Texto sábio que deu para rever nomes e
conceitos, no fascínio do passado. Carlos
Maria Bobone o escreveu. Abençoada Internet, que permite o acesso rápido à vastidão dos mundos,
entre os quais a referência heraclitiana, tantas vezes usada na estafada imagem
da mudança: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes nas mesmas águas de um rio”…
Holderlin. O castigo do sábio poeta louco /premium
Nasceu há 250 anos, é um dos grandes
poetas alemães, mas é também uma influência na história da filosofia. Encanta
os linguistas como restaurador da cultura grega, sem ser clássico nem
romântico.
CARLOS MARIA
BOBONE Texto
OBSERVADOR, 11 abr
2020
A
entrada de Holderlin no cânone literário foi tardia mas fulgurante. Depois de uma vida discreta e de um século quase
anónimo, o reconhecimento começou a chegar por todos os lados. As Histórias
da Literatura mais autorizadas falavam dele como o grande poeta alemão, a
par ou acima de Goethe; os filósofos – com Heidegger e Walter Benjamin à
cabeça — analisavam os hinos do “mais filósofo dos poetas” e os académicos
reconheciam a influência dos seus tratados em Hegel.
Encanta
os linguistas como o grande restaurador da Cultura Grega, de que as suas
traduções de Píndaro são só um
exemplo, e, para aqueles que se fascinam com o folclore biográfico, viveu
quarenta anos insulado numa torre, atacado por uma grave esquizofrenia.
Holderlin ficou órfão aos dois anos e, ao contrário de tantos
para quem a orfandade significava a condenação ao trabalho árduo desde cedo,
foi destinado a seguir as pisadas do pai, um pequeno pastor Luterano. Foi, assim, instruído desde cedo – a par do seu
conterrâneo Schelling – nas
línguas Antigas, na teologia e em alguma especulação filosófica que assimilou
com proveito. Tanto que, quando chega ao famoso Tubinger Stift – o
seminário mais importante da região de Wuttenberg, associado à Universidade de
Tubingen – é ele a figura dominante no “trio de Tubingen”. Entre Hegel,
Schelling e Holderlin, é este último que introduz a paixão pela cultura grega,
pelos pré-socráticos a que Heidegger dará tanta importância na relação com
Holderlin, ou pelos dramas de Sófocles.
Para
que Holderlin tenha sido tomado como um poeta filosófico, muito terão
contribuído as interpretações de Heidegger
Não
se pode dizer, também, que fosse possível, num seminário alemão do século
XVIII, ignorar Kant
e toda a frescura do idealismo alemão; no entanto, alguns académicos têm
tentado provar que, se o grupo chegou a dominar com a conhecida proficiência os
juízos sobre a estética e a lógica transcendental Kantianas e os
desenvolvimentos dos seus seguidores, em muito o deve a Holderlin.
É
impossível saber com certeza o grau de influência de Holderlin em Holderlin ou
em Hegel. Os académicos discutem a hipótese de um texto importante, O mais
antigo programa sistemático do idealismo alemão, ter sido escrito entre
Holderlin, Hegel e Schelling, embora esteja grafado com a letra de Hegel, o que
daria alguns elementos seguros para perceber os interesses e as posições
filosóficas comuns; no entanto, não é possível ter grandes certezas, como
sempre acontece na esfera das influências partilhadas, do que é que é património
ideológico de cada um. A verdade é que, depois dos anos do Tubinger Stift,
são raras as referências mútuas, e nada na correspondência faz eco da grande
amizade de juventude. No entanto, é certo que Holderlin já dominava bastante
bem os textos de Heraclito,
que mais tarde terão certa influência no desenvolvimento da dialéctica
hegeliana.
Holderlin, contra os
desejos da sua mãe, acabou por não se tornar pastor. Holderlin estava cada vez mais embrenhado na vida intelectual,
começou a escrever o Hyperion um
ano depois de sair de Tubingen, e ia entrando no mundo das letras. Terá sido
por isso que passou um ano na Universidade de Java, em que Fichte dava aulas
e Schiller, cuja poesia Holderlin conhecia desde a juventude, era uma
espécie de figura tutelar. Não é crível que esta curta passagem tivesse mais
objectivos do que permitir ao jovem poeta familiarizar-se com o programa
filosófico de Fichte e mergulhar com mais profundidade no meio intelectual
alemão; a ideia de cursar direito nunca foi consistente e, assim que
Holderlin viu que a influência de Schiller era demasiado opressora para a sua
poesia, abandonou a Universidade.
