Num mundo repetitivo, onde sofrimento e
cólera de nada valem para obstar às tragédias, puras insignificâncias nos
baldões dos tempos, apenas mudanças acompanhando o formato dos mundos, coisa
passageira. Uma bela análise de Fernando Leal
da Costa, sobre a rodagem do “hoje”, amanhã resumida na frieza
dos estudos da História Universal.
Nos dias que correm
Provavelmente as maiores mudanças,
graças a Putin, tenham sido o incremento da consciência europeia para ocidente
da Rússia e o reaproximar da América e do Reino Unido ao espaço continental
europeu.
FERNANDO LEAL DA
COSTA, médico, ex-ministro da Saúde
OBSERVADOR, 30
mar 2022, 00:12
1Não há só guerra na Ucrânia.
Nos
dias que correm criou-se a ideia de que só é importante o que se passa na
Ucrânia, vilmente invadida.
É, certamente, mas não é a única guerra que decorre. Não ignorem outros
Países e Nações que permanecem há dezenas de anos, de forma contínua ou intermitente,
em guerra. Acontecem em
África, na Ásia, no Pacífico e, em menor escala, na América do Sul. Procurem que encontrarão notícias da Líbia, do
Sudão, da Etiópia, do Mali, da Nigéria e do Congo, do Iémen e da Síria, de
Israel e da Palestina, do Iraque e do Curdistão, ainda do Afeganistão, do
Cáucaso, de Caxemira, dos Padresh, da Birmânia, da Tailândia, das Filipinas,
dos guerrilheiros marxistas e narcotraficantes que ainda estão nas selvas da
Colômbia e do Perú. A
conflitualidade está aí, connosco, na proporção direta da intolerância e do
dinheiro “fácil”.
2A Rússia é o que sempre foi. Um
Império.
Nem os supostos “comunistas” eram
comunistas. Eram imperialistas, herdeiros do poder Romanov que usurparam por
golpe de Estado. Até ao Gorbachev, a URSS era
um Estado imperial com semelhanças ao Sacro Império Romano Germânico, federado
e com um imperador eleito por colégio.
Enfim, eleito será excesso linguístico. Digamos que decidido pelos
interesses dominantes entre as elites do partido, mais purga ou menos purga. Comunismo era cimento ideológico para consumo interno
e produto para exportação do Império.
Agora veio Putinperator que, independentemente dos pretextos que arranje, quer
recuperar a Rússia que o fim da URSS desbaratou. É um estado de espírito que
não se compraz com rebuços morais. O sentimento da necessidade de conquista não
é compatível com o respeito pela terra dos outros.
3A terra não é só de quem a
trabalha.
A noção de pertença
da terra é uma questão difícil em muitos lugares do mundo. A
lógica do “cheguei primeiro” desvanece-se com o passar do tempo. Se forem só por esse caminho, Judeus e Árabes
nunca se entenderão sobre que tem direitos territoriais sobre a Palestina, para
já não falar na posição moralmente periclitante dos Europeus nas Américas. O leste Europeu, numa perigosa aproximação da África
de hoje, tem fronteiras que resultam de tratados construídos em cima de
tratados, de migrações e deportações. As fronteiras entre Estados Bálticos, Polónia,
Prússia, Alemanha, Rússia e Império Austro-Húngaro estão há séculos a
deslocar-se. A Ucrânia é
um bom exemplo do que têm sido fronteiras em movimento periódico. O Cáucaso, entre Ossetias, Kabardino-Balkaria, Abkhasia e enclaves como o de Nagorno-Karabakh, ainda é mais confuso. Georgianos, Russos, Arménios e Azeris trocam tiros
regularmente. Os circassianos já foram Turcos e a margem norte do
Mar Negro teve Gregos e Alemães, até que Estaline
os mandou para o Casaquistão. O mesmo Estaline que deportou em massa
Ingushes, Karachais e Chechenos por, supostamente, terem colaborado com os
Nazis. E, com a mesma pulsão genocida, já tinha aplicado a terapia da
fome à Ucrânia, no período de imposição da reforma agrária vermelha, o Holodomor.
