sábado, 5 de março de 2022

De novo Pascal


Com a sua fórmula a respeito do coração e da razão. Mas não é o amor, desta vez, a razão do coração, e sim o sentimento do ódio, pela humilhação, ao que parece, na origem de toda esta sem-razão criminosa.

Rússia e China. Dois países unidos pelo "nacionalismo e sentimento de humilhação"

Sobretudo desde a anexação da Crimeia que a Rússia, isolada, se virou para Pequim. A China tem noção do poder militar russo, mas esta guerra chegou num momento "inoportuno e incómodo".

RITA PEREIRA CARVALHO. Texto

OBSERVADOR,04 mar 2022, 20:00 2 

Desde 2014, Rússia e China encontraram-se 38 vezes. No último encontro, Xi Jinping estendeu uma passadeira vermelha a Putin. Estavam a celebrar o início dos Jogos Olímpicos de Inverno, 50 anos depois do histórico aperto de mão entre Mao Zedong e Richard Nixon. O momento coincidiu também com o arranque do Ano do Tigre, uma oportunidade para o presidente chinês mostrar um novo músculo ao mundo, estando ao lado da Rússia. Mas o cenário mundial está a mudar, as contas da China foram baralhadas e a sua posição é agora, tanto de apoio, como de algum afastamento em relação à invasão da Rússia à Ucrânia. Importa perceber agora o que une e o que afasta estas duas potências e quais os interesses de cada um.

Esta quarta-feira, a China decidiu pela abstenção na resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que condena a invasão russa à Ucrânia. E também esta semana, apesar de evitar condenações directas a Moscovo, a China disse estar disponível para mediar o conflito, numa chamada entre Wang Yi, ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, e o seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba. “A China está pronta para fazer todos os esforços para pôr fim à guerra em território ucraniano através da diplomacia, incluindo como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU”, disse Kuleba sobre a conversa entre os dois países. Mas esta quinta-feira o mundo ficou a saber que a China não vai aplicar sanções à Rússia, tal como estão a fazer a Europa, os Estados Unidos e também Taiwan – território que a China quer reunificar.

Esta movimentação com pinças pode ser explicada, segundo Xulio Ríos, director do Observatório de Polícia Chinesa, pelo momento “inoportuno e incómodo” em que surge a guerra na Ucrânia.

Uma das principais preocupações da China neste momento é, não tanto como é que o conflito pode ter impacto nas suas relações com os Estados Unidos, que são difíceis desde há vários anos, mas sobretudo como é que ficarão as suas relações com a União Europeia. Evidentemente, este conflito não vai ajudar a melhorar as relações da China com a UE, que é um dos temas mais importantes da sua agenda externa”.

A postura da China é de observação, segundo o especialista em política chinesa, “com uma certa cautela e preocupação”. É certo que os dois países têm vindo a estabelecer laços cada vez mais fortes, mas Pequim tem também muito interesse na Ucrânia, que é, aliás, o seu primeiro sócio comercial – à frente da Rússia – e é um país estratégico na questão da Rota da Seda.

Ponto comum: “O sentimento de humilhação”

Apesar de a China garantir que está “extremamente preocupada com os ataques a civis na Ucrânia, nunca condenou oficialmente a invasão russa. Primeiro, porque mostra “respeito pela decisão de Moscovo e pelas preocupações de Moscovo em matérias de segurança, através das críticas à NATO”, explica Xulio Ríos. Além disso, a China “considera também que o papel que a NATO está a ter neste conflito se assemelha ao papel que os Estados Unidos estão a tentar desempenhar no Indo-Pacifico”, através do AUKUS, a aliança militar feita no ano passado entre Austrália, Reino Unidos e Estados Unidos, fruto das rivalidades com a China.

Depois, além deste sentimento de entendimento, existem outros pontos comuns e importantes que aproximam a Rússia e a China, diz Xulio Ríos. “Há um elemento comum importante, que é o nacionalismo, obviamente, mas há outra coisa importante, que está presente na definição da política dos dois países, que é o sentimento de humilhação”.

