segunda-feira, 13 de abril de 2020

A propósito das cidades, uma página de Herculano



Em apoio à página de António Barreto precedente deste texto, na exemplificação dramática de uma dessas cidades mortas, embora não por idênticos motivos de natureza viral, condenando-as à solidão, lembrei-me da referência apaixonada de Herculano à nossa Lisboa - Lisboa, cidade de mármore e de granito, rainha do oceano, tu és a mais formosa entre as cidades do mundo.- e procurei na Internet o excerto da obra a que ela pertence – “Opúsculos”- que a curiosidade me fez ler e corrigir na sua ortografia original, embora nem tanto na sua estrutura. A verdade é que nunca lera o texto integral e gostei de o copiar para o meu blog, conquanto sinta o exagero emotivo passadista do tom declamatório elegíaco e apocalíptico, que levou Herculano a exaltá-la na sua grandeza antiga, para a depreciar na sua miséria, contemporânea do historiador, que vivera o descalabro das lutas liberais. De toda a maneira, gostei de ler, não pela sua identificação com o ponto de vista de António Barreto, este apenas debruçado sobre as consequências “desertificatórias” de um maldito vírus, ao contrário de Herculano, que se refere a outros desertos menos formais e mais espirituais, que, de resto, não deixam de subsistir no nosso tempo, algures…

Da INTERNET:
Opúsculos de Alexandre Herculano
Lisboa, cidade de mármore e de granito, rainha do oceano, tu és a mais formosa entre as cidades do mundo. A brisa que varre os teus outeiros é pura como o céu azul, que se espelha no teu amplo porto, semelhante a grande mar. Trinta séculos têm surgido depois que tu surgiste, e sorvendo milhares de existências caíram todos no abismo do passado. E tu os hás visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a vida te estava travada com a vida do universo. Escondendo nas trevas dos tempos remotíssimos a tua origem, dizias às demais cidades da Europa:--Sou vossa irmã mais velha. Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a África te mandavam o ouro das suas veias, os estranhos vinham assentar-se-te ao pé dos muros e abastecer-se com as migalhas caídas das mesas dos teus banquetes. Cada um dos teus velhos palácios abrigou já os últimos dias de um grande capitão; em cada pedra dos teus templos há uma recordação das virtudes passadas; em muitas lousas de sepulturas nomes que não morrerão. Nas eras de tua glória, os monarcas dos últimos confins da terra se haviam por honrados com chamar irmãos a teus filhos; e filhos teus davam e tiravam coroas. As tuas armadas aravam as campinas do oceano, e neste nem uma vaga deixou de gemer debaixo das naus do Tejo. Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado ressoavam ao mesmo tempo nos bosques da Europa e da África, do Oriente e do Novo-Mundo: os lenhos do Indostão cosidos com os da Nigrícia flutuavam por mares distantes, e sobre eles se hasteava um sinal de terror para o orbe: era o pendão das Quinas.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
54 Então, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte, mais do que Roma ou Cartago; mas o império e a força vinham-te das virtudes de teus filhos, dos homens a quem sem pudor chamamos nossos avós. Vivificavam-te o seio um sem número de bem-nascidos espíritos, e eras seminário feracíssimo de corações generosos. Porém, que te resta hoje do antigo esplendor, da glória de tantos seculos? Um eco do passado nas páginas da historia, o sol puro da tua primavera, os restos dos paços e templos que os terramotos te não consumiram, e o grande vulto das águas do amplo ádito do Tejo. II Mas este eco da historia, que devia ser para ti como um grito de remorso, não há ouvidos que o escutem, e soa em vão e morre no meio do vozear descomposto da plebe: Mas este céu puro que te cobre, e que testemunhará no grande dia as virtudes de nossos maiores, testificará também perante o Senhor a tua corrupção actual: Mas este porto, que a liberdade regrada de três anos começava a povoar de entenas, torná-lo-á o reinado da licença tão ermo como os extremos dos mares gelados: Mas pelos palácios de mármore já não retumba a voz dos heróis, e os templos estão desertos: só por lupanares e praças sussurra o clamor dos populares, ou entoando os cânticos das orgias, ou tumultuando em assuadas e preparando o dia em que satisfaçam a sede do roubo e do assassínio. Viúva prostituída, os vícios corromperam-te a seiva da vida, e a gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos louçãos, mas onde a morte se encarnou há muito.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
55 Formosa ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulcro do evangelho, alvo e polido no exterior, mas cheio de podridão e negrura. Nova Jerusalém, a dextra do Senhor vergou pesando-te os crimes e, como a antiga, saberás se por ventura são ásperas as angústias que o Omnipotente manda aos povos no dia da sua justiça. Rápida é a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses atalhos levam, de despenhadeiro em despenhadeiro, ao abismo da perdição. Breve empalidece o outono as folhas das árvores; breve as desprende dos troncos; breve as espalha e some, arrebatando-as sobre as asas dos ventos. Esse curto prazo bastou ao povo para esgotar os tesouros da misericórdia divina, que os erros e culpas de séculos não haviam podido empobrecer. Os feitos portentosos de doís anos de combates civis foram amaldiçoados pelo povo em uma noite de sedição, e a árvore da liberdade cerceada junto da terra. E as esperanças de salvação e de felicidade passaram como o sonho matutino que se desvanece ao altear do sol. III Como a antiga Jerusalém se afundou em mar de crimes, assim a moderna Sião, a grande cidade do ocidente, se mergulhou em torrente de perversidades. E a maldição celeste que sumiu aquela d'entre as nações pesará ainda mais rijamente sobre a desgraçada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e de desenfreamento. Á roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavaleiros de Babilonia, e as tendas de Nabucodonosor estavam assentadas ao pé da torrente de Cedron.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
56  E as catapultas arrojavam pedras sobre os eirados do templo, no cimo do Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacilavam até os fundamentos, e o granizo das setas sibilava, passando por entre as mal defendidas ameias. E ao longe cintilavam os ferros das lanças e o bronze dos elmos e dos cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavalos. Surgira o dia extremo para a cidade das maravilhas, para a réproba Solima. E dali a um ano, sobre as ruínas dela estava assentado um velho. Era o profeta de Anathot, que, em cima da ossada dos palácios e do templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nação.
