“Sem”, uma preposição de carência. Carência
de título, correspondente a carência de arrimo. É como se sente Maria João
Avillez - sem arrimo, não obstante a lucidez e contundência do seu pensamento, como
sempre pondo os pontos em todos os ii da sua firmeza explicativa. Como nos
sentimos todos, de resto - inertes, incapazes de soltar mais que as lágrimas da
pena e da revolta e da condenação inúteis, tanto no caso do “monstro” russo
imperial, como no caso dos pavões da nossa governança provinciana, de artifício
oco e submisso. Sem solução, pois, e para
sempre, a avolumar certezas.
O verdadeiro pesadelo chegou sob a forma de outro virus
chamado guerra. Letal mas anunciado: a Covid aterrara sem pré aviso mas Putin
auto-sinaliza-se desde há anos.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 10 mar
2022
1Faz agora dois anos, mudou-se de vida. O mundo, o país, nós. Houve uma espécie de ordem de
António Costa – sempre há ele, vai para sete anos – e Portugal,
como se fosse uma gaveta, fechou-se.
Havia já notícias inquietantes de misteriosos vírus que vinham da China,
doentes em hospitais da Europa, altas febres, o ar estava cheio de rumores,
adivinhas, aflições. Mas não tinha a dra
Graça Freitas avisado com
invejável segurança que aquilo não era nada connosco? Tinha.
Continuaríamos a viver como habitualmente (conhecida citação). Mal
sabíamos nós porém que não continuaríamos e ainda menos que iríamos ter a
companhia da dra. Graça diariamente e quase a toda a hora, durante meses e
meses e meses. Da ultima vez que estive com humanos antes do mundo começar a
girar a nossa roda foi, no mesmíssimo ano de 2020, na reunião anual do MEL, na
Culturgest, nos dias 10 e 11 de Março. Muitos políticos, profissões liberais,
estudantes, gente nova na plateia, algumas intervenções muito interessantes. Um
arremedo da direita unida (que depois nunca mais ninguém quis transformar numa
realidade útil). Presentes ao mais alto nível e intervindo, o PSD, o CDS, a
IL e até o Chega, que o mesmo é dizer André Ventura, nesse tempo o Chega
resumia-se ao dom da ubiquidade do seu líder.
(Pequeno
apontamento de reportagem: lembro-me também do silencioso Passos Coelho se
ter levantado da plateia onde durante horas ouvira atentamente o palco, para
acompanhar Rui Rio que saía da sessão. Queria – vim a sabê-lo depois – fazer-lhe
algumas considerações a sós, sobre a sua já muito desconcertante liderança da
oposição. O então líder do PSD, não parecendo discordar do discordante
Passos, ouviu porém o que lhe dizia alguém de quem ele não gostava e que
reciprocamente também não o apreciava por ai além. Mas nem Rui Rio ignorava
o que significa Passos Coelho na direita portuguesa, nem este podia fazer de
conta que aquele não era o dirigente-mor do maior partido da oposição, no caso,
o partido de ambos – e a quem intimamente o mesmo Passos sempre vaticinara o fracasso
político. A conversa não serviu de muito como se descobriria dois anos depois,
mas tomei boa nota dela).
2No
dia seguinte, 12 Março, o país fechava como a tal gaveta e o Campo Grande –
assim nos referíamos à família nesse tempo – mudava-se vinte e quatro horas
depois para uma freguesia de Óbidos.
Ficámos
14 meses. Vivendo a certeza inquieta de uma nova circunstância e de um novo
modo de vida que brutalmente colidia com a concha de “segurança” onde nos
instaláramos e na imunidade ao risco de que nos achávamos a salvo de tudo. Seguiram-se
estranhas proibições, imposições, máscaras, distancia, confinamentos, filas de
ambulâncias, contágios, “internamentos em cuidados intensivos”. Usava-se
uma linguagem quase bélica e despropositadamente falava-se em guerra — eu
própria assim falei do vírus: nas nossas demissionárias sociedades, “aquilo”
era uma guerra. Passou tempo, a recuperação das rotinas possíveis foi-se
reorganizando aos solavancos. A vida continuava mas “achava-se” que em
décadas quase nada se vira assim de tão globalmente perigoso. Evocavam-se
tragédias passadas, faziam-se comparações com outras datas infelizes e depois
resumíamos tudo, concluindo que “afinal” éramos mais “vulneráveis” do
que julgávamos. Que é outra forma de dizer que tínhamos medo.
Um
dia chegou a salvífica
vacina que faz o que
pode por entre os avanços e recuos de estonteantes “variantes” da Covid mas o que
fez é muitíssimo: voltou-se à tona da vida. A tal “vulnerabilidade”,
calcule-se, começou até a dissipar-se: sobrevivêramos. E não é verdade que o
pesadelo estava a chegar ao fim? Podíamos
deixar de ter medo.
