Tendo a verdade por lema, pode estar na
origem do fim da guerra, justificada esta, não tanto por teorias, mas pela
vaidade e ambição incomensuráveis. Oh! Se assim fosse! A luz que nasce da
discussão!... O mal é que o medo – justo, em face da loucura - se sobrepõe à
coragem de se arrostar contra a loucura.
A guerra é a origem de todas as coisas –
Parte III
No espaço público muitos ocupam-se com
a tentativa de qualificar a Rússia como regime comunista, fascista ou de
capitalismo selvagem. Mas Putin coloca-se para lá dessas classificações
políticas.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na
Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 21 mar 2022,
Em Verdade e
Política, Hannah Arendt recorda:
“Nos anos vinte, Clemenceau estava
envolvido numa conversa amistosa com um representante da República de Weimar
sobre as responsabilidades quanto ao desencadeamento da Primeira Guerra
mundial. Perguntaram a Clemenceau: “Na sua opinião, o que é que os historiadores
futuros pensarão deste problema embaraçoso e controverso?” Ele respondeu:
“Sobre isso, nada sei, mas do que estou certo é que eles não dirão que a
Bélgica invadiu a Alemanha”.”
Neste
ensaio, Arendt procura reflectir sobre as difíceis relações entre verdade e política, elementos que parecem incompatíveis: “a verdade de facto, como toda a verdade, exige
peremptoriamente o reconhecimento e recusa a discussão, enquanto a discussão
constitui a própria essência da vida política”.
A ideia de verdade ocupa um lugar
central na cultura ocidental: Arendt afirma
que somos herdeiros da procura pela verdade que se afirmou com os Gregos e
permitiu o nascimento da ciência; a modernidade afirmou-se em torno da
Verdade-com-letra-maiúscula, que substituiu os dogmas anteriores, colocando a
Razão e os cientistas no lugar de Deus e dos teólogos; e notemos como o conceito de verdade se revela
fundamental para a democracia liberal: a
discussão política fructuosa só é possível se partir de factos aceites pelas
partes – se discutirmos os próprios factos, o compromisso é posto em causa.
É
por esta última razão que o estudo dos regimes autoritários ou totalitários
compreende o estudo da propaganda como ataque à factualidade.
Como diz Arendt: “Considerada
de um ponto de vista político, a verdade tem um caráter despótico. Ela é por
isso odiada pelos tiranos, que temem, com razão, a concorrência de uma força
coerciva que não podem monopolizar.” Podemos,
então, afirmar que o cerne do iliberalismo reside aqui: no ataque à factualidade e na tentativa de fragilizar
o próprio conceito de verdade.
É este factor que Timothy
Snyder identifica
em O caminho para o fim da
liberdade, quando analisa o regime de Putin. Este livro, motivado pelos conflitos de 2013/4 na
Ucrânia, parece ter sido escrito a propósito dos nossos dias, dada a similitude
das circunstâncias. Nos
primeiros capítulos, Snyder proporciona uma incursão nas ideias
político-filosóficas que contextualizam a visão de Putin, chamando à colação
a recuperada influência de Ivan Ilyin e os contributos actuais de Alexandr
Dugin e de outros elementos do Grupo de Izborsky,
como o fundador Alexander Prokhanov.
Snyder defende que as ideias destes autores, recorrentemente
utilizadas por Putin nos seus discursos, consubstanciam um ataque à
factualidade. A conceção ocidental de facto e de verdade é entendida
como a arma do ocidente liberal para se impor ao mundo, utilizando para esse
efeito académicos, cientistas, jornalistas. E se tudo o que o
Ocidente diz é propaganda, a resposta adequada só pode ser igualmente a
propaganda, com uma utilização adequada da mentira e da incerteza. Afinal,
como disse Ilyin, “o conhecimento só dá conhecimento, mas a incerteza dá
esperança”.
Snyder entende
que as acções de Putin encontram respaldo neste princípio, que justifica,
filosoficamente, a gestão de informação que
tem sido levada a cabo pelo regime russo.
