terça-feira, 22 de março de 2022

Mas a discussão política


Tendo a verdade por lema, pode estar na origem do fim da guerra, justificada esta, não tanto por teorias, mas pela vaidade e ambição incomensuráveis. Oh! Se assim fosse! A luz que nasce da discussão!... O mal é que o medo – justo, em face da loucura - se sobrepõe à coragem de se arrostar contra a loucura.

A guerra é a origem de todas as coisas – Parte III

No espaço público muitos ocupam-se com a tentativa de qualificar a Rússia como regime comunista, fascista ou de capitalismo selvagem. Mas Putin coloca-se para lá dessas classificações políticas.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 21 mar 2022,

Em Verdade e Política, Hannah Arendt recorda:

 Nos anos vinte, Clemenceau estava envolvido numa conversa amistosa com um representante da República de Weimar sobre as responsabilidades quanto ao desencadeamento da Primeira Guerra mundial. Perguntaram a Clemenceau: “Na sua opinião, o que é que os historiadores futuros pensarão deste problema embaraçoso e controverso?” Ele respondeu: “Sobre isso, nada sei, mas do que estou certo é que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha”.”

Neste ensaio, Arendt procura reflectir sobre as difíceis relações entre verdade e política, elementos que parecem incompatíveis: “a verdade de facto, como toda a verdade, exige peremptoriamente o reconhecimento e recusa a discussão, enquanto a discussão constitui a própria essência da vida política”.

A ideia de verdade ocupa um lugar central na cultura ocidental: Arendt afirma que somos herdeiros da procura pela verdade que se afirmou com os Gregos e permitiu o nascimento da ciência; a modernidade afirmou-se em torno da Verdade-com-letra-maiúscula, que substituiu os dogmas anteriores, colocando a Razão e os cientistas no lugar de Deus e dos teólogos; e notemos como o conceito de verdade se revela fundamental para a democracia liberal: a discussão política fructuosa só é possível se partir de factos aceites pelas partes – se discutirmos os próprios factos, o compromisso é posto em causa.

É por esta última razão que o estudo dos regimes autoritários ou totalitários compreende o estudo da propaganda como ataque à factualidade. Como diz Arendt: “Considerada de um ponto de vista político, a verdade tem um caráter despótico. Ela é por isso odiada pelos tiranos, que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não podem monopolizar.” Podemos, então, afirmar que o cerne do iliberalismo reside aqui: no ataque à factualidade e na tentativa de fragilizar o próprio conceito de verdade. É este factor que Timothy Snyder identifica em O caminho para o fim da liberdade, quando analisa o regime de Putin. Este livro, motivado pelos conflitos de 2013/4 na Ucrânia, parece ter sido escrito a propósito dos nossos dias, dada a similitude das circunstâncias. Nos primeiros capítulos, Snyder proporciona uma incursão nas ideias político-filosóficas que contextualizam a visão de Putin, chamando à colação a recuperada influência de Ivan Ilyin e os contributos actuais de Alexandr Dugin e de outros elementos do Grupo de Izborsky, como o fundador Alexander Prokhanov.

Snyder defende que as ideias destes autores, recorrentemente utilizadas por Putin nos seus discursos, consubstanciam um ataque à factualidade. A conceção ocidental de facto e de verdade é entendida como a arma do ocidente liberal para se impor ao mundo, utilizando para esse efeito académicos, cientistas, jornalistas. E se tudo o que o Ocidente diz é propaganda, a resposta adequada só pode ser igualmente a propaganda, com uma utilização adequada da mentira e da incerteza. Afinal, como disse Ilyin,o conhecimento só dá conhecimento, mas a incerteza dá esperança”.