4Há sempre razões de queixa.
Se os Ucranianos se queixam, bem que
têm razão, os Russos respondem com as divisões SS ucranianas e as forças da
extrema direita de Melnyk, Bandera e Setsko que assassinaram dezenas de
milhares de Polacos, Judeus e Russos.
Razões de queixa terão todos. Não
há justiça ou vingança que justifique a brutalidade da guerra. Ter varrido
com napalm a cidade de Tóquio, destruído Guernica, Berlin, Hamburgo, Londres,
Coventry e Dresden, sem propósito militar que não fosse instilar terror, só foi
crime para quem estava de um dos lados. Os
vencedores nunca cometem crimes de guerra.
As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram legitimadas porque, assim dizem, o
massacre de civis poupou a vida de milhares de militares e de ambos os lados da
guerra. Homo lupis homini. Nesta
guerra da Ucrânia, como em todas, haverá atrocidades dos dois lados.
5Ninguém está autorizado a ser
neutral.
Com
a Guerra da Ucrânia de 2022, como acontece com qualquer conflito em que todos
tendem a tomar partidos, assiste-se ao usual maniqueísmo em que os soldados
Russos não são filhos de mães que sofrem com a sua perda, só os Ucranianos são
heróis. Putin poderá ser um criminoso (tudo indica que é
mesmo) e o Zelinsky um novo Ghandi (mas
com armas, já agora). Quem tentar chamar as partes à razão é um colaboracionista.
Já li, neste jornal, que ser neutro é estar com Putin. Tentar ver os dois
lados, ponto de partida para qualquer negociação, é uma concessão aos patifes
do Kremlin. Assim não vamos lá. Como também não me parece que o insulto
recíproco seja uma boa plataforma para começar a conversar.
6Todos vão perder esta guerra.
A opinião pública precisa de se
preparar para aceitar um acordo em que todos possam dizer que ganharam alguma
coisa e todos vão perder. Os Russos
enganaram-se ou quiserem deixar-se enganar. Começaram devagar, aparentemente
mal preparados, esperando uma rendição imediata dos Ucranianos. Agora, como na Síria,
vão destruindo para abrir caminho, presos na lama, presos no tempo que corre
contra eles. A vantagem
está do lado de quem defende escombros. Em Mariupol, cidade mártir, a
Estalinegrado que os Russos ofereceram aos Ucranianos, luta-se casa a casa e
mata-se por um metro quadrado. Os Russos tentam chegar à linha do Dniepre e cortar a
Ucrânia ao meio. Dificilmente o conseguirão.
Muito provavelmente terão de parar com o acentuar do degelo. Terrenos
empapados não são próprios para cavalgadas de blindados. Por estrada? Tem-se visto. Dispara-se para o da
frente, provoca-se engarrafamento, abatem-se os de trás. Kiev só cai se for terraplanada.
No
fim desta guerra que poderá acabar, um dia, nem que seja por exaustão ou porque
o casus belli será esquecido, a grande vitória da Ucrânia e Rússia será
voltarem todos à linha de partida como já li em artigos de opinião. Uma
finlandização ucraniana, uma aceitação de impotência depois de mostrar
resistência. Um empate
em que o maior ganha. A Rússia ficará com um Donbas, talvez maior do que agora
tem, mais a Crimeia a fechar o estreito de Khech. A Ucrânia ficará fora da
NATO, como já os próprios admitiram e o Boris confirmou. Bendita
guerra da Ucrânia, pensará o PM Britânico, que fez esquecer as festas em
Downing Street e fez do homem um estadista. A Ucrânia poderá entrar na UE, daqui a uns anos, o que
será um bónus para as empresas de construção que se vão encarregar da
reconstrução. Entretanto, morreram e ainda vão morrer milhares de pessoas, de
muitas nacionalidades. Para quê? Para que os políticos cantem vitória e tudo
fique mais ou menos igual?
7A Ucrânia está só.