Na prática, sabemos que “[s]e os cidadãos duvidarem de tudo, não podem ver
modelos alternativos fora das fronteiras da Rússia, não podem ter discussões
sensatas sobre a reforma e não podem confiar uns nos outros para se organizarem
a fim de criar mudanças políticas.” E é por isso que a lógica de contrainformação é fundamentalmente dirigida para dentro do país: Snyder analisa a revolução de Maidan e a campanha
empreendida por Putin para convencer os seus cidadãos, simultaneamente, de que
a Ucrânia estava sob controlo nazi e que a
Rússia não estava a invadir o país vizinho. O
trabalho de Snyder tem, naturalmente, os seus méritos, mas sujeita-se a
críticas justas. Por um lado, a sua defesa de que a eleição de Donald Trump
resultou de uma decisão russa desvaloriza as razões realmente importantes que
conduziram à eleição de Trump e que são de responsabilidade norte-americana.
Por outro lado, a utilização frequente e excessiva do qualificativo “fascista”
(muito comum no mundo académico) para caracterizar todos os autores e todos os
comportamentos russos esvazia a palavra de sentido e coloca-nos no centro de um
combate em que os dois lados atiram a palavra “fascista” como arma de
arremesso. Vejamos em que sentido.
Terá
sido o realizador Nikita Mikhalkov a apresentar as ideias de Ivan Ilyin a
Putin, reabilitando o autor na Rússia no início dos anos 2000. Conhecido
como um russo branco, Ilyin é expulso do país em 1922 e morre em
Zurique em 1954. Foi atraído,
como muitos na altura, pelo movimento fascista italiano, percepcionando-o como
uma resposta adequada à revolução bolchevique. Após o final da segunda guerra, Ilyin manteve a sua admiração pelo
fascismo, defendendo uma proposta política autoritária como única forma de
governar a Rússia: só um
líder forte seria capaz de interpretar o espírito do povo russo e salvar o país
do caos a que o Ocidente o pretendia condenar. Como é notado em artigo
da Foreign Affairs, terão sido estas ideias a
seduzir Vladimir Putin:
“Ilyin defendia que a democracia é
impossível num país tão grande como a Rússia e que a única configuração de poder
possível é uma “ditadura nacional russa”. Aos seus olhos, era impossível unir a diversidade
geográfica, étnica e cultural da Rússia sem um forte poder centralizado. Não seria uma ditadura totalitária, mas uma
ditadura autoritária. Seria um estado que ensinaria a “liberdade” à sua
população, mas limitando-a por forma a que Rússia não se deparasse com
anarquia, mas com ordem. Baseado em patriotismo e com um líder poderoso no
topo, um sistema assim protegeria a Rússia de revoluções e caos.”
Encontramos
o mesmo espírito ideológico em Alexandr
Dugin, o
pensador russo mais famoso na atualidade
(com especial popularidade no Brasil), que apela para uma visão tradicionalista
e pré-moderna do mundo. Para Marlene Laruelle: “A
contribuição pessoal de Dugin para a filosofia do fascismo é a afirmação de que
a regeneração da nação russa será realizada pela total – e totalitária –
transformação do estado russo no palco internacional. O nascimento de uma
nova humanidade está, então, intimamente ligado não a uma entidade biológica e
cultural (a nação) mas a um estado, a Rússia, e a uma civilização, a Eurásia.”
O
termo Eurásia tornou-se, nos últimos anos, sinónimo de Rússia e constitui a peça central da visão geopolítica de
Putin. Nesse
sentido, e apesar das aproximações a um nacionalismo fascista, Laruelle afirma
que é mais correcto falar em imperialismo russo, uma vez que estas ideias
apelam a uma recuperação da Rússia enquanto império que se estende muito para
lá das fronteiras oficiais atuais.
Embora
reconheça as raízes de extrema-direita no pensamento de muitos autores russos actuais,
no seu livro mais recente, Is Russia Fascist?, Laruelle responde negativamente à sua própria interrogação.
No entanto, tem-se consolidado no Ocidente a ideia contrária, fortalecida,
antes, pelo apoio de Putin aos partidos e movimentos da extrema-direita no
Ocidente e, agora, pelas recorrentes comparações com Hitler.
Do
lado russo da barricada, a mesma acusação tem sido arremetida para efeitos de
propaganda interna: Putin tem
justificado a sua incursão militar na Ucrânia (quer em 2014, quer agora) com o
argumento de querer desnazificar o país vizinho (num movimento que
Snyder designa como esquizofascismo).