IV Também o dia em que, entre os vestígios da cidade maldita, algum vate levante um grito de agonia, um grito de desesperança, não tardará a chegar. Porque Deus ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este país o anjo do extermínio. Mais cruel será o teu castigo, oh terra do meu berço, do que o de Jerusalém: porque ela pereceu a mãos de estranhos, e seus filhos morreram defendendo os lares paternos. Mas a ti é um matricídio popular, é a febre ardente das sedições que te vai arremessar ao sepulcro. Os teus muros converter-se-ão em circo: pelas praças e ruas pelejar-se-ão pelejas como de gladiadores, combates como de mastins e feras. Porque o temor de Deus saiu do coração do povo, e entraram nele todas as raivas do inferno. Áspero é para o que morre assassinado não poder clamar ao céu justiça contra o seu matador.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
57 E neste mau caso cairá o povo; porque serão as suas próprias mãos que lhe rasgarão as entranhas: será ele quem lavre a sua sentença de morte. Ele se amaldiçoará a si, e o remorso e a desesperação de toda a humana piedade lhe dobrarão as agonias do passamento.
V Os que pelejaram contra os tiranos purpurados mal sabiam que lhes quebravam o ceptro de ferro, para meter a espada da assolação na dextra de tiranos cobertos de vermes e farrapos. Mal pensavam que uma raça corrupta não conhece outra estrada senão a da servidão ou a da licenciosidade. A nação, esmagada pelos reis, tinha muito tempo gemido debaixo da própria miséria. Mas surgiu um príncipe que deu a liberdade ao povo e que veio morrer para lha restituir, quando ele vilmente a deixou baquear por terra. E estes homens, que pouco antes haviam dobrado o joelho perante o despotismo, mostraram-se tão orgulhosos e insolentes, quanto, até então haviam sido abjectos e tímidos. E numa orgia popular fizeram ressoar gritos insultuosos nos ouvidos daquele que duas vezes os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse momento longe estavam os seus soldados, e muitos deles arquejavam moribundos no campo onde se pelejou a última batalha da pátria. Em verdade vos digo que tal crime é dos que Deus não perdoa; porque a ingratidão é a mais horrenda de todas as perversões humanas. Eles apressaram o repouso do túmulo para o salvador da república: mas o nome de parricidas será o que sobre a jazida lhes escreverá a história.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
58 VI O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta fonte da poesia e de acções generosas, converteu-se para mim num pesadelo cansado. Digno era o povo de compaixão quando estava em ferros, e por bom feito se tinha entre as almas puras o afrontar-se o homem com a morte pela salvação dos seus semelhantes: Porque, subindo ao patíbulo ou expirando entre o estrondo das armas, a voz da consciência assegurava ao que fenecia as lágrimas e as bênçãos dos vindouros, e que algum dia ciprestes se plantariam na terra que lhe bebesse o sangue. Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a consciência mentia. A corrupção estava no âmago das existências. A árvore da vida social carcomiu-a a servidão. Cumpria que as tempestades políticas a derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os troncos. E estes vermes são as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente trabalham na grande obra da pública destruição. Almas virtuosas, que nos países ainda escravos preparais no silêncio a queda dos tiranos, não apresseis o grande dia da emancipação popular. Porque nesse mesmo momento sereis amaldiçoados pelos que salvastes, e cobertos de escárnios e de injúrias, sabereis que a plebe lança em poucos meses mais crimes na balança da eterna justiça do que os tiranos aí hão lançado por séculos.
