Em apoio à página de António Barreto precedente deste texto, na exemplificação dramática de uma
dessas cidades mortas, embora não por idênticos motivos de natureza viral,
condenando-as à solidão, lembrei-me da referência apaixonada de Herculano à
nossa Lisboa - Lisboa, cidade de mármore e de granito,
rainha do oceano, tu és a mais formosa entre as cidades do mundo.- e
procurei na Internet o excerto da obra a que ela pertence – “Opúsculos”- que a curiosidade me fez ler e corrigir
na sua ortografia original, embora nem tanto na sua estrutura. A verdade é que nunca lera o texto integral e
gostei de o copiar para o meu blog, conquanto sinta o exagero emotivo passadista
do tom declamatório elegíaco e apocalíptico, que levou Herculano a exaltá-la na sua grandeza antiga,
para a depreciar na sua miséria, contemporânea do historiador, que vivera o
descalabro das lutas liberais. De toda a maneira, gostei de ler, não pela sua identificação
com o ponto de vista de António
Barreto, este apenas debruçado sobre as consequências “desertificatórias” de
um maldito vírus, ao contrário de Herculano, que se
refere a outros desertos menos formais e mais espirituais, que, de resto, não
deixam de subsistir no nosso tempo, algures…
Da INTERNET:
Opúsculos de Alexandre Herculano
Lisboa,
cidade de mármore e de granito, rainha do oceano, tu és a mais formosa entre as
cidades do mundo. A brisa que
varre os teus outeiros é pura como o céu azul, que se espelha no teu amplo
porto, semelhante a grande mar. Trinta séculos têm surgido depois que tu
surgiste, e sorvendo milhares de existências caíram todos no abismo do passado.
E tu os hás visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a vida te
estava travada com a vida do universo. Escondendo nas trevas dos tempos
remotíssimos a tua origem, dizias às demais cidades da Europa:--Sou vossa irmã
mais velha. Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a África te mandavam o
ouro das suas veias, os estranhos vinham assentar-se-te ao pé dos muros e abastecer-se
com as migalhas caídas das mesas dos teus banquetes. Cada um dos teus velhos
palácios abrigou já os últimos dias de um grande capitão; em cada pedra dos
teus templos há uma recordação das virtudes passadas; em muitas lousas de
sepulturas nomes que não morrerão. Nas eras de tua glória, os monarcas dos
últimos confins da terra se haviam por honrados com chamar irmãos a teus
filhos; e filhos teus davam e tiravam coroas. As tuas armadas aravam as
campinas do oceano, e neste nem uma vaga deixou de gemer debaixo das naus do
Tejo. Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado ressoavam ao mesmo tempo
nos bosques da Europa e da África, do Oriente e do Novo-Mundo: os lenhos do
Indostão cosidos com os da Nigrícia flutuavam por mares distantes, e sobre eles
se hasteava um sinal de terror para o orbe: era o pendão das Quinas.
Opúsculos
por Alexandre Herculano - Tomo I
by Alexandre Herculano
54 Então, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte,
mais do que Roma ou Cartago; mas o império e a força vinham-te das virtudes de
teus filhos, dos homens a quem sem pudor chamamos nossos avós. Vivificavam-te o
seio um sem número de bem-nascidos espíritos, e eras seminário feracíssimo de
corações generosos. Porém, que te resta hoje do antigo esplendor, da glória de
tantos seculos? Um eco do passado nas páginas da historia, o sol puro da tua
primavera, os restos dos paços e templos que os terramotos te não consumiram, e
o grande vulto das águas do amplo ádito do Tejo. II Mas este eco da historia,
que devia ser para ti como um grito de remorso, não há ouvidos que o escutem, e
soa em vão e morre no meio do vozear descomposto da plebe: Mas este céu puro
que te cobre, e que testemunhará no grande dia as virtudes de nossos maiores, testificará
também perante o Senhor a tua corrupção actual: Mas este porto, que a liberdade
regrada de três anos começava a povoar de entenas, torná-lo-á o reinado da
licença tão ermo como os extremos dos mares gelados: Mas pelos palácios de mármore
já não retumba a voz dos heróis, e os templos estão desertos: só por lupanares
e praças sussurra o clamor dos populares, ou entoando os cânticos das orgias,
ou tumultuando em assuadas e preparando o dia em que satisfaçam a sede do roubo
e do assassínio. Viúva prostituída, os vícios corromperam-te a seiva da vida, e
a gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos
louçãos, mas onde a morte se encarnou há muito.