Laruelle recorda a segunda grande guerra para explicar a
propaganda utilizada pelo regime de Putin: “Mesmo hoje, setenta anos depois do final da guerra,
o consenso em torno da vitória da União Soviética sobre o fascismo na Europa
continua uma componente fundamental da coesão social e cultural da Rússia.” A
vitória de Estaline ainda remete, no contexto cultural russo, para um momento
grandioso do país e Putin recupera esta narrativa, apresentando o conflito na
Ucrânia como a continuação da mesma luta contra o fascismo, para garantir o
apoio da população: a sua operação militar constitui uma resposta de proteção
às Repúblicas de Donbass na continuação da luta eterna do povo russo contra os
maus da história. O objectivo da operação militar é, então, desnazificar e desmilitarizar e
não deve ser descrita como uma guerra ou invasão.
No
espaço público ocidental muitos se ocupam com a tentativa de qualificar a
Rússia como regime comunista, fascista ou de capitalismo selvagem. Mas Putin
coloca-se para lá dessas classificações políticas que parecem tão relevantes
para o ocidente: ele pretende assegurar a grandeza da Rússia, para o que
recupera símbolos do czarismo e do bolchevismo sem se comprometer com os seus
ideais. O que lhe importa é afirmar-se como o líder forte que
permitirá à Rússia cumprir o seu messianismo – a
sua missão salvífica para liderar outros países, nomeadamente os europeus, na
construção de um novo poder internacional: a Eurásia.
Professora da
Universidade da Beira Interior
GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS:
josé maria: “Mas Putin coloca-se para lá dessas classificações políticas.” : Treta. Putin é tão economicamente liberal como o Pinochet e o Rússia Unida
é um partido da direita russa, que até pediu a sua adesão à Internacional
Democrata Centrista, que só admite partidos de direita, mormente de inspiração
democrata-cristã. Paulo
Castelo: Aqui mesmo no
Observador, JN Pinto já havia escrito: "Todo este delirante folclore ideológico vem
lembrar-nos, não só que todas as guerras precisam de bons e de maus – e de maus
que sejam a própria encarnação do mal –, mas também que o centro do conflito aqui não é ideológico mas nacional e
geopolítico."
A
guerra das ideologias e a ideologia da guerra (05 Março) Não me parece
que o artigo da Patrícia Fernandes acrescente muito. Haverá uma 4ª parte? Tone da Eira: Muito interessante. Daqui
compreende-se que o dito objectivo de desnazificação da Ucrânia não é para que
a invasão de Putin seja aceite pelo Ocidente, é simplesmente para que o povo
russo tenha um reflexo pavloviano, reagindo como na segunda grande guerra
contra os alemães. Nestas análises sobre o regime de Putin acho que falta a
tentativa de explicar porque é que foi dado espaço para o nascimento de tantos
oligarcas e para que Putin, segundo se diz, tenha arrecadado uma fortuna
colossal, mais do que alguém poderá gastar em muitas gerações. E a compreensão
disso seria importante para se poder estimar melhor qual o impacto das sanções
contra os oligarcas. Parece-me que o que está subjacente a essa parte das
sanções é que os oligarcas não gostarão de perder dinheiro e/ou "estilo de
vida" no ocidente e que para evitar isso talvez se sintam motivados a
afastar Putin. Mas se os russos seguem uma lógica própria (a questão é qual)
será que essa parte das sanções fará algum efeito? Como era vista a extrema
riqueza no passado da Rússia? Geiger
Dieter: Não é possível qualificar um coronel do KGB senão como comunista. É por isso que todos os
partidos comunistas o apoiam e ele os apoia. João Afonso: Um ensaio brilhante. É deveras
reconfortante ler artigos tão doutos, apropriados e cristalinos sobre a guerra
em curso na Ucrânia. Gostei muito, obrigado. pedro dragone: Putin é um bandido(*), ponto. Tentar intelectualiza-lo é pura idiotice.
Pior que isso: é legitimá-lo! O seu comportamento e a sua estratégia são mais
questões do foro psicológico e psiquiátrico que matérias de natureza política
ou filosófica. (*) um bandido que tem de acabar pendurado na corda, de cabeça
para baixo, como aconteceu a Mussolini. Roberto Nascimento V
> pedro dragone: Outro troll russo apoiante do
putin. Se tanto gostas dele vai para a rússia. Como és capaz de defender o
putin e o seu regime? Por que raio apoias a invasão da ucrania? És um comuna
agente do kgb. Tiago
Bana Franco: Belíssima análise! Sobre o facto de Duguin ser
conhecido aqui no Brasil, isso se deve ao debate por ele travado com o prof.
