E Alberto Gonçalves não desarma, assumindo agora, ficticiamente, é claro,
o papel de qualquer um de nós, nesta dança dos dias, com o desaforo deste vírus
que também não desarma. Ainda bem que nos ajuda a manter a boa disposição no presente
– embora não a fé no porvir…
Só eu sei porque fico em casa: diário de um cidadão
consciente
Farto de ver excertos de 79 séries da Netflix e
anúncios para surdos na CMTV, saí à rua para respirar. Cruzei-me com
irresponsáveis que não andavam na rua para respirar. Apeteceu-me logo
espancá-los.
ALBERTO GONÇALVES,
colunista do OBSERVADOR
OBSERVADOR 11 ABR
2020
Dia 1 (da quarentena). A
conselho da senhora da DGS, tentei substituir a ida ao supermercado pela visita
ao horto de um amigo.
Descobri que não tenho amigos, ou que os amigos não têm hortos, ou que os
hortos não têm papel higiénico e latas de atum.
Dia 2. Fui
ao supermercado abastecer-me. É vergonhosa a quantidade de gente que por lá
andava sem comprar papel higiénico e latas de atum. Segui o exemplo do senhor
presidente e aproveitei para fazer testes ao covid e lavar peúgas. Os testes não consegui, mas lavei para aí uns
30 pares.
Dia 3. O
vírus alastra no mundo. Há tantos infectados em Espanha e na Itália, meu Deus.
Maldito Trump! Vi um casal de vizinhos a caminhar lado a lado e estive para os
insultar. Arrumei peúgas e fotografei um bolo para publicar no Instagram. Um especialista
garante que os próximos dias serão decisivos para a evolução do vírus.
Dia 4. Assinei
a tal Netflix. No fundo,
não se está mal: vi bocados de três séries e espreitei 42 vezes à janela para detectar
movimentos na rua. Passou uma senhora com um saco da mercearia. Mas esta
gente é toda louca? Espetei nas “redes” com um boneco fofinho a
recomendar a todos que fiquem em casa. Não facilitem!
Dia 7. Comecei
a praticar ioga para tirar uma fotografia e publicar no Instagram. Arranjei uma hérnia, mas não vou chatear o SNS (Deus o abençoe).
Dia 9. Vi
a conferência das senhoras da saúde. Aquelas mulheres são incansáveis. Eu
também não me canso de as ver diariamente. A senhora da DGS diz para não
usar máscara por causa da “falsa sensação de segurança”. Não quero nada disso
para mim, logo não usei máscara quando fui à rua passear o cão. Vi
transeuntes sem cão. A falta de civismo deixa-me furioso.
Dia 10. Fui
à varanda bater palmas aos profissionais de saúde. Acrescentei três vivas
aos nossos maravilhosos líderes.
Dia 12. A
senhora da DGS diz que não vale a pena aconselhar máscaras porque não há
suficientes. Calha bem: não tenho nenhuma. Fui exercitar-me lá fora e
deparei-me com pessoas que caminhavam sem fazer exercício. Doidos! Todos
doidos! Como o meu aviso anterior não terá funcionado, publiquei um pequeno
ralhete nas “redes” a ver se
ganham juízo. Fiquem em casa, inconscientes de um raio!
Dia 13. Comecei
a ler um livro para tirar uma fotografia e publicar no Instagram. A julgar por dois parágrafos, a Inês Pedrosa escreve
que é um mimo.
Dia 16. Gosto
muito de acompanhar as mensagens dos “pivots” no fim dos “telejornais” – são,
em simultâneo, palavras bonitas, corajosas e motivadoras. Fui ao
supermercado buscar refrigerantes, batatas fritas e um frango assado. Acreditam
que havia velhos com o carrinho cheio de porcarias supérfluas? Enquanto não
enfiarem umas dúzias na cadeia, não aprendem. Fala-se em soltar os presos
mais idosos. Acho um belo gesto.