Snyder entende que as acções de Putin encontram respaldo neste princípio, que justifica, filosoficamente, a gestão de informação que tem sido levada a cabo pelo regime russo. Na prática, sabemos que “[s]e os cidadãos duvidarem de tudo, não podem ver modelos alternativos fora das fronteiras da Rússia, não podem ter discussões sensatas sobre a reforma e não podem confiar uns nos outros para se organizarem a fim de criar mudanças políticas.” E é por isso que a lógica de contrainformação é fundamentalmente dirigida para dentro do país: Snyder analisa a revolução de Maidan e a campanha empreendida por Putin para convencer os seus cidadãos, simultaneamente, de que a Ucrânia estava sob controlo nazi e que a Rússia não estava a invadir o país vizinho. O trabalho de Snyder tem, naturalmente, os seus méritos, mas sujeita-se a críticas justas. Por um lado, a sua defesa de que a eleição de Donald Trump resultou de uma decisão russa desvaloriza as razões realmente importantes que conduziram à eleição de Trump e que são de responsabilidade norte-americana. Por outro lado, a utilização frequente e excessiva do qualificativo “fascista” (muito comum no mundo académico) para caracterizar todos os autores e todos os comportamentos russos esvazia a palavra de sentido e coloca-nos no centro de um combate em que os dois lados atiram a palavra “fascista” como arma de arremesso. Vejamos em que sentido.

Terá sido o realizador Nikita Mikhalkov a apresentar as ideias de Ivan Ilyin a Putin, reabilitando o autor na Rússia no início dos anos 2000. Conhecido como um russo branco, Ilyin é expulso do país em 1922 e morre em Zurique em 1954. Foi atraído, como muitos na altura, pelo movimento fascista italiano, percepcionando-o como uma resposta adequada à revolução bolchevique. Após o final da segunda guerra, Ilyin manteve a sua admiração pelo fascismo, defendendo uma proposta política autoritária como única forma de governar a Rússia: só um líder forte seria capaz de interpretar o espírito do povo russo e salvar o país do caos a que o Ocidente o pretendia condenar. Como é notado em artigo da Foreign Affairs, terão sido estas ideias a seduzir Vladimir Putin:

“Ilyin defendia que a democracia é impossível num país tão grande como a Rússia e que a única configuração de poder possível é uma “ditadura nacional russa”. Aos seus olhos, era impossível unir a diversidade geográfica, étnica e cultural da Rússia sem um forte poder centralizado. Não seria uma ditadura totalitária, mas uma ditadura autoritária. Seria um estado que ensinaria a “liberdade” à sua população, mas limitando-a por forma a que Rússia não se deparasse com anarquia, mas com ordem. Baseado em patriotismo e com um líder poderoso no topo, um sistema assim protegeria a Rússia de revoluções e caos.”

Encontramos o mesmo espírito ideológico em Alexandr Dugin, o pensador russo mais famoso na atualidade (com especial popularidade no Brasil), que apela para uma visão tradicionalista e pré-moderna do mundo. Para Marlene Laruelle: “A contribuição pessoal de Dugin para a filosofia do fascismo é a afirmação de que a regeneração da nação russa será realizada pela total – e totalitária – transformação do estado russo no palco internacional. O nascimento de uma nova humanidade está, então, intimamente ligado não a uma entidade biológica e cultural (a nação) mas a um estado, a Rússia, e a uma civilização, a Eurásia.”

O termo Eurásia tornou-se, nos últimos anos, sinónimo de Rússia e constitui a peça central da visão geopolítica de Putin. Nesse sentido, e apesar das aproximações a um nacionalismo fascista, Laruelle afirma que é mais correcto falar em imperialismo russo, uma vez que estas ideias apelam a uma recuperação da Rússia enquanto império que se estende muito para lá das fronteiras oficiais atuais.

Embora reconheça as raízes de extrema-direita no pensamento de muitos autores russos actuais, no seu livro mais recente, Is Russia Fascist?, Laruelle responde negativamente à sua própria interrogação. No entanto, tem-se consolidado no Ocidente a ideia contrária, fortalecida, antes, pelo apoio de Putin aos partidos e movimentos da extrema-direita no Ocidente e, agora, pelas recorrentes comparações com Hitler.

Do lado russo da barricada, a mesma acusação tem sido arremetida para efeitos de propaganda interna: Putin tem justificado a sua incursão militar na Ucrânia (quer em 2014, quer agora) com o argumento de querer desnazificar o país vizinho (num movimento que Snyder designa como esquizofascismo).

Laruelle recorda a segunda grande guerra para explicar a propaganda utilizada pelo regime de Putin: “Mesmo hoje, setenta anos depois do final da guerra, o consenso em torno da vitória da União Soviética sobre o fascismo na Europa continua uma componente fundamental da coesão social e cultural da Rússia.” A vitória de Estaline ainda remete, no contexto cultural russo, para um momento grandioso do país e Putin recupera esta narrativa, apresentando o conflito na Ucrânia como a continuação da mesma luta contra o fascismo, para garantir o apoio da população: a sua operação militar constitui uma resposta de proteção às Repúblicas de Donbass na continuação da luta eterna do povo russo contra os maus da históriaO objectivo da operação militar é, então, desnazificar e desmilitarizar e não deve ser descrita como uma guerra ou invasão.

