E o Terror, que deixou
largas memórias macabras na geração a que já pertenci, e que, uma vez mais, é trazido
à baila, nesta geração de um seu seguidor, bem irmanado com ele, em estranha
perversão animalesca, que tantos espíritos atrai hoje, mais do que nunca, em
ódio que, no caso português, resulta da herança de outro ódio, ainda superior, pelo
“ditador” Salazar. JNP, magistralmente,
reconta, com o apoio das suas leituras inconfundíveis.
Rússia: um centenário trágico
Nos tempos que correm, é importante
lembrar a História, e particularmente a História da Rússia, em que pesa e
pesará a herança de Estaline e do bolchevismo.
JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 26 mar 2022, 00:2028
No próximo dia 3 de
Abril faz um século que Estaline foi
designado Secretário-Geral do Partido Comunista da Rússia. É uma data
decisiva para a
história política da Rússia e do mundo, num tempo em que a Rússia volta a estar
no centro da nossa História.
O
mundo contemporâneo nasceu da Grande Guerra de 1914-1918 e da “paz punitiva” de
Versalhes. Em 1917, as
derrotas das tropas russas na frente oriental arrastaram a queda da
monarquia dos Romanoff e trouxeram a revolução de Fevereiro e a revolução de
Outubro, com o triunfo dos bolcheviques.
Os bolcheviques
eram a ala esquerda do Partido Social-Democrata Operário da Rússia que, em
1905, sob a chefia de Lenine, triunfara no congresso. O “Outubro
Vermelho” levaria ao
poder estes revolucionários determinados, imbuídos do messianismo
utópico dos justos e iluminados, que não concebem limites éticos ou
morais na acção contra os inimigos do Bem, do Progresso, do Povo e da
inexorável marcha da História. A
partir do Verão de 1918, as forças anticomunistas, os “exércitos brancos”, com apoio de contingentes militares estrangeiros
ocidentais e japoneses, iniciaram a resistência e a guerra civil que os bolcheviques iriam vencer.
Para
a vencer, os bolcheviques – que eram uma minoria não só na Rússia, mas até entre a
oposição ao czarismo – seguiram
a estratégia
dos jacobinos, de quem Lenine era admirador e com quem aprendera a manipular princípios
democráticos para estabelecer a
ditadura e o Terror. Do mesmo
modo que os
jacobinos tinham
dividido os inimigos em categorias sociais rígidas – aristocratas, padres, camponeses da Vendeia –, assim também os bolcheviques identificavam “inimigos de classe” e “inimigos
do povo”, a quem
retiravam qualquer vestígio de razão ou de humanidade, recorrendo ao terror em
grande escala, como uma forma de “higiene
social”.
A
História contemporânea tem mostrado que, para levar a opinião pública, as “massas”, o povo a aceitar e a legitimar a guerra sem tréguas, o
genocídio ou o Terror, é preciso, primeiro, definir o grupo político ou social
ou étnico ou nacional a eliminar como “não-humano”, como inimigo da Humanidade,
da Nação, do Povo ou do que for. Foi o que
os jacobinos fizeram, primeiro com os monárquicos
e católicos, depois com os “moderados” girondinos e,
finalmente, entre eles. Foi também o que os bolcheviques fizeram com os russos-brancos
e com os
mencheviques, antes de
se começarem a sanear ou a eliminar entre si. Foi o que Hitler fez com os judeus e os
comunistas e depois
com os seus partidários menos seguros, na noite das Facas Longas.
Foi o que, no Ruanda, fizeram os
hútus com os tutsis e depois com os hútus moderados. É o que, nas sociedades actuais, recorrendo
às técnicas possíveis, das fake news e dos fact checks às deturpações
de declarações e à ocultação de realidades,
pretende fazer-se com toda a dissidência
ou problematização do “pensamento único” –
silenciando-as e cancelando-as socialmente. À falta de eliminação física, que ainda não é
permitida e pode dar cadeia, recorre-se ao assassinato moral.
A
ascensão
Com
“a revolução em perigo”, a Tcheka – a polícia secreta bolchevique que
sucedeu à Okrana czarista e
que em poucos meses fez mais vítimas do que a Okrana em
várias décadas – exterminou
russos-brancos, sociais-revolucionários, mencheviques, socialistas e anarquistas
aos milhares, em represálias permanentes.