Na Rússia, este sentimento de humilhação refere-se ao fim da Guerra Fria, à queda da União Soviética e à posição da NATO, a propósito dos acordos estabelecidos com Gorbatchov, que permitiram um fim pacífico da União Soviética. Esta visão pacífica não é partilhada, aliás, por Putin, que vê este momento da história como uma humilhação, querendo fazer agora novamente história ao tentar reverter esses acordos.

Já do lado da China, a história é mais antiga e aponta para a Guerra do Ópio, no século XIX. Este longo período ficou conhecido na China como o “século da humilhação”, já que foram derrotados militarmente pelos europeus.

Rússia precisa mais da China, do que a China precisa da Rússia

A aproximação entre Rússia e China tem vindo a desenvolver-se ao longo dos últimos anos. Com alguns percalços, é certo, mas com a Rússia a virar-se cada vez mais para Pequim. Tal como está a acontecer agora com a invasão da Rússia à Ucrânia, a China não reconheceu oficialmente a posição do Kremlin em relação à anexação da Crimeia, em 2014

Mas nessa altura, apesar de não reconhecer a anexação da Crimeia, a Rússia vê em Pequim uma fonte de investimento para onde pode exportar petróleo e gás. Aliás, neste momento, a Gazprom, que é a maior empresa de gás natural da Rússia, está a ver os seus contratos com o Ocidente a desaparecer.

Nos últimos dias, até a UEFA decidiu rescindir o contrato milionário de publicidade que tinha com esta empresa. Mas em 2014, três meses depois de ter começado a crise com a Ucrânia, a Gazprom assinou um acordo de 400 mil milhões de dólares para fornecer gás natural à China durante 30 anos.

Hoje, a história parece repetir-se, como explica Xulio Ríos: “Para a China, o melhor cenário é que a guerra pare e que se procure uma saída diplomática, diminuindo o máximo possível os danos resultantes do conflito”.

Neste momento, “o único poder que a Rússia tem em relação à China, com certo destaque, é obviamente o poder militar. A China tem tecnologia, economia, comércio, existindo aqui uma diferença considerável entre os dois países”. Ainda assim, a China tem noção do poder militar da Rússia e a sua cautela pode ser também justificada por isso.

A questão de Taiwan

A China quer uma solução diplomática, já se disponibilizou para mediar as conversações e também o faz com os olhos postos em Taiwan, onde pretende avançar com uma reunificação pacífica. Taiwan tem, no entanto, o apoio dos Estados Unidos e avançou esta semana com sanções à Rússia, cancelando a exportação de semi-condutores para aquele país.

Xi Jinping defende que a reunificação de Taiwan não deve ser deixada de geração em geração, mas continua a apostar na via pacífica, “o que parece ser cada vez mais improvável, porque em Taiwan há um sentimento cada vez mais afastado do continente”. Neste ponto, Xulio Ríos deixa o alerta para os riscos do futuro e defende que o cenário atual “pode não ser nada quando comparado com aquilo que pode acontecer na Ásia, caso rebente um conflito” provocado pela reunificação de Taiwan. “A diplomacia fracassou na Europa. Deveríamos tomar as medidas necessárias para evitar que o mesmo aconteça na Ásia.”

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COMENTÁRIOS:

Pontifex Maximus: Os russos roubaram parte da Manchúria à China e esta há muito que, sobrepovoada, olha para o deserto siberiano (de pessoas, claro), sendo há mais de cem anos fruto da sua cobiça. O que os russos sempre souberam, mas como nunca conseguiram aproximar-se do ocidente, são agora obrigados a aceitar o abraço de urso chinês, precisamente na pior altura para eles, pois são um país decadente (excepção às armas nucleares não valem um tostão furado; são a décima-primeira potência económica e em perda acelerada, incluindo de população) enquanto os chineses estão pujantes sobre todos os aspectos, num período de mais de cem anos, seja em termos económicos ou militares e que oportunamente cobrarão muito caro este apoio (energia e matérias primas quase de borla para começar, pois não as podem comer nem as podem vender ao ocidente).

Geiger Dieter: Moscovo quer dominar a China e Pequim quer dominar a Rússia.

 

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