Sobre a tal guerra e as suas causas, com
naturais culpas para os “Ocidentais” vários. Texto bem explícito, enviado por João Sena, a quem muito agradeço.
Apesar das culpas desses, todavia, nada há que justifique tão condenável monstruosidade de um “ressentido” Putin merecedor de castigo – divino ou humano, mas que fosse imediato.
«A Europa e o Mundo estão a viver uma
situação que possui diversos pontos de contacto com os acontecimentos que se
produziram após a subida de Adolf Hitler ao poder, em 1933. O desfecho da 1.ª
Guerra Mundial servira de impulso anímico para o ajuste de contas que é de
esperar de um partido nacionalista. O ressentimento, tal como o medo,
constitui poderoso esteio para a manipulação de multidões.
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DO RESSENTIMENTO
In “A BIGORNA”
Para os russos, a Europa Ocidental
permaneceu o que tem sido ao longo dos séculos – um contraditório objecto de
atracção e repulsão, de admiração e ressentimento. TONY JUDT, Postwar, p. 1196. A Europa e
o Mundo estão a viver uma situação que possui diversos pontos de contacto com
os acontecimentos que se produziram após a subida de Adolf Hitler ao poder, em
1933. O
desfecho da 1.ª Guerra Mundial servira de impulso anímico para o ajuste de
contas que é de esperar de um partido nacionalista. O ressentimento, tal como o medo, constitui poderoso
esteio para a manipulação de multidões. No caso alemão, a
derrota na guerra foi justificada como o resultado de uma iníqua traição – a
célebre “punhalada
nas costas” –, à qual
se seguiu a humilhação dos pesados termos do Tratado de Versalhes. No caso italiano, devidamente
aproveitado pelo partido de Mussolini, pertencendo a Itália à coligação
vencedora, lançou-se mão de outro slogan – a não menos célebre “vitória mutilada” –, fundamentado em alegadas humilhações verificadas aquando da partilha dos despojos de guerra. Em ambos os casos, o ressentimento ali
estava para ser empregue na mobilização das massas. Na corrida de Hitler para a guerra, o pacifismo
dos antigos Aliados e o desejo de que uma nova guerra não eclodisse sem um
motivo forte permitiram ao ditador nazi suplantar sem oposição a reconstrução das Forças Armadas alemãs,
a reocupação da Renânia, a anexação da Áustria, a absorção dos Sudetas,
território checoslovaco, e, logo depois, a ocupação de toda a Checoslováquia. Aí, os Aliados decidiram que, na próxima
vez que Hitler pisasse uma ‘linha vermelha’, iriam para a guerra. Ainda assim, nas semanas que antecederam o seu início,
o Führer “não conseguia compreender por que razão a atitude
britânica tinha agora mudado tão repentinamente da conciliação para a
resistência”. (1)
Todavia,
no caso de o próximo passo ser para leste da Alemanha, a geografia nada
ajudava. Percebia-se que a vítima seguinte seria a Polónia, país
cuja integridade fora garantida pela França e pela Grã-Bretanha. Mas como é
que os Aliados poderiam ir em socorro da Polónia, se a Alemanha a invadisse,
tendo este país de permeio? Não podiam, restando-lhes declarar guerra ao
agressor e dar
(1) BEEVOR, Antony, A Segunda Guerra Mundial, p. 28.