Olavo de Carvalho! Alvaredo: Chochice completa. Vontade gratuita de dar à língua
sem ter nada de substancial para escrever. Claramente não compreende nada do
mundo em que vivemos. Mario
Guimaraes: Filosofia barata. Putin é um criminoso. Não afirmar
isto e depois filosofar é do pior. Nuno
Chambel Lima: Muito obrigado pelo seu artigo. A recuperação do
ensaio de Arendt não podia ser mais pertinente. Estando já de sobreaviso, pelas
críticas que tece ao livro de Snyder, não deixarei no entanto de o comprar, de
modo a compreender a situação presente. bento guerra: Lá tinha de vir a Arendt. A
Rússia, como a China, é um regime capitalista de Estado, com uma babugem de
negociantes, que não deixam de obedecer ao poder autoritário. Aliá, no caso dos
chineses, é a verdadeira vingança da "classe operária"( risos) que, através
do Partido Comunista manda no país e controla o que se passa na vida global. Putin
é um nacionalista patriótico, um modelo que está em desuso Paulo Silva: Muito bem, cara Patrícia
Fernandes. As classificações políticas de esquerda e direita não são as mais
adequadas para definir uma Nação; até porque estas hoje em dia
apresentam-se-nos cada vez com menos objectividade. Tem de se olhar para a
natureza russa, e dos russos, através da sua História. Digo-o há vários anos,
(percepção dos tempos da ex-URSS quando esta armava os movimentos de libertação
na Ásia e na África, para minar as talassocracias do Ocidente), que a Rússia
não é um país, é um Império. Sempre foi, desde o momento em que o
Grande-Príncipe de Vladimir e Moscovo, Ivan III, fez desaparecer
definitivamente o jugo mongol das terras russas, e reivindicou o papel de
patrono da Ortodoxia Oriental. O domínio da «Terceira Roma» nasceu assim no
refluxo do Império Mongol e das Hordas, expandindo-se inicialmente para o
Oriente e depois para Ocidente e Sul. Um Estado multinacional de dimensão
transcontinental. Neste caso uma telurocracia estendida por três continentes.
Em 1914 o Império dos Czares encontra-se numa encruzilhada que o vai pôr à
prova, tal como as outras telurocracias: Império Otomano, Império
Austro-Húngaro e Alemanha Imperial. Versailles atesta o óbito de todas, à
excepção da Rússia. Por puro tacticismo político Lenine defendera a doutrina da
“autodeterminação das nações”, e para salvar Outubro vai negociar a rendição
com a Alemanha cedendo importantes territórios. Mas apesar da derrota alemã,
esses mantêm-se independentes. Lenine arrepende-se, em particular no caso da
Ucrânia que via como a cabeça da Rússia. Mas a sua astúcia e habilidade
políticas revelam-se na criação da URSS em 1922, projecto ao qual Estaline dará
continuidade. No Verão de 1941, enquanto Estaline negoceia apoios dos
americanos, o ex-embaixador americano, William Bullitt, avisa Roosevelt que os
soviéticos são imperialistas por natureza... Viu-se no expansionismo soviético
a seguir à II GG. Há uma questão de fundo que está sempre presente na
consciência das pessoas informadas, mas que estranhamente é pouco falada e
desenvolvida. Talvez por ser o que é... Putin foi um oficial do KGB. O ataque à
factualidade e à verdade de que a articulista fala é uma das áreas mais
importantes dos serviços de inteligência e contra-informação. Yuri Bezmenov
disse que apenas 15 % das actividades do KGB se dedicavam à espionagem, os
restantes 85% eram “subversão ideológica” ou “medidas activas”. O objectivo é a
mudança da percepção da realidade do inimigo, e Putin é um camaleão. Américo Silva: Gosto muito de a ler
concordando consigo ou não. A verdade é relativa. Putin faz ao regime ucraniano
o mesmo que este faz aos russos ucranianos, e relativamente à propriedade
privada libertadora, sempre lhe vou dizendo com carinho que não há melhor
propriedade privada do que possuir escravos, até o Camões tinha um. António Vieira:
Excelente artigo.
A filosofia de Dugin é perfeitamente assustadora e demonstra uma total inversão
de conceitos básicos de democracia, humanismo e respeito pela liberdade
individual. José
Silva > António Vieira: Já pensou que talvez esses
"conceitos básicos" não sejam os conceitos básicos que estruturam a
obra do Dugin? Se a ler, depressa verificará que ele é claro e categórico
quanto à necessidade de recusar esses valores como eixos da sua quarta teoria
política.
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