Opúsculos
por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
55 Formosa
ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulcro do evangelho, alvo e polido no
exterior, mas cheio de podridão e negrura. Nova Jerusalém, a dextra do Senhor
vergou pesando-te os crimes e, como a antiga, saberás se por ventura são ásperas
as angústias que o Omnipotente manda aos povos no dia da sua justiça. Rápida é
a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses atalhos levam, de
despenhadeiro em despenhadeiro, ao abismo da perdição. Breve empalidece o
outono as folhas das árvores; breve as desprende dos troncos; breve as espalha
e some, arrebatando-as sobre as asas dos ventos. Esse curto prazo bastou ao
povo para esgotar os tesouros da misericórdia divina, que os erros e culpas de
séculos não haviam podido empobrecer. Os feitos portentosos de doís anos de
combates civis foram amaldiçoados pelo povo em uma noite de sedição, e a árvore
da liberdade cerceada junto da terra. E as esperanças de salvação e de
felicidade passaram como o sonho matutino que se desvanece ao altear do sol.
III Como a antiga Jerusalém se afundou em mar de crimes, assim a moderna
Sião, a grande cidade do ocidente, se mergulhou em torrente de perversidades. E
a maldição celeste que sumiu aquela d'entre as nações pesará ainda mais
rijamente sobre a desgraçada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e de desenfreamento.
Á roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavaleiros de Babilonia, e as tendas
de Nabucodonosor estavam assentadas ao pé da torrente de Cedron.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo
I by Alexandre Herculano
56 E as catapultas arrojavam pedras sobre os
eirados do templo, no cimo do Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacilavam
até os fundamentos, e o granizo das setas sibilava, passando por entre as mal defendidas
ameias. E ao longe cintilavam os ferros das lanças e o bronze dos elmos e dos
cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavalos. Surgira o dia extremo para a cidade
das maravilhas, para a réproba Solima. E dali a um ano, sobre as ruínas dela
estava assentado um velho. Era o profeta de Anathot, que, em cima da ossada dos
palácios e do templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nação.
IV Também
o dia em que, entre os vestígios da cidade maldita, algum vate levante um grito
de agonia, um grito de desesperança, não tardará a chegar. Porque Deus
ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este país o anjo do extermínio. Mais cruel será o teu castigo, oh terra do meu berço,
do que o de Jerusalém: porque ela pereceu a mãos de estranhos, e seus filhos
morreram defendendo os lares paternos. Mas a ti é um matricídio popular, é a
febre ardente das sedições que te vai arremessar ao sepulcro. Os teus muros
converter-se-ão em circo: pelas praças e ruas pelejar-se-ão pelejas como de
gladiadores, combates como de mastins e feras. Porque o temor de Deus saiu do
coração do povo, e entraram nele todas as raivas do inferno. Áspero é para o
que morre assassinado não poder clamar ao céu justiça contra o seu matador.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo
I by Alexandre Herculano
57 E
neste mau caso cairá o povo; porque serão as suas próprias mãos que lhe
rasgarão as entranhas: será ele quem lavre a sua sentença de morte. Ele se
amaldiçoará a si, e o remorso e a desesperação de toda a humana piedade lhe
dobrarão as agonias do passamento.
