terça-feira, 1 de março de 2022

A propósito de uma exposição fotográfica

 

Leio uma crónica assinada por Paulo Faria, num Público de empréstimo, de 20/2 – leitura, pois, já obsoleta, para as tragédias repentinas e traiçoeiras de uma guerra iniciada há seis dias, e que se desenrola com as habituais monstruosidades das guerras, a fazer prever uma continuidade de perversão em crescendo.

Chama-se a crónica “Chorar como homens crescidos”, e é inspirada numa exposição fotográfica no Museu do Aljube, chamada “A Guerra Guardada”, de fotografias tiradas nos tempos da guerra colonial, pelos militares que nela andaram envolvidos, nos tempos salazaristas do desprezo demarcado do cronista e das expositoras fotográficas – as antropólogas Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte - os três movidos por igual repugnância pelos familiares ou conhecidos, que tiraram as ditas fotos, símbolo da sua sujeição, quando jovens ao serviço da pátria, aos ditames de um ditador que lhes impôs a defesa dela, então reduzida, entre os vários que atingira, em tempos de outra glória, a um continente que fora o primeiro a ser conquistado para a dilatação do globo terreno, cujo conhecimento relativo à sua extensão e forma, fora ignorado até esse atrevido ousar, de liliputianos pioneiros de espantosos feitos quatrocentistas e seguintes.

A crónica “Chorar como homens crescidos” é distinguida por uma dessas fotos apresentando um militar garboso, de camisa, calção e botas do seu exército, acompanhado por um rapazinho africano, muito sério e talvez orgulhoso, no seu camuflado acrescido de cinturão e bóina, embora o autor da crónica e as expositoras das fotos sejam mais inclinados, certamente, para uma interpretação menos romântica dessa seriedade – antes, de indignação protestante, desse rapazinho também garboso, que mal chega ao cinturão do militar, no espaço amplo e vê-se que arejado e varrido, de palhotas por trás.

O certo é que na tal exposição, Paulo Faria encontrou o furriel Gamito e o menino da história que ele já contara, em livro - o Vitor – que lhe fora transmitida pelo tal furriel, companheiro do seu pai, história que, aliás, adulterara, segundo afirma, cremos que dentro das intenções desfeiteadoras das tais políticas salazaristas de defesa colonial que descambaram na reviravolta dos cravos, de uma ideologia naturalmente persistente ainda hoje, como passaporte para o sucesso, que o alastramento dessas antigas fotos referenciadas na crónica vem, certamente, revigorar.

E Paulo Faria vá de se debruçar sobre as tais fotos que representam hábitos que condena, desses hoje veteranos, ou já desaparecidos, que, ao invés, talvez, de fixarem aspectos tenebrosos de uma guerra condenada ao fracasso, apresentavam antes, boas fotos no despudor da felicidade possível, nesses matos, que permitiram a mestiçagem e outras aventuras condenáveis, segundo a retórica patética do autor da crónica: «Como foi possível deixarmos estas histórias tantos anos ao abandono, fechadas no peito destes homens? Como foi possível que todos nós, os veteranos e os filhos da guerra, os políticos e os cidadãos comuns, deixássemos que estas histórias enquistassem em amargura?»

 Amargura ou natural cobardia, antes, desses escorraçados ultramarinos, que na pátria dos novos heróis, dos fugidos à guerra ou seus descendentes, que alardearam as suas convicções falsamente generosas de solidariedade universal, etc, etc., que lhes deram e dão prestígio e glória, como se vê por este escrito de expressiva foto e alastrando em duas largas páginas do Público.

Não, os tais veteranos, como o furriel Gamito - cuja história o escritor Faria adulterou, segundo afirma, (o que fez aquele zangar-se, inicialmente, zanga em breve amortizada, após as justificações, certamente que “ideológicas” do escritor Faria) – os tais veteranos, chegados cá, calaram humildemente esse passado inglório de lutadores obedientes a um ditador que não contestaram, e que os seus descendentes contestam orgulhosamente, livres da férula pesada desse caquéctico governante, de preceitos nacionalistas ultrapassados.

Preceitos que cumprem os homens ucranianos hoje, enfrentando os desmandos de um louco perverso, que nesta data 20/2 ainda só ameaçava atacar, mas contra quem os homens ucranianos se preparavam para se defender. Talvez “chorando como homens crescidos”, segundo a expressão tolamente piegas de Paulo Faria, mas com o sentimento viril de um dever pátrio imprescindível, dever que desconhece PF, mais versado nisso da fraternidade.

É claro que este se aproveita do momento propício, de condenação dos tempos passados e os homens desse tempo, já que os tempos lhe pertencem hoje, por cá, livres e fraternos.

Não, não posso deixar de comparar isto, que me repugna, como sintomático de um país só brioso na gesta futebolística, com as atitudes da gente da Ucrânia – homens e mulheres – sofrendo e arriscando-se a uma defesa para a qual se vêm preparando, no barril de pólvora em que assentam, junto de uma nação que, atacando os impérios alheios - por alturas das tais descolonizações - defende, com perícia e malvadez diabólica, hoje, o seu próprio império, que quer retomar, recriando o antigo muro. Que, pois, condenando os impérios alheios, incompreensivelmente, não se desligou do seu.

Será que o exemplo ucraniano não envergonha a pieguice torpe de Paulo Faria?

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