É neste contexto histórico e político
que Estaline se vai afirmar. Nascido em 1878, em Gori, na Geórgia, filho de um pai sapateiro, que detestava, e de uma
mãe que adorava, Estaline
foi educado no seminário ortodoxo de Tiflis. Iossif Vissarionovitch Dgongachivili
teve uma juventude de leituras “revolucionárias”, de Victor Hugo a Karl Marx,
e iria ser sempre um devorador de livros e de filmes. O futuro Czar Vermelho não se
integrou na disciplina do seminário. Adolescente,
começou a escrever em publicações nacionalistas georgianas e, a partir de 1903,
como militante socialista clandestino, conheceu as primeiras prisões. Em 1906
encontrou-se com Lenine em Estocolmo e em 1907 estava já em Londres no Congresso
do Partido.
Durante anos, até à revolução de 1917,
Estaline está na linha da frente da luta revolucionária no Cáucaso, no exílio,
nas prisões e na deportação siberiana. É
membro do Comité Central do Partido a partir de 1912, quando escreve um ensaio
sobre “O Marxismo e
a Questão Nacional”. Talvez
porque se tenha especializado no tema, Estaline vai ser nomeado Comissário do Partido para as
Nacionalidades e com Lenine, Zinoviev, Trotsky, Kamenev, Bukarine e
Sverdlov vai fazer
parte do Executivo
do Comité Central. Nas
discussões internas da cúpula do Partido, Estaline quase sempre apoia
Lenine que, às vezes, está em minoria. Tem também, durante a guerra civil, responsabilidades no abastecimento de Moscovo. Na frente, combate contra Denikine e em Outubro-Novembro de 1919 está
na invasão da Polónia, invasão que
terminará com uma grande derrota para os bolcheviques, confirmada pelo Tratado
de Riga de Outubro de 1920.
Acabada a guerra civil com a retirada
pelo Mar Negro das forças de Wrangel da Crimeia, o ano de 1921 anuncia-se com
forte contestação interna, desde a revolta camponesa de Tambov à dos
marinheiros de Kronstadt. O Exército Vermelho conseguirá
dominar estas rebeliões “reaccionárias” com a habitual repressão e terror, mas
uma fome tremenda mata milhões de camponeses.
Em
Março de 1921, perante uma gravíssima situação económica, Lenine substitui
as directivas do “comunismo de guerra” pela chamada Nova Economia Política, que
reintroduz factores de mercado. Os bolcheviques consideravam a liberdade
de expressão, de imprensa e de reunião, bem como o sufrágio universal e as
eleições livres, “direitos democrático-burgueses”, que convinha usar e explorar
quando na oposição, mas que urgia eliminar quando se tornavam
“instrumentos anti-socialistas”, passíveis de serem utilizados pela “burguesia”
e pela “contra-revolução”. Os
seus actuais sucessores da esquerda radical parecem seguir o mesmo caminho
quando contestam os direitos de livre expressão dos seus adversários ou
denunciam triunfos eleitorais como triunfos do “populismo” e da
“extrema-direita”.
Estratégia de controlo
São
conhecidas as críticas de Trotsky e da esquerda bolchevique a Estaline, que
acusam de ser um revisionista da ortodoxia leninista. Estaline tinha poder dentro do Partido e do Governo e como
Comissário das Nacionalidades do SovNarkom (abreviatura russa para o Conselho dos Comissários do
Povo). Percebeu cedo que a passagem de um partido bolchevique que, em
1917, tinha 20 mil membros, para o partido vitorioso da guerra civil, com
centenas de milhares de militantes, significava a transição de uma elite de “mentes
brilhantes”, como Trotsky e
Bukarine, que
aceitavam a liderança de Lenine mas que discutiam entre si, para um colectivo
muito maior com uma rede burocrática de suporte. Manteve-se no Conselho
Militar Revolucionário da República, que se ocupava das operações militares, e
no Conselho do Trabalho e da Defesa, que tratava da logística económica do
Exército Vermelho. Lenine encarregara-o, especificamente, de liquidar os
mencheviques sobreviventes nas estruturas do Partido e do Estado.
Tal
como no processo revolucionário de Paris, no período mais radical da Revolução
Francesa, o poder passara, em modo ditatorial, para o Comité de Salvação
Pública de Robespierre e de um punhado de incondicionais, assim também a
urgência revolucionária, a guerra civil e o combate à reacção levaram os
bolcheviques a entregar o poder a um Comité Central de 19 membros. Destes, sairia o Politburo, para se ocupar da política e da estratégia
política, e o Orgburo, para se ocupar da administração do Estado. E a “República
dos Sovietes” logo
inverteria a relação, passando o Partido Comunista a
controlar os seus órgãos superiores e a dominar os Sovietes e a Administração
do Estado.