início
a um pouco entusiasmado ataque à fronteira oeste alemã, no que passaria à
história como a ‘drôle de
guerre’. Um mau
começo que, no entanto, não impediria nova vitória, em 1945. As trágicas
consequências da emergência na Europa, entre guerras, de duas potências de
regimes ditatoriais e nacionalistas levou os Aliados, desta vez, a uma atitude
de grande prudência. Em vez de punirem a Alemanha e a Itália (e o Japão) com a
severidade de Versalhes, procuraram apoiar a construção de regimes democráticos, o que
fizeram com assinalado sucesso. No
final da guerra seguinte – Guerra
Fria –, que se
concluíra com a vitória política dos aliados da OTAN, não foi possível aplicar
inteiramente a mesma receita, dado que, logo a seguir, se deu o desmembramento
da União Soviética, num processo essencialmente interno e num país de dimensões
imensas como é a Rússia. Mas,
simultaneamente, havia um conjunto de países que estavam na esfera de
influência da URSS e que viveriam os novos tempos em modo de libertação do
decadente tutor e de opção pela democracia ocidental. Assim, por decisão própria, além da integração da Alemanha Oriental na República Federal
da Alemanha, optaram por regimes
democráticos a Polónia, a Hungria, a Checoslováquia, a Roménia e a
Bulgária, tudo
países que já eram independentes entre 1945 e 1991. Além destes, proclamaram
a sua independência da URSS a Estónia, a
Letónia, a Lituânia, a Moldávia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Destes, os quatro primeiros optaram também
pela adopção de regimes democráticos de tipo ocidental. E, aqui, de novo se revelou o ressentimento
que grande parte das populações desses países sentia em relação à Rússia.(2) Logo
em Maio de 1990, o presidente Vaclav Havel, da Checoslováquia, antecipou que a
OTAN poderia ser a semente de um novo sistema de segurança europeu, com a
extensão da organização ao Leste da Europa.3 Mas havia ideias bem diferentes.
Henry Kissinger, por exemplo, considerava como melhor solução que os três
países centrais – Checoslováquia, Hungria e Polónia – fossem declarados
neutrais, à semelhança da Áustria. Em 10 de Março de 1992, todas as antigas
repúblicas soviéticas foram admitidas no NACC (North Atlantic Cooperation Council),
embora sem qualquer compromisso de futuro ingresso na OTAN. Na reunião do
Conselho do Atlântico de Junho de 1992, em Oslo, o secretário de Estado dos
EUA, Lawrence Eagleburger, aventurou-se a referir que “deveríamos considerar a
possibilidade de estender a Aliança. Para tal, haverá um certo número de
condições, a menos importante das quais não será o empenho na democracia... mas
o essencial não é – e, aqui, eram os EUA a falar – que haja, presentemente,
algum entendimento comum sobre esta matéria, mas os EUA sugeriam que,
futuramente, em devido tempo, a Aliança possa ser alargada.”4 Em Setembro de
1993, a posição do presidente Yeltsin, da Rússia, favorecia outro tipo de
solução para a segurança dos países da Europa Central (os que haviam saído da
órbita da URSS), oferecendo-lhes garantias através de uma declaração política
ou mesmo de um tratado de cooperação entre a Federação Russa e a OTAN. O debate
sobre a segurança europeia iria prosseguir mediante a adopção de diversas
medidas, de que logo a primeira seria a Parceria para a Paz, envolvendo,
praticamente, todos os países europeus.
(2) Excluo
deste texto o reflexo da desagregação da URSS nos países da península
balcânica, por não estarem directamente ligados aos acontecimentos em curso. (3) SOLOMON, Gerald B., The NATO Enlargement Debate,
1990-1997: Blessings of Liberty, p. 7. (4) Ibidem, p. 19. 3
Contemporaneamente,
um outro acontecimento tem lugar na Europa, com consequências várias, entre as
quais algumas no âmbito da segurança –
a assinatura do Tratado da União Europeia, em Maastricht, a 7 de Fevereiro
de 1992, e que entraria em vigor em 1 de Novembro de 1993. Deste modo, a partir da Comunidade Económica Europeia, constituía-se uma nova unidade política, a União Europeia (UE), a qual, não sendo especificamente uma aliança no
sentido estratégico do termo, não podia deixar de se considerar um bloco político
com obrigações de solidariedade entre os seus membros, favorecendo a
sobreposição de interesses entre UE
e OTAN.
Todavia, como não se perspectivava para breve a possibilidade de os países de Leste reunirem as
condições de adesão à UE,
começou a germinar a ideia de que, como compensação, talvez pudessem aderir à OTAN, ideia que os EUA trataram de acarinhar. Apesar da improbabilidade de uma integração
próxima, da parte dos países de Leste não tardaram os pedidos oficiais de
adesão à UE – Hungria e
Polónia, em 1994, Roménia, Eslováquia, Estónia, Lituânia e Bulgária, em 1995, e
Eslovénia e República Checa, em 1996.