Dia 17. O
dr. Costa jura que não nos falta nem faltará nada. Este homem nunca mente: de
facto, não me falta papel higiénico nem atum. Um especialista garante que os
próximos dias serão decisivos.
Dia 18. Comecei
a aprender fagote para
tirar uma fotografia e publicar no Instagram. Quando isto passar tenciono perceber o que é o fagote
e, talvez, adquirir um.
Dia 19. Fui
à varanda bater palmas aos profissionais de saúde, aos nossos
maravilhosos líderes e ao zelo da polícia. Um vizinho incentivou-me: “Cala-te,
palhaço!”. Eram 5 da manhã.
Dia 23. As
senhoras da saúde falaram imenso sobre curvas, picos e planaltos. Achei lindo.
Dia 25. Farto
de ver excertos de 79 séries da Netflix e
anúncios para surdos na CMTV, saí à rua para respirar. Cruzei-me com
irresponsáveis que não andavam na rua para respirar. Apeteceu-me
espancá-los fisicamente mesmo ali. Espanquei-os verbalmente depois, numa página
do Facebook dedicada a denunciar tamanhos
assassinos.
Dia 26. O
dr. Costa chamou repugnante a um ministro holandês que duvidou da
credibilidade (e da honestidade) espanhola (e da portuguesa) para pagar dívidas.
Numa frase, mostrou ao nazi que não precisamos dele para nada. Espero mas é
que nos aviem o dinheirinho. Um especialista garante que os próximos
dias serão decisivos. Protejam-se!
Dia 27. Filmei
um delinquente a passear no parque onde eu passeava. Mandei o vídeo para um
grupo de denunciantes. As autoridades já fecharam aquilo. Para comemorar,
fui à varanda começar a aprender guitarra para publicar uma fotografia no
Instagram. Um vizinho juntou-se imediatamente a cantar: “Vou aí
e parto essa merda!”. Foi giro.
Dia 29. O prof. Marcelo terminou as lides domésticas e agora
fala 14 ou 15 vezes por dia nas televisões. Adoro ouvi-lo. Explicou que há uma mola e que temos de pressionar a mola. É lógico: na altura própria, solta-se a mola e ela
desata aos pinotes até cair no mar. Fui ao supermercado só para mandar bocas
aos loucos que estavam no supermercado.
Dia 30. Existem
chalupas interessados em acautelar a economia à custa de vidas humanas.
Querem abrir os negócios e matar-nos a todos. Ó suas cavalgaduras: o que
é que a economia tem a ver com as pessoas? Que parte da palavra “apocalipse” é
que não perceberam? Não sabem das tragédias de Espanha e de Itália? Maldito
Trump! Fui ver uma dúzia de trailers da Netflix para desopilar. Estes criminosos enervam-me. Um
especialista garante que os próximos dias serão decisivos. Cuide-se!
Dia 32. É
de perder a paciência: ao regressar de uma corridinha, vi um forasteiro passar
à minha porta a fingir que ia trabalhar. Se tivesse um tronco a jeito,
desmontava-lhe a cabeça ali. Salvar uma vida é salvar a humanidade inteira,
seus psicopatas!
Dia 34. Indivíduos
sem serventia insistem em levantar o confinamento para salvar empregos.
Felizmente, o dr. Costa, considerado pelo “Expresso” a reencarnação de
Churchill, avisou que tal não acontecerá num mês, se calhar nem em dois,
possivelmente nem em três. À cautela, eu esperaria um ano, ano e
meio, para que o vírus se aborreça e vá à
vida dele. Comecei a praticar zumba para
publicar uma fotografia no Instagram.
Dia 35. Fui
à loja de ferragens aqui perto para copiar uma chave. Cheguei a casa e
denunciei o pulha do proprietário à ASAE.
Dia 37. Sinto-me
doente, mas de raiva com os alienados que insistem em levantar em breve o
estado de emergência. Não entendem que o pico ainda vem longe? E que a
seguir virá o planalto? E a seguir uma planície rodeada por uma bela
cordilheira? E que há uma curva qualquer que convém achatar? Não estudaram?