A regra era a concentração do poder
nesse colectivo de meia dúzia de “intérpretes do proletariado”. Disse-se que a razão pela qual Estaline ficou com
o Secretariado no Partido foi a preferência dos restantes comissários por
pelouros mais nobres, como os Estrangeiros ou a Guerra. Mas seria precisamente a partir do Secretariado que
Estaline firmaria o seu domínio. Aí ia
ter não só o poder de nomear, mexer e manobrar o pessoal partidário, mas
também a oportunidade de centralizar uma importante rede de informações.
Depois
da doença e da morte de Lenine, Estaline consolidou o seu mando em meia dúzia
de anos através de uma série de alianças e da progressiva
eliminação de rivais. O primeiro
foi Trotsky, cuja “revolução mundial permanente” sofrera severas
derrotas em Itália, na Alemanha e na Polónia – com a vitória do fascismo, o
esmagamento da revolta comunista dos spartakistas em Berlim e dos comunistas na
Baviera e a derrota militar na Polónia, às mãos de Pilsudsky –, o que
contribuiu para o triunfo da tese estalinista do “Socialismo num só país”.
Ideias que matam
Estaline derrotou a esquerda do
partido, encabeçada por Trotsky, com o
concurso de Kamenev, Zinoviev e Bukarine.
Depois, aliou-se a
Bukarine e à
oposição “de direita” para neutralizar Zinoviev e Kamenev. Seguindo uma
linha “centrista” e com o apoio dos quadros médios do Partido e o controlo
da GPU (Directoria Política do Estado), que sucedera à Tcheca, Estaline neutralizou primeiro os esquerdistas e depois o
direitista Bukarine. Em
1936-38, liquidá-los-ia a todos nos Processos
de Moscovo.
Os
comunistas, de boa ou má fé, impressionados pelos crimes e horrores do comunismo
soviético no quarto de século do poder absoluto de Estaline (1928-1953),
procuraram construir a narrativa de que os princípios generosos e humanitários
do marxismo-leninismo tinham sido atraiçoados pelo Czar Vermelho, que os
sacrificara a um projecto de tirania pessoal. Mas ao contrário das justificações de conveniência e
das explicações manipulatórias, Estaline só podia ter existido, e ter sido
seguido e obedecido, no quadro de uma ideologia salvífica, totalitária, que
legitimava em nome dos novos deuses da Modernidade ateia (e da História, da
Ciência, do Futuro, da Utopia) o que noutros tempos e noutros quadrantes seriam
atrocidades inqualificáveis, injustificáveis e imperdoáveis.
Como
escreveu Soljenitsin
no Arquipélago de Gulag: “É a ideologia que dá ao Mal as suas tão almejadas
justificações e dá aos que praticam o mal a necessária firmeza e determinação.
É a teoria social que ajuda a fazer com que os seus actos apareçam como bons em
vez de maus”.
COMENTÁRIOS
Pedro dragone: Como dizia o sr
do charuto, a democracia é o menos mau dos sistemas. As provas são
claras: é nas democracias liberais que se registam maiores níveis de
desenvolvimento, praticamente em todos os domínios, nomeadamente económico,
social, científico, tecnológico, cultural, humano e artístico. Ao longo da sua
história, a Rússia sempre se dedicou a infernizar e a agredir a vida dos seus
vizinhos. Das suas convulsões internas, como foi a revolução bolchevique, nunca
veio nada de bom. Em pleno séc. XXI, e como mostra a inusitada invasão da
Ucrânia, continua a revelar-se uma ameaça para os vizinhos e para o mundo. Por
tudo isto, julgo que hoje resulta mais que evidente que, sendo uma permanente
ameaça para o mundo, é um pais que tem de ser colocado em estrita "cerca
sanitária" em todos os domínios; pelo menos até que Putin e todos os seus
cúmplices saiam do poder e sejam substituídos por gente mais confiável; se é
que alguma vez isso irá acontecer, dado o negro e sinistro "track
tecord" deste mal fadado país e das estepes. Mr. Lobby: E
quando carpirá JNP sobre a tragédia dos 3 milhões de mortos que as cowboyadas (perdão!... Operações Militares
Especiais...) dos EUA & Friends originaram
no Afeganistão, Iraque e outras redondezas menos citadas e ainda menos
recordadas?!... Ou também subscreve Estaline na concepção do evoluir da
dimensão numérica forçar a passagem da tragédia à estatística?!... Manuel Fernandes > Mr. Lobby: E quando é que o meu caro lóbi começa a carpir os mais
de 100 milhões de mortos da história do comunismo? E já que fala no
Afeganistão, aí também houve uma contribuiçãozinha da extinta URSS para a
contabilidade. Se é que se lembra. Ou a memória é selectiva? Maria Nunes: Mais uma excelente lição de História. Obrigada
JNP. Ping
PongYang: Putin é uma peste, mas aquele que vier a
seguir, para além de herdar os "super poderes" nucleares, virá ainda
mais fechado, mais ressentido e muito mais duro e implacável. Ninguém duvide
disso. Jose Luis
Salema: Muito obrigado por mais esta lição. Emparelhar a história vermelha com a sinistra do
rectângulo é fundamental. Ping PongYang > Jose Luis Salema: Cartão vermelho ? Futebol a uma hora destas?