Tratava-se, seguramente, de uma opção quanto ao futuro destes países – a consolidação de regimes democráticos de tipo
ocidental – e da rejeição inequívoca do seu passado como
repúblicas socialistas da órbita da URSS. Mas
seria, também, uma demonstração de ressentimento pela sujeição
experimentada entre 1945 e 1990.
Entretanto, em 27 de Maio de
1997, é assinado em Paris, entre a OTAN e
a Federação Russa, o Acto
Fundacional de Cooperação Mútua,
no qual, entre diversas considerações, se realçava: • Que a Rússia
prosseguia a construção de uma sociedade democrática e a realização da sua
transformação política e económica. • Que a Rússia estava a contribuir para as
forças multinacionais na Bósnia-Herzegovina. • Que, para assegurar as
actividades e objectivos deste Acto e desenvolver abordagens comuns à segurança
europeia, a OTAN e a Rússia criariam o Conselho Conjunto Permanente OTAN-Rússia. (5) • Que as provisões deste Acto não confeririam à
OTAN ou à Rússia, de qualquer forma, o direito de veto às acções da outra parte
nem afectariam ou restringiriam os direitos da OTAN e da Rússia a decisões ou
acções independentes. • Que a Rússia estabeleceria uma Missão na OTAN,
encabeçada por um representante com a categoria de Embaixador. Fariam parte
desta Missão um alto representante militar e respectivo estado-maior, para fins
de cooperação militar. • Que os Estados membros da OTAN reiteravam que não
tinham a intenção, nem planos, nem motivos para a instalação de armas nucleares
no território dos novos membros, nem nenhuma necessidade de mudança na atitude
nuclear da OTAN ou da sua política nuclear – e não previam qualquer futura
necessidade de o fazerem. (6) Quando,
recentemente, eclodiu a crise que conduziu à invasão da Ucrânia pelo
exército da Rússia, foi largamente argumentado que essa atitude teria sido provocada, em grande parte,
pela extensão da OTAN aos países que haviam feito parte da ‘esfera de
influência’ soviética, entre 1945 e 1991. Poucas opiniões têm recordado o que
fora estabelecido, por mútuo acordo, no documento atrás citado, muito
especialmente a importância decisiva da democratização da Rússia, que, ao
invés, se foi transformando numa ditadura de feição fascista. Ainda assim,
não me foi dado ler nenhuma opinião
que afirmasse, sem rodeios, que a Europa teria vivido feliz e em paz se a única
extensão da OTAN tivesse sido a resultante da unificação da RFA, a que
correspondeu a integração na organização do território da antiga RDA.
(5) Substituído pelo Conselho NATO-Rússia (CNR) após os ataques de 11 de Setembro de 2001. (6 ) https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_25468.htm
Imaginemos, ainda assim, que, de
facto, mais nenhum país do antigo bloco soviético tivesse aderido à OTAN. Esse
facto, no entanto, não alteraria o efeito da maior catástrofe geopolítica
do século XX, como se lhe haveria de referir Vladimir Putin, em Abril de 2005. Não houvera, porém, nenhuma humilhação decorrente
de um qualquer “Tratado de Versalhes” imposto pelos “vencedores”, antes
se verificando uma
derrota auto-infligida. O que,
obviamente, também não alteraria a vontade dos nacionalistas russos de tudo
fazerem para recuperar a sua ‘esfera de influência’. Logo em 1991, se haveria de destacar na política
russa a figura de Vladimir Zhirinovsky “que
construiu o seu apelo eleitoral na base de uma impenitente xenofobia ao estilo
da Velha Rússia, afirmando que o povo russo se havia tornado na mais humilhada
nação do planeta”.(7) Logo no ano
seguinte, Zhirinovsky estabeleceu estreitas relações com Jean-Marie Le Pen, dando início a uma ideia de aproximação entre a Rússia e a extrema-direita
europeia, que, ao
longo dos anos, se foi reforçando.