V Os
que pelejaram contra os tiranos purpurados mal sabiam que lhes quebravam o
ceptro de ferro, para meter a espada da assolação na dextra de tiranos cobertos
de vermes e farrapos. Mal pensavam que uma raça corrupta não conhece outra
estrada senão a da servidão ou a da licenciosidade. A nação, esmagada pelos
reis, tinha muito tempo gemido debaixo da própria miséria. Mas surgiu um príncipe
que deu a liberdade ao povo e que veio morrer para lha restituir, quando ele
vilmente a deixou baquear por terra. E estes homens, que pouco antes haviam
dobrado o joelho perante o despotismo, mostraram-se tão orgulhosos e
insolentes, quanto, até então haviam sido abjectos e tímidos. E numa orgia
popular fizeram ressoar gritos insultuosos nos ouvidos daquele que duas vezes
os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse momento longe estavam os seus
soldados, e muitos deles arquejavam moribundos no campo onde se pelejou a última
batalha da pátria. Em verdade vos digo que tal crime é dos que Deus não perdoa;
porque a ingratidão é a mais horrenda de todas as perversões humanas. Eles
apressaram o repouso do túmulo para o salvador da república: mas o nome de
parricidas será o que sobre a jazida lhes escreverá a história.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo
I by Alexandre Herculano
58 VI O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta
fonte da poesia e de acções generosas, converteu-se para mim num pesadelo
cansado. Digno era o povo de compaixão quando estava em ferros, e por bom feito
se tinha entre as almas puras o afrontar-se o homem com a morte pela salvação
dos seus semelhantes: Porque, subindo ao patíbulo ou expirando entre o estrondo
das armas, a voz da consciência assegurava ao que fenecia as lágrimas e as bênçãos
dos vindouros, e que algum dia ciprestes se plantariam na terra que lhe bebesse
o sangue. Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a
consciência mentia. A corrupção estava no âmago das existências. A árvore
da vida social carcomiu-a a servidão. Cumpria que as tempestades políticas a
derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os troncos. E
estes vermes são as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente trabalham
na grande obra da pública destruição. Almas virtuosas, que nos países ainda
escravos preparais no silêncio a queda dos tiranos, não apresseis o grande
dia da emancipação popular. Porque nesse mesmo momento sereis amaldiçoados
pelos que salvastes, e cobertos de escárnios e de injúrias, sabereis que a
plebe lança em poucos meses mais crimes na balança da eterna justiça do que os
tiranos aí hão lançado por séculos.
VII Opúsculos por Alexandre Herculano -
Tomo I by Alexandre Herculano
59
Certo dia, o conde de Avranches entrava nos paços de Afonso quinto, e os
cortesãos caluniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da república.
E o conde disse-lhes:--mentis, como desleais; e aos melhores três de vós prová-lo-ei
á lança e á espada: inocente e justo é o mui nobre filho de meu senhor e rei,
Dom João de excelente memória. E ninguém ousou responder ao velho cavaleiro da
Garrotéa; porque bem sabiam que a sua consciência era pura e o seu montante
pesado. Daí a alguns dias ele provou o dito. Na batalha de Alfarrobeira, sobre
um montão de cadáveres, caiu defendendo a inocência e bom nome do seu
desventurado amigo. Onde estavam os do valente capitão da nova Diu, do rei
soldado da pátria, quando o vulgacho no meio da praça pública, assentado no seu
lodaçal mandava derrocar as leis, as recordações e a glória d'uma nação
inteira? Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memória do grande homem
era amaldiçoada na condenação da sua obra; quando sobre as suas cinzas a
dissolução cuspia escárnios; quando a liberdade morria ás mãos da licença
popular? Quem se ergueu, seguro em boa consciência, para lançar a luva em
defesa da justiça, e dizer ás turbas:--sois desleais e mentis? Ninguém! Todas
as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal já não há um cavaleiro. Na batalha
de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a sua espada foi sepultada com
ele.
VIII Quando
os reis se assentavam em tronos de ferro; quando a lisonja os rodeava de
prestígios, e o terror estava assentado às portas dos seus palácios, era belo e
generoso afrontar-se o homem com a tirania. Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo
I by Alexandre Herculano
60 menoscabar
as dores dos suplícios. Então era ousado o profeta, quando, nos paços de
Baltasar, lia nos muros, escritas pela mão de Deus, palavras de condenação.
