Um conjunto de dez poemas, escrito pelo David, neto da
minha irmã, que mos trouxe no domingo da nossa folia semanal - de conversas e
doçuras, que ajudam a alimentar o corpo e a alma, e a ultrapassar pela amizade e os
registos orais mais ou menos despretensiosos, as putinices dos tempos.
Li com grande prazer tais poemas, por vezes,
em discurso directo, de sentido animista, sobre uma natureza revivida nos
espaços da memória, com uma delicadeza feita de ternura e companheirismo,
transposta num discurso de clareza expositiva, acompanhando um pensamento já
amadurecido, conquanto mal saído ainda da sua adolescência de afectos.
Inicia-se o Memorial com “Nostalgia
Algarvia» sobre os familiares e amigos que aí viveram antes,
na “Pausa” primeira, dessa “terra
prometida” de “avós e pais e tios
quando tinham a mesma idade e também te viveram. Unidos no passado em ti,
grande pacifista que és”.
E a reflexão pertinente pontuando já o descritivo
visual do seu arrebatamento intimista, quebrada a gentileza na ponderação
pessimista sobre a precária condição humana: “Tanta liberdade que o vento tem, pobre louco quem o tenta capturar…; “O
vento não tem escolha, mas é magnânimo no seu soprar. E nós, que escolha
temos?” (in “As folhas no chão”)´
A precisão do traçado, no poema “Cadela” e a
transparência reflexiva da imagem conclusiva:
A
cadela com as suas barbas pelo chão
Ouve
o chamamento da rola e levanta o olhar.
O seu
focinho aponta para os fantasmas,
São
eles que alimentam esta vida.
Ela
levanta-se e escolhe cuidadosamente uma amêndoa caída,
Parte-a
nos seus dentes robustos, come-a,
E
marca o tempo com o seu mastigar.
Segue-se o conjunto “Árvores, catedrais”. Estas últimas,
da extraordinária feitura humana, mal cabendo, todavia, como metáfora
hiperbólica, na realização “árvore”, “criatura” animada, de feitura para sempre
mirificamente surpreendente, divina ou não, segundo a eterna estranheza humana
sobre a Criação.
Uma espiritualidade constante, nestes “versos”
de discurso aparentemente humilde de retórica, mas de um pensamento já rico de
tortura íntima, mais elaborada em função do universo alheio, pois ainda de
tímida ou discreta expressão do mundo pessoal.
Amendoeira
Quando
eu era criança já tu eras adulta
Agora
que estou velho vejo-te anciã,
Quantos
anos terás mais para dar?
Ontem
choveste flores em mim, e eu o que te dei?
Uma
infância perdida, uma amêndoa verde comida?
Estás
aqui e fazes parte deste sítio e de mim.
Não,
hoje vejo que eu e este sítio é que fazemos parte de ti.
Existes
esquecida, e que existência mais real pode ser tida?
Agora
que te vejo e cheiro e sinto, não sei dizer se és mais real ou mais memória.
Espírito
algarvio, a tua brisa quente sopra do passado,
E
para onde vai?
Uma constante reflexão analítica, em torno das várias árvores assim
personificadas – a “Figueira” “lázaro das árvores”; o “Sobreiro”
sóbrio, - “A tua paciência é infinita e não
precisas muito para ser, és o teu próprio universo / Despimos-te de década em década, porque és generoso e mesmo despido
manténs a tua dignidade”; a “Azinheira”
humilde, por cuja “fruta amarga ainda
guerras serão travadas”, e “Por não
seres oliveira é que gosto de ti”; o “Pinheiro Manso” - “Estiveste sempre lá e eu não dei por ti”,
a “Laranjeira” - “Ah laranjeira, laranjeira, trazes música
aos pomares das nossas vidas”; o “Eucalipto” – “Ergues-te alto e imponente, indiferente ao
tempo e ao vento que passam por ti. / De-quando-em-quando, ofereces uma pernada
aos deuses, é o preço a pagar pela tua insolência, quem te mandou chegar aos
céus? / Ai de nós que estejamos prolongados sob o teu albergue, um dia havemos
de sentir o teu chicote, / Por isso te amamos, selvagem e livre como és. /
Dizem que não pertences a esta terra, é porque não vêem que esta terra te
pertence.” E finalmente “Hirto Cipreste” no seu simbolismo
do absurdo existencial : “Mostras-me
como a eternidade existe no momento, e como sem a morte no painel de fundo tudo
seria fútil e despido”.
Um universo discreto de
gentileza e reflexão, nos é, pois, oferecido por um jovem, nestes seus «POEMAS SOB UMA
AMENDOEIRA ALGARVIA” - universo encantador, que torna mais amargo ainda,
por contraste, o sem-sentido da realidade actual, de um mundo a ser martirizado. Por encomenda de um monstro. Friamente.
Impunemente. A caminho do caos.
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