Prosseguindo a análise desta hipótese, olhemos para o mapa
seguinte, onde destacámos a vermelho os três
países bálticos – Estónia, Letónia e Lituânia –, tornados independentes da
Rússia em 1991. Sendo,
nesta hipótese, a Alemanha o país da OTAN mais próximo, como é que se aplicaria
a este conjunto de pequenos países o princípio da “indivisibilidade da
segurança” relativamente ao seu poderoso vizinho russo? Certamente que ninguém se lembraria de tal princípio, ficando os três países do Báltico inteiramente à mercê
da Rússia. Esse
cenário tornaria facilmente exequível, porque não eram países da OTAN, o
controlo político da Estónia, Letónia e Lituânia pela Rússia, constituindo-se,
juntamente com a Bielorrússia e Ucrânia, o território-tampão que materializaria
a desejada “esfera de influência” da Rússia (mapa seguinte).
Voltando à realidade do tempo presente, revejamos, agora, o cenário mundial dos
anos que antecederam a actual crise, salientando os seguintes aspectos: • A facilidade com que, através de operações
dissimuladas nas redes sociais, a Rússia tem influenciado as eleições
americanas e o referendo sobre o Brexit; • A notória
falta de vontade política da maior parte dos países europeus em atribuir
recursos financeiros adequados às suas forças armadas; • A OTAN a ser considerada uma
organização obsoleta pelo presidente Trump, e em ‘morte cerebral’ pelo
presidente Macron; • A
progressiva diminuição da presença militar americana na Europa; • A Europa fragilizada pela saída do Reino Unido da
União Europeia; • Os laços
de cumplicidade económica, sempre crescentes, entre a Rússia e a UE, deixando
esta numa forte dependência energética; •
A Alemanha, maior potência económica e populacional da UE, tendo desde há 30
anos abdicado de ser uma potência militar e, pelo contrário, forjado fortes
laços de dependência económica da Rússia;
(7) JUDT, Tony, Postwar, p. 1086.
• A fragilidade estratégica dos EUA, expressa na divisão
interna entre os dois maiores partidos, a que se somou o enorme fiasco da
retirada do Afeganistão; • A débil reacção do Ocidente às acções militares da
Rússia na Geórgia, no Donbas e à anexação da Crimeia; • A simpatia,
ainda remanescente no Partido Republicano dos EUA, para com a figura de
Vladimir Putin; • A notória prioridade que os EUA dão, presentemente,
ao que antevêem ser a ameaça da China.
A
partir de 2014, a agudização das relações entre a Rússia e a Ucrânia,
com a anexação da Crimeia e a rebelião no Donbas, levou a OTAN a destacar
algumas forças para os países da organização mais próximos da Rússia, de modo a
garantir que qualquer agressão encontrasse no terreno forças da aliança que
garantissem o imediato empenhamento colectivo. Foi perante
este cenário de decadência e fragilidade do Ocidente que o presidente russo,
Vladimir Putin, deu início a uma crise internacional em torno da situação na
Ucrânia, alegando, pelo contrário, que a Rússia se encontrava ameaçada pelos
EUA e pela OTAN. Na
realidade, Vladimir Putin aproveitou o momento de debilidade
estratégica do Ocidente para se declarar ameaçado. Para
sublinhar, ainda mais, a fraqueza do Ocidente, os dirigentes dos países da
OTAN, do Reino Unido e da UE, apressaram-se a declarar que, em caso de guerra,
não enviariam tropas para combater ao lado das forças ucranianas. Apesar da incoerência da argumentação, sempre
subsistem movimentos de opinião que procuram transferir as culpas para o
agredido, expressando sem cessar a voz do seu infindável ressentimento. Da
acumulação de derrotas – ideológicas,
geopolíticas e eleitorais – não
retiram outra conclusão senão a sua sempiterna clarividência. A
História não deixará, porém, de pedir contas pesadas ao Ocidente, embora por
razões mais relacionadas com a cumplicidade económica com a Rússia e a
imprudência estratégica a ela associada.
A postura estrategicamente não-interventiva da OTAN, enquanto o mundo assiste,
em directo, ao drama da Ucrânia, vai tornar-se de penosa recordação, a menos
que o desenvolvimento dos acontecimentos venha a revelar um caso ao qual possa
aplicar-se o preceito napoleónico que recomenda: Nunca interrompas o teu inimigo quando ele estiver a
cometer um erro.
David Martelo – 09 de Março de 2022
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