No espaço público ocidental muitos se ocupam com a tentativa de qualificar a Rússia como regime comunista, fascista ou de capitalismo selvagem. Mas Putin coloca-se para lá dessas classificações políticas que parecem tão relevantes para o ocidente: ele pretende assegurar a grandeza da Rússia, para o que recupera símbolos do czarismo e do bolchevismo sem se comprometer com os seus ideais. O que lhe importa é afirmar-se como o líder forte que permitirá à Rússia cumprir o seu messianismo – a sua missão salvífica para liderar outros países, nomeadamente os europeus, na construção de um novo poder internacional: a Eurásia.

Professora da Universidade da Beira Interior

GUERRA NA UCRÂNIA   UCRÂNIA   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:

josé maria: “Mas Putin coloca-se para lá dessas classificações políticas.” : Treta. Putin é tão economicamente liberal como o Pinochet e o Rússia Unida é um partido da direita russa, que até pediu a sua adesão à Internacional Democrata Centrista, que só admite partidos de direita, mormente de inspiração democrata-cristã. Paulo Castelo: Aqui mesmo no Observador, JN Pinto já havia escrito: "Todo este delirante folclore ideológico vem lembrar-nos, não só que todas as guerras precisam de bons e de maus – e de maus que sejam a própria encarnação do mal –, mas também que o centro do conflito aqui não é ideológico mas nacional e geopolítico." 