FOTO: A primeira
edição de “Hyperion”, de 1797
Holderlin,
como tantos intelectuais com poucos meios e menos vontade de optar pela
carreira religiosa, estabeleceu-se como professor particular depois de
abandonar a Universidade. Esta era uma profissão que garantia um sustento
seguro e permitia, a quem o desejava, dedicar uma boa parte do tempo aos
estudos, mantendo ainda assim uma vida tranquila. Teria sido o destino
natural de Holderlin, caso não se tivesse envolvido amorosamente com a mulher
do seu empregador. A relação custou-lhe o emprego, boa parte dos nervos
e uma espécie de exílio. Depois do serviço nos Gontard, só conseguiu
emprego na Suíça, primeiro, e em Bordéus, depois. De Bordéus (que
é, aliás, inspiração para um dos seus mais famosos hinos, Memória), o
regresso à Alemanha foi quase directo para o hospício, onde a sua
esquizofrenia foi identificada sem previsões animadoras. Seria incurável e
fatal, diagnóstico que só em parte se revelou verdadeiro. Holderlin
nunca recuperou completamente, é verdade, mas em vez dos três anos previstos
pelos alienistas demorou quarenta anos a morrer. Esses quarenta anos, passou-os
numa torre, que ainda hoje existe, em Tubingen.
Aí
escreveu, recebeu visitas e levou uma vida calma até à morte, longe dos grandes
centros da cultura que queria transformar, afastado dos palcos revolucionários
que admirara na juventude e do reconhecimento que os seus amigos de outrora iam
ganhando. Holderlin, apesar de ter publicado bastante ainda em vida, nunca
chegou a ver uma pálida imagem do reconhecimento que teria. Foi o Hyperion que lhe valeu a casa para os últimos anos – o
empresário que lha cedeu era seu leitor – e alguns dos seus hinos eram
modestamente apreciados; no entanto, é hoje um dos mais considerados poetas
alemães.
Poesia
filosófica: a interpretação de Heidegger
Holderlin
tanto escreveu filosofia como poesia.
Curiosamente, porém, só nos últimos anos é que a sua produção ensaística tem
sido alvo de interesse. Isso não impede que, desde o ressurgir da atenção pela
sua obra, Holderlin tenha sido tomado como um poeta filosófico. Para isso,
muito terão contribuído as interpretações de Heidegger. No pós Ser e
Tempo, Heidegger dedica-se a uma série de
assuntos que tinham estado pouco presentes no seu trabalho anterior. Já está
definido o seu grande empreendimento filosófico. A “hermenêutica da
facticidade” já tinha passado a “analítica existencial do Dasein” e não
sofreria mais alterações, pelo que os seus cursos ganharam outros contornos.
Holderlin
produz a estranheza de pensamento que permite sair da distracção existencial e,
mais importante, transforma-a numa meditação sobre o próprio pensamento.
Não
é possível analisar num texto destes a dimensão e os propósitos da filosofia
heideggeriana; no entanto, para se perceber a importância dada a Holderlin, é
preciso conhecer alguns dos seus pressupostos. A analítica existencial do Dasein
parte de uma refundação da ideia Kantiana de que há algumas categorias que
constituem juízos sintéticos a priori. Isto é, há algumas ideias que estão
no nosso espírito, que são independentes do que nos aparece à frente, que
moldam a nossa maneira de pensar de uma maneira irremediável. Em Kant, o espaço e o tempo são as categorias fundamentais. O
espaço não está nos objectos, mas sem a compreensão do espaço teríamos uma
ideia completamente diferente daquilo que nos aparece.
Ora,
o grande projecto de Heidegger passa por mostrar que estas categorias que
afectam a percepção estão mais dependentes de disposições existenciais do que
podíamos pensar. Só vemos as coisas como vemos porque elas estão
enquadradas num modo de ver que as conforma. Há, assim, no simples modo de ver,
na simples percepção, todo um modo de pensar e uma interpretação da vida
pressupostos. A identificação dos tais pressupostos e daquilo que molda
a nossa ideia de ser – não só do ser no sentido daquilo que cada objecto é, mas
também do ser no sentido deste conjunto que nos leva a ver cada coisa tal como
a vemos – é o fundamental da analítica existencial do Dasein.
Nos
anos 30 e 40, que são os anos em que a análise de Heidegger sobre Holderlin é
mais profunda, Heidegger
está a estudar a ideia da arte e da poesia com formas de nos darmos conta deste
ordenamento das coisas que usamos sem sequer o percebermos. A poesia causa
uma estranheza na linguagem que nos leva a perceber o quanto, na nossa percepção
do que nos aparece, está dependente do modo habitual de pensar ou de falar.
FOTO (Holderlin
nasceu em 1770 e morreu em 1843)
Heidegger
procura, a partir dos cursos preparatórios de Ser e Tempo, fazer uma gigantesca
revisão de toda a metafísica, que, desde Platão, se funda na pergunta errada.
A metafísica procura as qualidades do ser, em vez de perguntar o que
significa, realmente, ser. Assim, aquilo que tem é sempre apenas uma
imagem de outra coisa. Para Heidegger, a especulação Holderliniana é ainda
metafísica, mas a sua poesia já não (aber er dichtet anders). No curso sobre o Hino
Der Ister (o Ister era uma parte do Danúbio, e este curso é o
volume 53 da Obra Reunida de Heidegger) Heidegger
explica que a poesia de Holderlin não vive de metáforas e símbolos, mas sim
daquilo da própria contemplação daquilo que descreve. Isto, que podia ser
uma simples manobra estilística, já que, no século XVIII, a ausência de
metáforas é uma reacção clássica ao barroco, torna-se em Holderlin uma ferramenta
filosófica. Holderlin produz a estranheza de pensamento que permite sair da
distracção existencial e, mais importante, transforma-a numa meditação sobre o
próprio pensamento. Esta meditação está também presente no famoso Hino sobre
Bordéus, Andenken (Memória), que é para Heidegger uma forma de mostrar
como mesmo o pensamento nos dá modos de ser diferentes.