3Não
podíamos. O verdadeiro
pesadelo chegou sob a forma de outro
vírus esse sim, chamado guerra. Letal mas
anunciado: a Covid aterrara sem pré aviso mas Putin auto-sinaliza-se desde há
anos. Sendo as coisas o que são e a natureza
humana o que é, fez-se pouco
caso: não
habitávamos nós dentro de uma bolha supostamente segura, que banira a guerra
como uma extravagância fantasiosa? Não
achávamos que depois de 1989 e 2001 a nossa vida terrena já tinha tido o seu
lote de espantos e feitos? Que a envelhecida Europa nos certificava que a paz
era eterna e que a guerra no nosso continente-berço caíra definitivamente em
desuso?
Há
14 dias que não falamos noutra coisa, que empregamos com propósito termos
bélicos, que abrimos a boca de incomensurável espanto perante quem
não tem medo, corre riscos e afronta a morte a cada instante que pode ser o
último. Já não estávamos habituados. Nem sequer nos lembrávamos que “se” podia
ser assim. Mas na Ucrânia todos os dias eles nos mostram — com a vida — que só
pode ser assim.
4Lembro-me
de Vladimir Putin numa mesa de jantar no Palácio da Ajuda, a poucos metros
daquela onde eu me sentava. Devia ser
pelo ano 2007, quando veio a Lisboa numa segunda visita oficial.
Era um daqueles entediantes jantares onde se ouvem os talheres e normalmente
não se conhece quem está ao nosso lado na mesa. Putin maçava-se ainda mais: alheado dali, comia pouco,
não falava (cumpria os serviços mínimos protocolares), o rosto fechado e o
mesmo olhar de sempre, com o mesmo aço lá dentro. Hoje interrogo-me: olhando para ele como olhei,
teria dito ontem do que ele seria capaz hoje com calculada, fria e meticulosa
preparação?
É
certo que houvera o (inconfundível)
passado do KGB onde, com brio implacável, ele excedera as expectativas de quem
mandava; é certo que não perdoou nem esqueceu o pior dia da sua
vida, esse 9 Novembro de 1989 onde, além de ruir o muro de onde lhe vinham as
inabaláveis certezas que o guiavam, ruíra tudo o resto. E pela segunda vez: depois do fim do Império russo, o
desmembramento do Império soviético.
Enquanto
a América permanecia a potência que era e a China se tornara um indiscutível
protagonista de primeira grandeza no xadrez mundial, a Rússia esmorecia. Perante a intencional e sobranceira indiferença do
mundo, a imensa Rússia perdia poder, espaço, influência. Passara a haver só
duas grandes superpotências. E ele Putin? E Moscovo? A Rússia deixara de
contar? Parecia ao mundo que sim. E a Vladimir Putin,
que não: era
preciso pôr cobro ao vexame e termo á já indisfarçável humilhação. Recorrendo
ao único modus operandi que conhece, Putin percebeu que poderia
tratar de si, face a um ocidente distraído e desmobilizado do essencial: a
humilhação não “passaria”.
5E agora? Hoje, amanhã, daqui a oito
dias? Para onde vai o vingador da nostalgia imperial perdida? Quer a Ucrânia
toda pra que de lá possa partir para o resto da reconquista? Quer apenas uma
parte para se oferecer ali uma zona de
poder exclusivo que lhe permita outras excursões, Europa dentro? Até onde irá para limpar a sua humilhação
politica internacional e a sua obsessão pessoal? Quer morrer dentro do
império russo reconstruído com os que julga “seus”, compulsivamente unidos e a
seus pés?
O homem mais solitário que hoje o
mundo conhece – isolado externamente e já banido por parte considerável da
população – quer o quê?
PS. O silêncio é espesso. Pesa. Os portugueses não sabem o que pensar nem o que os
espera. Há dúvidas que não se dissipam e receios não mitigados. São escassas e
muito pontuais as intervenções – quase timoratas – das “autoridades”. Ouve-se o
titular da nossa política externa, e pouco mais. O primeiro-ministro “aproveitou” – aproveitou o quê? –
para viajar até Africa com a espantosa justificação de que tinha duas viagens
em atraso a Cabo Verde e à Guiné. O
Presidente limitou-se aos serviços mínimos convocando um Conselho de Estado:
nenhum destes responsáveis políticos tem nada para nos dizer de esclarecedor e
consistente – a não ser o tema dos combustíveis – sobre o que “isto” significa
para Portugal e os portugueses?