Estudassem.
Dia 39. Fui
à varanda. Um vizinho denunciou-me por ter ido à varanda. Odeio bufos.
Dia 40. Tarde
a contemplar as paragens policiais organizadas para as televisões. Os
polícias enxovalham bem os palermas dos condutores. Depois dão o lugar aos
repórteres que os enxovalham em dobro. É assim mesmo: rédea firme nessa
cambada. Coloquei nas “redes”
um coração que reza: “Estamos separados para ficarmos mais unidos”. Um
especialista garante que os próximos dias serão decisivos. Pressionem a mola,
pá!
Dia 41. Continua
o paleio da retoma económica. Querem limpar-me o sebo, é o que é. Se
me fazem trabalhar, prometo que eu é que limpo o sebo a alguém: ainda não vi um
episódio completo na Netflix. Maldito
Trump! Salva-se o bom senso do dr. Costa, que não vai em cantigas mas vai aos
programas da manhã elucidar as massas.
Dia 72. Finalmente
terminei o documentário sobre a Lady Gaga na Netflix: quatro
estrelas. Comecei um curso de Instagram online e tirei uma fotografia para publicar no Instagram.
Dia 143. Está-se
bem. Comi a última lata de atum. Haverá novidades do vírus? Os noticiários não
falam no assunto. A propósito, haverá ainda noticiários? E televisões? Há
dias que a SIC exibe uma mira técnica com o rosto do Costa Ribas.
Dia 215. Este
mês depositaram-me apenas metade do salário. Engano informático, com
certeza. Tenho de ir ver o que se passa. Mas não hoje, que um especialista
garantiu que os próximos dias serão decisivos. Onde estará o pico? Fiquem em
casa!
Dia 365. Apeteceu-me
ir à varanda, mas aqui debaixo do viaduto não há varanda. Reparei ao longe numa
família faminta, a vaguear sem declaração autenticada pela entidade
empregadora. Denunciei o bando de pelintras aos tipos do outro lado do
viaduto, ali quem passa o esgoto. Vai correr tudo bem!
COMENTÁRIOS:
Maria Nunes: Aos sábados
a primeira coisa que faço é ler a crónica de Alberto Gonçalves. Assim começo
logo o dia bem-disposta. O problema é que esta situação é dramática, e não
auguro nada de bom para este pobre país governado por incompetentes. Quero
homenagear os nossos médicos e todos os profissionais que estão na primeira
linha de combate ao vírus, e que se sacrificam tanto para tratar de quem está
doente. Obrigada.
MF A: Foi a melhor
coisa que fiz: começar o dia a ler este artigo. Obrigada!
Miguel Sanches: "Há
dias que a SIC exibe uma mira técnica com o rosto do Costa Ribas" Para
começar o dia a rir a bandeiras despregadas. Que delícia!
JB Dias: A única
parte onde o cronista exagerou foi quando assumiu que a transferência ainda era
de metade do salário... Não acordem e correm o risco de ter lido sobre o
vosso/nosso futuro!
Alberto Sousa: Parece
irónico, desproporcionado e pouco profundo? Parece! Mas cola, cada vez mais, à
realidade destes tempos... O que diríamos de 4 viaturas da Polícia municipal
todas a circular, sim, a circular, nos passeios das avenidas da Foz do Porto?
Serpenteando na direcção das pouquíssimas pessoas que faziam, isoladamente, os
não proibidos passeios de curta duração. Que estavam a cumprir a sua função? Ou
que já se começa a perder o sentido do razoável e da proporcionalidade? Com uma
mistura larvar, mas crescente, de tiques autoritários e atitudes
"bufas"... Que não se misture a defesa do bem comum com o ridículo.
Haja bom senso e ponderação.
António Costa: Alberto!!: És
o único que me compreende!
Aberdeen Fx: Genial!
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