Harmonia,
castigo e romantismo
As
interpretações Heideggerianas de Holderlin têm sido bastante contestadas
porque, a par dos problemas metafísicos, Heidegger faz de Holderlin uma espécie
de paladino do espírito germânico que não deixará de ter interpretações
políticas. Paul de Man, por exemplo, diz que Heidegger interpretou
Holderlin ao contrário das ideias do próprio e, de uma certa forma, é fácil compreendê-lo.
De facto, é estranho fazer do grande humanista, até proto-republicano, uma
espécie de pensador nacional-socialista.
No
entanto, além de Heidegger deixar bem claro que o pensamento de Holderlin é
pouco importante para a interpretação dos seus hinos, a verdade é que a
meditação sobre a História e sobre a linguagem (é uma poesia orientada para a Seinsgeschichte,
História do Ser), a superação do racionalismo e até uma espécie de dialéctica
poética, que para Heidegger são características do espírito alemão, estão
presentes em Holderlin. Se a isto juntarmos uma espécie de alternativa à
tecnologia e um interesse pelos mesmos temas gregos que interessarão a
Heidegger, conseguimos perceber que a sua ideia do espírito de Holderlin está
para lá da política imediata.
Holderlin é o restaurador da mentalidade pré-socrática e da
verdadeira pergunta sobre o ser que ainda resta no teatro grego. Ora, o helenismo de Holderlin é incontestável e
notório. Não só o Hyperion
trata de uma espécie de desilusão revolucionária grega com recurso a temas
sofoclianos, o que tornará especialmente significativa a análise a Sófocles que
Heidegger fará no curso sobre o Der Ister, como Holderlin é além disso um
famoso tradutor de Píndaro.
Curiosamente,
Heidegger dá pouca importância a textos que poderiam ter sido importantes para
a sua interpretação de Holderlin. Nos seus ensaios, embora seja tratada uma
grande variedade de temas, desde a arte poética aos fundamentos do direito
penal, têm sempre presente uma tentativa de superação das hipóteses Kantianas
que poderiam interessar a Heidegger.
A
sua ideia de harmonia, que tem sido interpretada como uma espécie de cultura
hippie setecentista, tem um sentido muito mais complexo e que está em
diálogo constante com a filosofia do seu tempo. Holderlin tem uma
interpretação interessante da ideia de castigo para superar a subjectividade a
que o idealismo alemão parecia condenar os Homens. Explica ele que todo
o sofrimento é castigo, incluindo aquele que sentimos quando uma vontade nos é
travada pela consciência. Não será um sofrimento físico, mas é ainda assim um
sofrimento, um castigo. É daí que, em geral, deduzimos a lei moral. A lei moral
não pode ser escrita, mas é identificada pela resistência. Não nos dá o bem,
mas dá-nos pelo menos o mal. Com a resistência que experimentamos, sabemos que
temos uma má vontade. Ora, esta resistência não precisa de ser apenas
metal. Qualquer acção que experimente resistência, seja até de ordem física,
dá-nos pistas sobre a sua natureza. A ideia de harmonia é, assim, a ideia de
uma acção em que não há castigo e em que nem sujeito nem objecto se dominam.
Não há resistência porque há uma reconciliação entre dois lados. Nem é o
sujeito que domina, à maneira do racionalismo ou do idealismo alemão, nem o
objecto, à maneira da filosofia medieval.
FOTO: (Texto
publicado em 1776, referente ao movimento Sturm und Drang)
Esta
ideia de harmonia fará de Holderlin uma espécie de percursor do romantismo
alemão. Embora os
seus temas ainda sejam os temas tradicionais do Sturm und Drang (o grupo de
juventude de Goethe e Herder), como o classicismo e o estilo mais arcádico
do que medieval, a preferência de Holderlin pela simplicidade natural à
sofisticação farão dele um percursor do amor romântico pelo povo. A ideia
de natureza presente em Holderlin é também a ideia de simplicidade e de
autenticidade, coisa que Novalis e restantes seguidores explorarão até ao
limite.
O
romantismo alemão é complexo, muito centrado na insuficiência do desejo que
também está presente nos hinos de Holderlin, mas deve muita dessa complexidade
a Holderlin.
Holderlin está entre um mundo e outro porque é talvez o mais filosófico
dos poetas num século que consagrou o poema filosófico (que terá tantos e tão
maus cultores em França) e o mais puro de outro século em que o lirismo popular
ganhou força. Holderlin, o filósofo do castigo e da harmonia e o poeta do
pensamento mas também do pão e do vinho tornou-se aquilo que merece. Não é
clássico, não é romântico, não é poeta e não é filósofo. É mais do que tudo
isso, o que o tornou um dos gigantes da literatura de todos os tempos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário