Um fartote de meios silenciosos de matar,
mas não havia necessidade de esconder ou negar, perante uma guerra aberta como
a de hoje, com promessas de prolongamento e multiplicação.
Envenenamentos. A guerra silenciosa
feita pela Rússia — e que Moscovo sempre negou
O oligarca russo Abramovich poderá ter
sido envenenado. A confirmarem-se as suspeitas, esta não é a primeira vez que a
Rússia recorre ao envenenamento para eliminar os seus opositores.
OBSERVADOR, 28 mar 2022
Olhos
vermelhos, lágrimas e pele das mãos e da cara a descamar. Estes são os sintomas que o oligarca russo Roman Abramovich e dois negociadores ucranianos, que têm participado nas reuniões entre Ucrânia e
Rússia para tentar chegar a um entendimento sobre a guerra, terão apresentado. As
suspeitas são de envenenamento,
avançou o Wall Street Journal, e
o bilionário poderá ter sido envenenado no início de março, em Kiev,
durante uma das reuniões de negociação. O governo ucraniano desvalorizou, falou
em “especulação” e a agência Reuters cita uma fonte norte-americana, que indica
que o oligarca russo se terá sentido mal.
Mas as suspeitas de possível
envenenamento apontam para um responsável — a Rússia. E, a confirmar-se, esta não é a primeira vez
que Moscovo utiliza agentes tóxicos para colocar fim à vida daqueles que
considera seus inimigos. Aliás, a Rússia foi o primeiro país a
criar uma arma química: o novichok ou, em português, o recém-chegado. Esta
substância terá sido usada na tentativa de envenenamento do opositor
russo Alexei Navalny,
mas nasceu na União Soviética.
As
armas secretas russas para matar de forma silenciosa não ficam por aqui e há
ainda o efeito das dioxinas ou do polónio-210 disfarçado no
chá. E os últimos anos têm sido ricos em
exemplos sobre a forma como a Rússia actua e como utiliza armas químicas para
matar. Aliás, as
duas investigadoras que analisaram durante quatro meses a tentativa de
envenenamento de Navalny referiram que só uma
organização estatal conseguiria ter acesso ao novichok e teria “o
conhecimento necessário para manusear e desenvolver novas formas”
desta substância. Este
envenenamento “corresponde a uma tendência, observada há décadas, de
assassínios ou tentativas de assassínio contra cidadãos russos e críticos do
Governo, dentro ou fora do país”,
acrescentaram.
Se Abramovich foi vítima de uma
tentativa de envenenamento pelos russos, se foi um dano colateral de uma
tentativa de atingir os negociadores ucranianos ou se houver, sequer, uma
tentativa de envenenamento são ainda questões em aberto. Mas outros casos, de
um passado mais ou menos recente, foram lançando suspeitas fortes de que, para
a Rússia, essa é uma via válida para lidar com opositores e
críticos do regime de Moscovo.
Alexander
Litvinenko ▲ Alexander
Litvinenko esteve internado durante três semanas, em
Londres GETTY
IMAGES
Alexander Litvinenko, ex-expião do KGB,
morreu em Londres, em 2006. Adoeceu e
esteve internado durante três semanas. As análises laboratoriais feitas na
altura indicaram envenenamento por polónio-210 — o primeiro
envenenamento por radiação conhecido até agora. O antigo espião e
opositor russo trabalhava para o MI6, os serviços secretos britânicos, e
acredita-se que este tenha sido um dos motivos que levou a Rússia a
envenenar Litvinenko, que estava exilado no Reino Unido.
Esta
substância é facilmente identificada através de análises, mas é muito
difícil perceber qual o momento e local em que a pessoa teve contacto com o polónio-210.
João Braz Gonçalves, do Instituto de Investigação do Medicamento da
Universidade de Lisboa, explica que a ação deste agente tóxico não é imediata,
tendo uma ação gradual. “Existem algumas características, afeta sobretudo os
órgãos que estão a produzir células, como a medula óssea”, explica o professor
da Faculdade de Farmácia. É por isso que, nestes casos, um dos primeiros
sintomas é a queda de cabelo. Outro sintoma poderá ser visível na pele,
quando esta começa a descamar — tal como poderá ter acontecido com o oligarca
russo Abramovich. No entanto, esta avaliação só poderá ser confirmada depois de
análises laboratoriais.
O
polónio pode ser inalado ou ingerido e “basta um ou dois contactos para
afetar” os órgãos internos, continua a explicar João Braz Gonçalves. Neste
caso, pode ser usada um spray ou um conta-gotas. Voltando à morte de
Litvinenko, nunca foi apurada a forma como foi envenenado, sendo certo que
Andrei Lugovoy e Dmitry Kovtum foram mandados ao Reino Unido, pelo
Kremlin, para matar o ex-expião e o envenenamento terá ocorrido durante um
encontro entre os três homens.
