o de o dissolver) integra-se num
poder ou função do Executivo, ancestralmente cometida ao monarca, que se
denomina “prerrogativa” (exemplarmente descrita no capítulo XIV do II Tratado
do Governo, de John Locke). Tal poder, embora nominalmente exercido pelo
monarca, cabe na “moderna prática constitucional” (sic) ao
primeiro-ministro. E, por isso, se pode ler na sentença: “que não foi
sugerido nestes recursos que Sua Majestade pudesse actuar de outro modo senão o de estar obrigada pelo costume constitucional
de seguir o conselho” do primeiro-ministro (§ 30).
Sendo
a prerrogativa um poder constitucional, põe-se desde logo a questão de saber se
um tribunal – mesmo um alto tribunal – pode decidir questões políticas (§ 31).
Aos tribunais não cabe dirimir questões políticas, mas incumbe, isso sim,
determinar se, num determinado caso, “o direito reconhece a existência de um
poder de prerrogativa” ou quais são “os seus limites legais” (§ 37). Com
efeito, já em 1611, no célebre Case of Proclamations, se estabeleceu que “o Rei não tem prerrogativa, a
não ser aquela que a lei do país lhe conceda” (§§ 32, 41 e 49). Este caso
ocorre precisamente contra o primeiro dos Stuarts, Tiago I, que, de
resto, havia teorizado abundantemente, em obra escrita, sobre o “direito divino
dos reis” (no que foi contraditado pela neo-escolástica de Coimbra-Salamanca de
Francisco de Suárez e de Francisco de Vitória). E que naturalmente queria usar
a “prerrogativa” contra o Parlamento, no que havia de ser seguido pelo seu
filho, Carlos I, dando origem à guerra civil, à abolição da monarquia e à
proclamação da República de Cromwell.
5. Em poucas palavras, desde o século XVII, a
prerrogativa está indisputavelmente sujeita ao controlo dos tribunais. Por isto
mesmo, o Supremo Tribunal recorda que a revisão judicial não viola a separação
dos poderes (§ 34). “Na verdade, ao
assegurar que o governo não usa o poder de suspensão ilegalmente impedindo o
Parlamento de desempenhar as suas funções próprias, o tribunal está a tornar
efectiva a separação dos poderes” (§
34). Não há liberdade nem democracia onde não haja separação dos poderes.
Também entre nós, é fundamental não o esquecer.
SIM e NÃO
SIM. Rui Rio.
Seja nas matérias programáticas (caso evidente da economia), seja nas questões
de Estado (caso de Tancos), revela um modo diferente de fazer política. Um modo
alternativo que é alternativa.
NÃO. António Costa. O silêncio sobre a dimensão política do caso de
Tancos é mau demais. Mas a indução de uma teoria da conspiração contra o PS,
alimentada por Santos Silva e Carlos César, é ainda pior.
Colunista
COMENTÁRIOS:
Alforreca Passista, 01.10.2019: Vai-te habituando €uro-tachista! Os povos vão acabar
com a totalitária (neo)liberal União €uropeia!!!
TM, 01.10.2019: Nem
mais!
João Boavida, 01.10.2019: Artigo impecável do princípio ao fim
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