VII Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
59 Certo dia, o conde de Avranches entrava nos paços de Afonso quinto, e os cortesãos caluniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da república. E o conde disse-lhes:--mentis, como desleais; e aos melhores três de vós prová-lo-ei á lança e á espada: inocente e justo é o mui nobre filho de meu senhor e rei, Dom João de excelente memória. E ninguém ousou responder ao velho cavaleiro da Garrotéa; porque bem sabiam que a sua consciência era pura e o seu montante pesado. Daí a alguns dias ele provou o dito. Na batalha de Alfarrobeira, sobre um montão de cadáveres, caiu defendendo a inocência e bom nome do seu desventurado amigo. Onde estavam os do valente capitão da nova Diu, do rei soldado da pátria, quando o vulgacho no meio da praça pública, assentado no seu lodaçal mandava derrocar as leis, as recordações e a glória d'uma nação inteira? Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memória do grande homem era amaldiçoada na condenação da sua obra; quando sobre as suas cinzas a dissolução cuspia escárnios; quando a liberdade morria ás mãos da licença popular? Quem se ergueu, seguro em boa consciência, para lançar a luva em defesa da justiça, e dizer ás turbas:--sois desleais e mentis? Ninguém! Todas as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal já não há um cavaleiro. Na batalha de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a sua espada foi sepultada com ele.
VIII Quando os reis se assentavam em tronos de ferro; quando a lisonja os rodeava de prestígios, e o terror estava assentado às portas dos seus palácios, era belo e generoso afrontar-se o homem com a tirania. Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
60 menoscabar as dores dos suplícios. Então era ousado o profeta, quando, nos paços de Baltasar, lia nos muros, escritas pela mão de Deus, palavras de condenação. Eram sublimes os mártires, quando perante os césares davam testemunho do evangelho, e escarnecendo dos aparelhos de morte, se deitavam tranquilamente sobre a cruz da agonia. Era belo ouvir o poeta de Florença trovejar contra a prostituta Roma, denunciar ao mundo a corrupção e os crimes dos pontífices do Tibre, e comer no desterro um pão eivado de lágrimas e esmolado por estranhos. Era belo, quando nós, assentados sobre os gelos do Norte, saudávamos do desterro a terra que nos deu o berço, e vínhamos, fracos pelo número, mas fortes de coração, lançar as nossas baionetas na balança da Providência, onde a tirania tinha também lançado as suas. Tudo isto era belo e generoso; porque então os pequenos gemiam opressos debaixo dos pés dos grandes, e ao homem justo incumbia fazer ressoar na terra a voz da eterna justiça, o grito da liberdade. Mas hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameaça tragar a virtude, a liberdade, a justiça e todas as recordações santas do passado, para o homem de boa consciência sê-lo-á também, o morrer. Sê-lo-á o bradar no meio das turbas, e derramar sobre elas a condenação, que Deus confiou em todos os séculos aos lábios do inocente e virtuoso. Sê-lo-á chegar aos tribunos populares, apontar-lhes para o céu, e apresentar a cabeça ao cutelo dos lictores.
IX Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
61 Povo, hoje és tu quem impera, e absoluto é o teu poder; porque te dizes única fonte dele. Toma, pois, em tuas mãos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais no teu trono, amassado com sangue e pó. Vem assentar-te, e julga-nos, a nós, que tu maldizes, e aos tribunos, aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de bênçãos. Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justiça, a plebe ainda será salva. Desça o terror da tua vingança sobre o coração do que te houver ofendido; volvam-se no pó as frontes onde tu achares estampado o ferrete do crime. Recorre às acções da nossa vida, recorre às obras passadas das vidas dos teus tribunos, e por preço do perdão de Deus, julga-nos com justiça. Quando tu jazias na servidão, e os grilhões, encarnando-se-te nos pés e nos pulsos, te roçavam pelos ossos, pelejávamos nós por te salvar; derramávamos o nosso sangue por ti. Por ti víamos o irmão e o amigo morder o pó dos campos de batalha, e calávamos; sentíamo-nos descair de fome, e não soltávamos um queixume. Porque guardávamos os ais para o silêncio das trevas. Soldados da pátria, ousaríamos acaso queixar-nos diante da luz do sol? E eles, que faziam, enquanto as nossas noites eram veladas debaixo de um céu de ferro e de fogo, enquanto os nossos dias se consumiam entre o sibilar dos pelouros? Eles? Nos lupanares e tabernas de países estranhos, folgavam nos banquetes da embriaguez; reclinavam-se no leito da prostituição.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
62 Eles? Cobriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade à nossa nobre ousadia, e riam-se do juramento que fazíamos de morrer ou dar a liberdade a nossos irmãos. Eles? Buscavam por todas as vias semear a zizania e os ódios, danar a nossa causa santa, e fazer-nos perecer debaixo das ruínas de uma cidade ilustre. Eis o que eles fizeram em proveito da pátria. No meio do foro, diante de teu tribunal terrível, descubra quem o ousar o peito, e mostre e conte as cicatrizes das feridas que recebeu pela salvação da república. Um só deles as mostrará; porque esse foi valente e amigo da virtude. Anjo de luz, porque te despenhaste no abismo? A história escrevia o teu nome na página das bênçãos: tu mesmo o riscaste e o foste escrever na página das maldições...


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