sábado, 19 de março de 2022

«POEMAS SOB UMA AMENDOEIRA ALGARVIA”


Um conjunto de dez poemas, escrito pelo David, neto da minha irmã, que mos trouxe no domingo da nossa folia semanal - de conversas e doçuras, que ajudam a alimentar o corpo e a alma, e a ultrapassar pela amizade e os registos orais mais ou menos despretensiosos, as putinices dos tempos.

Li com grande prazer tais poemas, por vezes, em discurso directo, de sentido animista, sobre uma natureza revivida nos espaços da memória, com uma delicadeza feita de ternura e companheirismo, transposta num discurso de clareza expositiva, acompanhando um pensamento já amadurecido, conquanto mal saído ainda da sua adolescência de afectos.

Inicia-se o Memorial com “Nostalgia Algarvia» sobre os familiares e amigos que aí viveram antes, na “Pausa” primeira, dessa “terra prometida” de “avós e pais e tios quando tinham a mesma idade e também te viveram. Unidos no passado em ti, grande pacifista que és”.

E a reflexão pertinente pontuando já o descritivo visual do seu arrebatamento intimista, quebrada a gentileza na ponderação pessimista sobre a precária condição humana: “Tanta liberdade que o vento tem, pobre louco quem o tenta capturar…; “O vento não tem escolha, mas é magnânimo no seu soprar. E nós, que escolha temos?” (in “As folhas no chão”)´

A precisão do traçado, no poema “Cadela” e a transparência reflexiva da imagem conclusiva:

 

A cadela com as suas barbas pelo chão

Ouve o chamamento da rola e levanta o olhar.

O seu focinho aponta para os fantasmas,

São eles que alimentam esta vida.

Ela levanta-se e escolhe cuidadosamente uma amêndoa caída,

Parte-a nos seus dentes robustos, come-a,

E marca o tempo com o seu mastigar.

 

Segue-se o conjunto “Árvores, catedrais”. Estas últimas, da extraordinária feitura humana, mal cabendo, todavia, como metáfora hiperbólica, na realização “árvore”, “criatura” animada, de feitura para sempre mirificamente surpreendente, divina ou não, segundo a eterna estranheza humana sobre a Criação.

Uma espiritualidade constante, nestes “versos” de discurso aparentemente humilde de retórica, mas de um pensamento já rico de tortura íntima, mais elaborada em função do universo alheio, pois ainda de tímida ou discreta expressão do mundo pessoal.

 

Amendoeira

Quando eu era criança já tu eras adulta

Agora que estou velho vejo-te anciã,

Quantos anos terás mais para dar?

Ontem choveste flores em mim, e eu o que te dei?

Uma infância perdida, uma amêndoa verde comida?

Estás aqui e fazes parte deste sítio e de mim.

Não, hoje vejo que eu e este sítio é que fazemos parte de ti.

Existes esquecida, e que existência mais real pode ser tida?

Agora que te vejo e cheiro e sinto, não sei dizer se és mais real ou mais memória.

Espírito algarvio, a tua brisa quente sopra do passado,

E para onde vai?

 

Uma constante reflexão analítica, em torno das várias árvores assim personificadas – a “Figueira lázaro das árvores”; o “Sobreiro sóbrio, - “A tua paciência é infinita e não precisas muito para ser, és o teu próprio universo / Despimos-te de década em década, porque és generoso e mesmo despido manténs a tua dignidade”; a “Azinheira humilde, por cuja “fruta amarga ainda guerras serão travadas”, e “Por não seres oliveira é que gosto de ti”; o “Pinheiro Manso” - “Estiveste sempre lá e eu não dei por ti”, a “Laranjeira - “Ah laranjeira, laranjeira, trazes música aos pomares das nossas vidas”; o “Eucalipto– “Ergues-te alto e imponente, indiferente ao tempo e ao vento que passam por ti. / De-quando-em-quando, ofereces uma pernada aos deuses, é o preço a pagar pela tua insolência, quem te mandou chegar aos céus? / Ai de nós que estejamos prolongados sob o teu albergue, um dia havemos de sentir o teu chicote, / Por isso te amamos, selvagem e livre como és. / Dizem que não pertences a esta terra, é porque não vêem que esta terra te pertence.” E finalmente Hirto Cipresteno seu simbolismo do absurdo existencial : “Mostras-me como a eternidade existe no momento, e como sem a morte no painel de fundo tudo seria fútil e despido”.

 

Um universo discreto de gentileza e reflexão, nos é, pois, oferecido por um jovem, nestes seus «POEMAS SOB UMA AMENDOEIRA ALGARVIA” - universo encantador, que torna mais amargo ainda, por contraste, o sem-sentido da realidade actual, de um mundo a ser martirizado. Por encomenda de um monstro. Friamente. Impunemente. A caminho do caos.

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