Se
a NATO quisesse ter defendido a Ucrânia teria lá colocado tropas, um avião que
fosse, à luz de um tratado de defesa, ainda antes da adesão como membro de
pleno direito daquele País Europeu. Poderia tê-lo feito antes mesmo da
concentração de tropas russas. Não o fez, para não irritar Putin, e agora nunca
o fará. A Ucrânia está e estará sozinha no terreno, como ou sem Brigada
Internacional de Machados lusos e quejandos. Eles que se aguentem que nós
mandamos as armas. A Ucrânia, quem sabe, poderia ter aceitado a perda do
Donbas e da Crimeia como moeda de troca para a afiliação à NATO. Com uma base
Americana no seu território, imagino que as negociações seriam mais fáceis. Mas
a NATO e a União Europeia tiveram medo. Medo de perder, medo do frio que a
perda do gás russo traria. E a Ucrânia não quis ceder um milímetro.
8Da guerra não vai resultar nada
de bom.
Haverá
quem diga que a “ordem internacional” mudou. A sério? Acham mesmo que a Rússia, com ou sem Putin, vai
passar a ser politicamente diferente? Imaginam que a China desistirá de Taiwan,
agora que já sabe que os Americanos rosnam, mas não mordem? Os Europeus,
Russos incluídos, estarão doravante juntos frente às ameaças do Islamismo
fanático? Não creio, até porque o alinhamento atual é Rússia + Xiitas (Irão e
afiliados) vs América + Sunitas (Arábia Saudita e petróleo do Golfo). A guerra
fria voltou? Alguma vez tinha acabado? O Great Game de hoje é a Índia
alinhada com a Rússia e EUA aliados do Paquistão, uma reserva de terroristas
encartados. O cinismo é tão grande que os EUA já nem se importam de
ter um Afeganistão talibã, sunita, só para que o Irão não se estenda para leste. E talibã que se
preze não gosta de Russos. Alguém deixará de comprar gás e petróleo à Rússia? O
gasoduto da Rússia para Alemanha, o tal que a Sra. Merckel, criada na RDA,
tanto apadrinhou, está no limbo mas ainda vai fazer o seu serviço quando a coisa
acalmar. A OPEC aumentou a produção? Valeu a pena intervir na Líbia? A Síria
está melhor depois de Russos e Americanos terem andado lá a deixar cair umas
bombas? Os Curdos já têm País sentado na ONU?
Provavelmente
as maiores mudanças, graças a Putin e associados, tenham sido o
incremento da consciência europeia para ocidente da Rússia e o reaproximar da
América e do Reino Unido ao espaço continental Europeu. Daí
resultou o enfoque, embora eticamente nefasto, na necessidade de aumento do
potencial bélico da NATO, Alemanha incluída. Ninguém se
iluda. Gastar
mais em armamento e defesa implica mais dívida e menos despesa em bens sociais,
incluindo na saúde. Por outro lado, empurrar a Rússia para entendimentos a
oriente e promover condições para uma Eurásia
ainda mais Chinesa não será
bom para a Europa. A Guerra
da Ucrânia deveria e poderia ter sido evitada se tivesse havido mais bom senso
e clarividência de Putin, Zelinsky, da NATO e dos EUA. Agora, chegados onde estamos, por mais que procurem nada
de bom resultará para ninguém.
Lamentavelmente,
a Rússia, grande País Europeu com extensão Asiática, acaba sempre por
preferir uma dimensão imperial autónoma e longe da integração com o resto do
continente que está a ocidente. Não querem “pertencer”. O melhor será aceitar
isso, desistir de tentar impor aos Russos o que não podem, nem querem aceitar,
e conseguir negociar em termos que acomodem algumas das reivindicações de cada
parte. Vai ser difícil. Agora, como Putin decidiu e a NATO acabou por aceitar,
isso só será possível depois de mais uns massacres e destruições. Não, veemente não, a guerra não pode ser a continuação
da política por outros meios, mas quando começa é difícil que acabe antes que
ambos se cansem ou de alguém aceitar desistir. Nenhuma destas opções estará para muito breve. Espero
estar enganado. Como comecei, há guerras tão antigas que ficaram esquecidas.
Arrefecem, mas não desaparecem.
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