A guerra das ideologias e a ideologia da guerra (05 Março) Não me parece que o artigo da Patrícia Fernandes acrescente muito. Haverá uma 4ª parte?            Tone da Eira: Muito interessante. Daqui compreende-se que o dito objectivo de desnazificação da Ucrânia não é para que a invasão de Putin seja aceite pelo Ocidente, é simplesmente para que o povo russo tenha um reflexo pavloviano, reagindo como na segunda grande guerra contra os alemães. Nestas análises sobre o regime de Putin acho que falta a tentativa de explicar porque é que foi dado espaço para o nascimento de tantos oligarcas e para que Putin, segundo se diz, tenha arrecadado uma fortuna colossal, mais do que alguém poderá gastar em muitas gerações. E a compreensão disso seria importante para se poder estimar melhor qual o impacto das sanções contra os oligarcas. Parece-me que o que está subjacente a essa parte das sanções é que os oligarcas não gostarão de perder dinheiro e/ou "estilo de vida" no ocidente e que para evitar isso talvez se sintam motivados a afastar Putin. Mas se os russos seguem uma lógica própria (a questão é qual) será que essa parte das sanções fará algum efeito? Como era vista a extrema riqueza no passado da Rússia?          Geiger Dieter: Não é possível qualificar um coronel do KGB senão como comunista. É por isso que todos os partidos comunistas o apoiam e ele os apoia.         João Afonso: Um ensaio brilhante. É deveras reconfortante ler artigos tão doutos, apropriados e cristalinos sobre a guerra em curso na Ucrânia. Gostei muito, obrigado.             pedro dragone: Putin é um bandido(*),  ponto. Tentar intelectualiza-lo é pura idiotice. Pior que isso: é legitimá-lo! O seu comportamento e a sua estratégia são mais questões do foro psicológico e psiquiátrico que matérias de natureza política ou filosófica. (*) um bandido que tem de acabar pendurado na corda, de cabeça para baixo, como aconteceu a Mussolini.           Roberto Nascimento V > pedro dragone: Outro troll russo apoiante do putin. Se tanto gostas dele vai para a rússia. Como és capaz de defender o putin e o seu regime? Por que raio apoias a invasão da ucrania? És um comuna agente do kgb.           Tiago Bana Franco: Belíssima análise! Sobre o facto de Duguin ser conhecido aqui no Brasil, isso se deve ao debate por ele travado com o prof. Olavo de Carvalho!           Alvaredo: Chochice completa. Vontade gratuita de dar à língua sem ter nada de substancial para escrever. Claramente não compreende nada do mundo em que vivemos.   Mario Guimaraes: Filosofia barata. Putin é um criminoso. Não afirmar isto e depois filosofar é do pior.    Nuno Chambel Lima: Muito obrigado pelo seu artigo. A recuperação do ensaio de Arendt não podia ser mais pertinente. Estando já de sobreaviso, pelas críticas que tece ao livro de Snyder, não deixarei no entanto de o comprar, de modo a compreender a situação presente.            bento guerra: Lá tinha de vir a Arendt. A Rússia, como a China, é um regime capitalista de Estado, com uma babugem de negociantes, que não deixam de obedecer ao poder autoritário. Aliá, no caso dos chineses, é a verdadeira vingança da "classe operária"( risos) que, através do Partido Comunista manda no país e controla o que se passa na vida global. Putin é um nacionalista patriótico, um modelo que está em desuso             Paulo Silva: Muito bem, cara Patrícia Fernandes. As classificações políticas de esquerda e direita não são as mais adequadas para definir uma Nação; até porque estas hoje em dia apresentam-se-nos cada vez com menos objectividade. Tem de se olhar para a natureza russa, e dos russos, através da sua História. Digo-o há vários anos, (percepção dos tempos da ex-URSS quando esta armava os movimentos de libertação na Ásia e na África, para minar as talassocracias do Ocidente), que a Rússia não é um país, é um Império. Sempre foi, desde o momento em que o Grande-Príncipe de Vladimir e Moscovo, Ivan III, fez desaparecer definitivamente o jugo mongol das terras russas, e reivindicou o papel de patrono da Ortodoxia Oriental. O domínio da «Terceira Roma» nasceu assim no refluxo do Império Mongol e das Hordas, expandindo-se inicialmente para o Oriente e depois para Ocidente e Sul. Um Estado multinacional de dimensão transcontinental. Neste caso uma telurocracia estendida por três continentes. Em 1914 o Império dos Czares encontra-se numa encruzilhada que o vai pôr à prova, tal como as outras telurocracias: Império Otomano, Império Austro-Húngaro e Alemanha Imperial. Versailles atesta o óbito de todas, à excepção da Rússia. Por puro tacticismo político Lenine defendera a doutrina da “autodeterminação das nações”, e para salvar Outubro vai negociar a rendição com a Alemanha cedendo importantes territórios. Mas apesar da derrota alemã, esses mantêm-se independentes. Lenine arrepende-se, em particular no caso da Ucrânia que via como a cabeça da Rússia. Mas a sua astúcia e habilidade políticas revelam-se na criação da URSS em 1922, projecto ao qual Estaline dará continuidade. No Verão de 1941, enquanto Estaline negoceia apoios dos americanos, o ex-embaixador americano, William Bullitt, avisa Roosevelt que os soviéticos são imperialistas por natureza... Viu-se no expansionismo soviético a seguir à II GG. Há uma questão de fundo que está sempre presente na consciência das pessoas informadas, mas que estranhamente é pouco falada e desenvolvida. Talvez por ser o que é... Putin foi um oficial do KGB. O ataque à factualidade e à verdade de que a articulista fala é uma das áreas mais importantes dos serviços de inteligência e contra-informação. Yuri Bezmenov disse que apenas 15 % das actividades do KGB se dedicavam à espionagem, os restantes 85% eram “subversão ideológica” ou “medidas activas”. O objectivo é a mudança da percepção da realidade do inimigo, e Putin é um camaleão.          Américo Silva: Gosto muito de a ler concordando consigo ou não. A verdade é relativa. Putin faz ao regime ucraniano o mesmo que este faz aos russos ucranianos, e relativamente à propriedade privada libertadora, sempre lhe vou dizendo com carinho que não há melhor propriedade privada do que possuir escravos, até o Camões tinha um.            António Vieira: Excelente artigo. A filosofia de Dugin é perfeitamente assustadora e demonstra uma total inversão de conceitos básicos de democracia, humanismo e respeito pela liberdade individual.            José Silva > António Vieira: Já pensou que talvez esses "conceitos básicos" não sejam os conceitos básicos que estruturam a obra do Dugin? Se a ler, depressa verificará que ele é claro e categórico quanto à necessidade de recusar esses valores como eixos da sua quarta teoria política.

 

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