Sobre o que eles próprios pensam, temem, conversam, decidem? E onde
estão que não se ouvem (excepção para algumas palavras do general Eanes) os
grandes senadores do regime? Que retivemos, numa hora destas, de
ex-Presidentes, ex ou actuais dirigentes partidários, altas figuras do Estado,
eurodeputados com assento nos dois grandes partidos europeus? Nada, não
foi? (Ou quase…)
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO GUERRA CONFLITOS PEDRO PASSOS
COELHO
COMENTÁRIOS:
josé maria: Hitler foi
eleito democraticamente e Putin também. E não deixa de ser aterrador que
milhões de seres humanos fiquem pendentes da psicopatia dos seus dirigentes
máximos. Um só homem pode ser o detonador de uma invasão, de uma guerra mundial
ou até nuclear. Isso é medonho e convoca-nos a todos para a organização de
sistemas políticos democráticos que não assentem em qualquer forma de
presidencialismo dominante. Nos EUA, na Rússia , ou em qualquer outro país
formalmente democrático, pode sempre surgir um desvairado como Trump ou Putin,
um louco qualquer que pode carregar insanamente no botão nuclear. A democracia
formal é um bem, mas o presidencialismo que rapidamente se pode transformar em
autoritarismo ou autocracia, é a flor insidiosa do mal. Não devia haver, em
quaisquer sociedades, mormente nas democráticas, lugar para qualquer
presidencialismo, que se possa transformar em individualismo tresloucado. O
presidencialismo não é politicamente recomendável. E o execrável Putin só o vem
confirmar. Maria
Barbosa: A História não deixará, porém, de
pedir contas pesadas ao Ocidente, embora por razões mais relacionadas com a
cumplicidade económica com a Rússia e a imprudência estratégica a ela
associada. A postura estrategicamente
não-interventiva da OTAN, enquanto o mundo assiste, em directo, ao drama da
Ucrânia, vai tornar-se de penosa recordação, a menos que o desenvolvimento dos
acontecimentos venha a revelar um caso ao qual possa aplicar-se o preceito
napoleónico que recomenda: Nunca
interrompas o teu inimigo quando ele estiver a cometer um erro. David Martelo –
09 de Março de 2022 Domingos Rita: excelente artigo de uma senhora que sempre respeitei
pela sua postura, coragem e lucidez em avaliar as questões. agradeço mais uma
vez o ter-me dado uma leitura esclarecedora do que é Putin, e do que pretende. Já
no que respeita aos nossos governantes e políticos, infelizmente é mais do
mesmo. Nos momentos difíceis e de crise a virarem a cara para o lado e a
passearem.
advoga diabo: Nem
por Putin se revelar há anos proto-psicopata com o poder de carregar no botão
da destruição global, EUA e aliados resistiram à tentação de promover a eleição
de populista beligerante seu vizinho, na esperança de culminar a humilhação que
infringem à Rússia há décadas instalando-lhe misseis à porta. Agora nem o apelo
lancinante dos ucranianos "não queremos ser
heróis, queremos viver" parece deter os já salivantes falcões
da guerra e abutres da alta finança "ocidentais"! Domingas Coutinho: Excelente texto em inteligência e lucidez. É triste que
os portugueses (os lúcidos e inteligentes) se sintam numa deriva insegura
enquanto os governantes também surfam nas ondas deste tumultuoso mundo em que
vivemos mas entretanto vão tratando da sua vidinha. E nós a ver os noticiários
todos os dias com as mesmas imagens e reportagens. S Belo > João Floriano: A vanguarda da terceira calamidade bem pode ser o
governo que nos prometem. Os cessantes, o PR e respectivas cortes bem poderiam
estar a acessorar K, nas viagens. Não daríamos pela falta. Américo Silva: Espero que a Maria João Avillez continue com as
suas crónicas por muitos e bons anos. Apesar disso lembra-me sempre
o Diácono Remédios.
Paulo Silva: Cara
Maria João Avillez, a atentar no discurso feito à Duma em 2005, Putin quer,
para já, recuperar os territórios que integraram a Grande Mãe Rússia. E o
discurso que encetou na altura é um discurso bem conhecido: o discurso do
Irredentismo, já partilhado por Mussolini e Hitler. Em 2008, ano em que
atacava a Geórgia, tinha dito que a Ucrânia nem sequer era um Estado, uma vez
que russos e ucranianos formam um só povo. Se a sua intervenção na Ucrânia
for bem sucedida, no futuro qualquer comunidade russa a viver no exterior
poderá ser tentada, ou induzida, a pedir a sua Cisca Impllit: Nós, europeus , dormimos na forma. Assim como Em
Portugal votamos nos mesmos concubinos. Sem nome!
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