Eram sublimes os mártires, quando perante os césares davam testemunho do evangelho,
e escarnecendo dos aparelhos de morte, se deitavam tranquilamente sobre a cruz
da agonia. Era belo ouvir o poeta de Florença trovejar contra a prostituta
Roma, denunciar ao mundo a corrupção e os crimes dos pontífices do Tibre, e
comer no desterro um pão eivado de lágrimas e esmolado por estranhos. Era belo,
quando nós, assentados sobre os gelos do Norte, saudávamos do desterro a terra
que nos deu o berço, e vínhamos, fracos pelo número, mas fortes de coração,
lançar as nossas baionetas na balança da Providência, onde a tirania tinha
também lançado as suas. Tudo isto era belo e generoso; porque então os
pequenos gemiam opressos debaixo dos pés dos grandes, e ao homem justo incumbia
fazer ressoar na terra a voz da eterna justiça, o grito da liberdade. Mas
hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameaça tragar a virtude, a
liberdade, a justiça e todas as recordações santas do passado, para o homem de
boa consciência sê-lo-á também, o morrer. Sê-lo-á o bradar no meio das
turbas, e derramar sobre elas a condenação, que Deus confiou em todos os séculos
aos lábios do inocente e virtuoso. Sê-lo-á chegar aos tribunos populares,
apontar-lhes para o céu, e apresentar a cabeça ao cutelo dos lictores.
IX Opúsculos por Alexandre Herculano -
Tomo I by Alexandre Herculano
61 Povo,
hoje és tu quem impera, e absoluto é o teu poder; porque te dizes única fonte
dele. Toma, pois,
em tuas mãos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais no teu trono,
amassado com sangue e pó. Vem assentar-te, e julga-nos, a nós, que tu maldizes,
e aos tribunos, aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de bênçãos.
Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justiça, a plebe ainda
será salva. Desça o terror da tua vingança sobre o coração do que te houver
ofendido; volvam-se no pó as frontes onde tu achares estampado o ferrete do
crime. Recorre às acções da nossa vida, recorre às obras passadas das vidas dos
teus tribunos, e por preço do perdão de Deus, julga-nos com justiça. Quando tu
jazias na servidão, e os grilhões, encarnando-se-te nos pés e nos pulsos, te
roçavam pelos ossos, pelejávamos nós por te salvar; derramávamos o nosso sangue
por ti. Por ti víamos o irmão e o amigo morder o pó dos campos de batalha, e
calávamos; sentíamo-nos descair de fome, e não soltávamos um queixume. Porque
guardávamos os ais para o silêncio das trevas. Soldados da pátria, ousaríamos
acaso queixar-nos diante da luz do sol? E eles, que faziam, enquanto as nossas
noites eram veladas debaixo de um céu de ferro e de fogo, enquanto os nossos
dias se consumiam entre o sibilar dos pelouros? Eles? Nos lupanares e tabernas
de países estranhos, folgavam nos banquetes da embriaguez; reclinavam-se no
leito da prostituição.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo
I by Alexandre Herculano
62 Eles?
Cobriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade à nossa nobre ousadia, e
riam-se do juramento que fazíamos de morrer ou dar a liberdade a nossos irmãos.
Eles? Buscavam por todas as vias semear a zizania e os ódios, danar a nossa
causa santa, e fazer-nos perecer debaixo das ruínas de uma cidade ilustre. Eis
o que eles fizeram em proveito da pátria. No meio do foro, diante de teu
tribunal terrível, descubra quem o ousar o peito, e mostre e conte as
cicatrizes das feridas que recebeu pela salvação da república. Um só deles as
mostrará; porque esse foi valente e amigo da virtude. Anjo de luz, porque te
despenhaste no abismo? A história escrevia o teu nome na página das bênçãos: tu
mesmo o riscaste e o foste escrever na página das maldições...
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