Fascinante e intrigante comentário. Pode desenvolver isso um pouco melhor? Jose Luis Salema
> Ping PongYang: Mas que insistência… quando
tiver tempo faço-lhe um desenho.
advoga diabo: Olhar
para a História é bom, ignorá-la é péssimo! Oxalá o Ocidente não esqueça a Baía
dos Porcos, nem, sobretudo, persista em menorizar os efeitos altamente nefastos
da humilhação feita à Alemanha no pós I Guerra Mundial, aproveite o aparente
meter rabo entre pernas de Putin, e não continue a arriscar a sua única saída,
a fuga para a frente! Jorge
Carvalho: Excelente
artigo do factual histórico que muito ajuda a compreender a realidade actual Laurentino Cerdeira: Artigo excelente, como sempre. Obrigado. Américo Silva: As linhas da crónica são quase consensuais. Desafio o
autor a complementar numa próxima crónica, com o papel dos judeus russos e do
ocidente, nomeadamente dos USA, na revolução comunista, circunstâncias muito
menos divulgadas e conhecidas. Madalena Sa: Bom artigo jose Afonso: Na minha opinião ao povo russo a história não pesa. Eles adoram-na, gostam da repressão, de serem deportados
, de serem espezinhados. A história da rússia , não é uma historia de
nacionalismo é sim uma adoração do imperialismo. A Rússia esmaga 90 povos
diferentes dentro das suas fronteiras. Vejam o que fizeram aos chechenos ou aos
tártaros. O povo russo tem muito a pagar e a dever à humanidade. A Ucrânia é
apenas mais uma barbárie entre muitas outras. E as origens do mal não estão no
Estaline, este é apenas mais um dos sanguinários governantes. A origem do
mal está mais perto de IVAN O Terrivel no seculo 15. E antes com os
maiores genocidas de povos, os mongóis. Tiago Ramalhais > jose Afonso: Concordo, o autor só revela mais uma vez o facciosismo
do costume, eu tb detesto comunas e socialistas mas estar sempre a bater no
ceguinho e ignorar séculos de história Russa de iguais ou piores atrocidades é
ter palas nos olhos. Ze
Portugal > jose Afonso: Os russos não têm pedalada para governar a Rússia. Entreguem
lá isso à UE. Ontem já era tarde, seus viciados em açúcar, álcool e
imperialismo. Elvis
Wayne > Tiago Ramalhais: Por mais repressivos que fossem os czares, é ingénuo se
pensa que algum deles chegou sequer perto da crueldade cega dos comunistas. bento guerra: A História não se repete e
quando acontece algo idêntico, é mais em comédia josé
maria: Jaime Nogueira
Pinto ainda não percebeu que agora o czar da Rússia chama-se Vladimir Putin, é
o chefe dos oligarcas de colarinho branco, líder de um partido de direita
liberal, o Rússia Unida, inscrito na Internacional Democrata Centrista, que só admite partidos
de direita, mormente de inspiração democrata-cristã. JNP também ainda não
percebeu que a maior semelhança de Putin é com Pinochet ? Coronavirus
corona > josé maria: Que engraçado. Alguém consegue
encontrar este discurso do Zé sobre Putin num comentário anterior a 24 de
fevereiro? Dá dó ver como se contorce e como espezinha a história e os factos
para colocar, convenientemente, Putin na prateleira dos maus.
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