Viktor Iushchenko NURPHOTO VIA
GETTY IMAGES
Além
do polónio, existem outras substâncias que podem ser entendidas como venenos
silenciosos: as
dioxinas. Aqui, está também em causa “um tipo de intoxicação em
que não conseguimos saber a causa”, indica João Braz Gonçalves, acrescentando
que quem as utiliza fica sempre protegido, porque não é possível saber
quando e onde estas substâncias foram utilizadas.
Um
dos casos em que se recorreu a dioxinas teve como alvo Viktor Iushchenko, opositor do governo ucraniano pró-Moscovo de
Viktor Ianukovich, que teve de fazer várias cirurgias ao rosto e ainda
hoje tem as marcas de uma substância que pode começar por afectar o fígado
ou mesmo o cérebro. Cansaço e falta de força nos músculos são outros dos
sintomas, explica o especialista em farmacologia.
Mais
uma vez, a Rússia afastou qualquer envolvimento no caso, mas o modus
operandi é semelhante nos vários casos já conhecidos. O caso de Viktor Iushchenko aconteceu em 2004 e terá sido envenenado durante
refeições que juntaram este candidato e vários funcionários dos serviços de
segurança ucranianos. O candidato foi internado em Viena, onde foram detectados
elevados níveis de dioxinas no organismo.
Alexei Navalny ▲ Navalny
esteve em coma induzido durante um mês YURI KOCHETKOV/EPA
Um
dos grandes opositores russos foi envenenado com o gás nervoso novichok, em 2020. Alexei Navalny esteve em coma induzido perto de
um mês e, mais uma vez, a Rússia sempre negou o seu envolvimento nesta
tentativa de homicídio. No entanto, além da ONU, já antes a Alemanha tinha
exigido explicações a Putin, alegando o seu envolvimento neste caso.
Navalny adoeceu durante um voo que ligava Tomsk a Moscovo,
tendo o avião sido obrigado a aterrar com urgência. Este russo com raízes
ucranianas juntou-se, há cerca de 20 anos, ao Partido Democrático Unido
Russo, o Yabloko, conhecido pela vincada oposição a Putin. Durante anos, organizou protestos contra o Kremlin
e denunciou corrupção no governo russo.
De
acordo com as informações avançadas pela imprensa internacional, em 2020, a
propósito do seu envenenamento, esta tentativa
de homicídio terá sido
feita através de um chá — poderá ser semelhante à de Iushchenko,
que aconteceu durante as refeições.
O
hospital de Berlim, onde Navalny estava internado, confirmou a presença de uma
substância radioativa chamada novichok. Este envenenamento aconteceu em
pleno século XXI, mas o agente tóxico foi mesmo desenvolvido no século passado,
pela ainda União Soviética, nas décadas de 70 e 80, no âmbito do projeto cujo
nome de código era “Foliant”, no Instituto de Investigação de Estado para
a Química e as Tecnologias Orgânicas.
Sergei Skripal
Tal
como Navalny, Sergei Skripal e a sua filha, Yulia Skripal, estiverem em contacto com a substância criada pela
União Soviética. E
aconteceu exatamente o mesmo: a Rússia sempre negou qualquer ligação a este
envenenamento. Skripal foi
um agente duplo russo, que enviava informações confidenciais do Kremlin aos
serviços secretos britânicos.
Aliás, este antigo espião vivia no Reino Unido desde 2010.
Na altura do envenenamento, estavam no
Reino Unido cidadãos que estariam a trabalhar para os serviços secretos
militares russos. Estes cidadãos terão chegado ao Reino Unido e deslocaram-se
até Salisbury, onde vivia Skripal. O ex-espião e a filha foram
encontrados inconscientes num banco que ficava à frente de um centro
comercial daquela cidade.
Neste
caso, a substância terá sido pulverizada na maçaneta da porta de casa de
Skripal e poderá ter sido nesta altura que o ex-espião e a filha tiveram
contacto com o novichok.
Anna Politkovskaya ▲ Jornalista
da Novaya Gazeta morreu em 2004 GETTY IMAGES
Jornalista da Novaya Gazeta, Anna
Politkovskaya foi assassinada em 2004 — altura em que o jornal de oposição ao Kremlin
atravessava um dos pontos altos do seu braço de ferro com Putin. Esta
jornalista não morreu, no entanto, vítima de envenenamento. Foi morta com
quatro tiros dentro da casa onde vivia, na capital russa.
Dois anos antes da sua morte, Anna
Politkovskaya denunciou crimes contra os direitos humanos
praticados pela Rússia na Chechénia.
Nessa altura, as ameaças passaram à acção e a jornalista foi mesmo envenenada,
enquanto viajava para Beslan, na sequência das suas investigações. Aqui, a
substância tóxica terá sido colocada no chá que Politkovskaya bebeu durante a
viagem de avião.
Vladimir Kara-Murza: A história
repete-se: Rússia recusa qualquer acusação. Vladimir Kara-Murza foi vítima
de duas tentativas de envenenamento, tendo um laboratório alemão, segundo a
Reuters, encontrado elevados níveis de cobre, zinco e mercúrio no seu corpo.
GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA
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