Estados de alma
Vê-se que o Dr. Salles decididamente se
não adapta à quarentena, pois é de tristeza e saudade e unção religiosa o cariz
da sua escrita hoje. Porque é de doçura e grande beleza o soneto de Ronsard, reponho-o
na sua íntegra, o que a Internet permitiu fazer, sem esforço.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 11.04.20
Talvez sejam os eflúvios que se exalaram
do ambiente literário referido no texto anterior que me levaram hoje a
lembrar-me de algumas poesias de que sempre gostei – e isto, sabendo que nunca
fui dado a melancolias e, menos ainda, a lamechices.
Pierre de Ronsard (1524-1585)
não jantou connosco mas lembrei-me de um pequeno trecho da sua poesia Comme
on voit sur la branche
La Parque t’a tuée et cendres tu reposes.
Pour obsèques, reçois mes larmes et mes pleurs,
Ce vase plein de lait, ce panier plein de
fleurs,
Afin que, vif ou mort, ton corps ne soit que
roses.
O meu avô, Tomás
da Fonseca (1877-1968), sim,
jantou connosco. Contudo, foi mais autor de prosa política do que de poesia mas
fez uma de que gosto intitulada OS REBELDES
Eu amo a luta
E abrigo a paz no coração.
Meu credo é feito d’alma
E feito de perdão.
Vivo de bênçãos,
Como a flor vive da luz,
Pregando na montanha,
Assim como Jesus,
As delícias do amor
E a paz universal.
Baionetas para quê?
Se a baioneta é igual
À faca do assassino!
Em vez d’homens de guerra,
Camponeses lavrando
E semeando a terra…
Que eu não amo o que mata
Ao meio duma rua,
Mas o que cria um filho
Ou guia uma charrua.
E embora admire e louve
Essa mulher que foi
Ao meio de Paris
Executar um herói,
Muito mais louvo e quero
Essa mulher d’aldeia
Que vai à fonte,
Acende o lume
E faz a ceia
E abre o peito
Dando a um filho de mamar.
Corday (1) é uma tormenta,
A camponesa um lar.
Criar – eis o preceito;
Amar – eis o dever.
O nosso peito abri-lo
A todo o que o quiser:
Aos que são cegos, luz;
Aos que têm fome, pão.
Por isso é que eu abrigo
A paz no coração.
(1 )– Assassina de Marat
Por sua vez, o meu tio – António
José Branquinho da Fonseca – tem uma
extensa obra poética mas ficou catalogado como novelista. Tem ele um poemeto de
que gosto e se chama Canção da candeia acesa que, na
verdade, é uma ode à minha tia, também ela connosco à mesa até porque era a
dona da casa:
Ainda
havia luz no céu
Quando
se encostou à minha porta
A
sombra da noitinha
E
ali se adormeceu...
Mas
como é de uso na aldeia,
Costume
tão velho já,
Ao
sentir-se alguém à porta
Eu
disse-lhe: - Entre quem está...
Entrou.
Era a noite... E, então,
Eu
senti bem a tristeza
Daquela
gente que não pode
Ter
candeia acesa.
Eu
tenho-a, Senhor;
Eu
nem sei a riqueza que tenho:
Tenho
uma terra
E
também
Uma
casa
E
um rebanho...
E, além de tudo, um amor,
A quem quero e que me quer...
E que a vontade do Senhor
A faça minha mulher!
Finalmente,
uma «coisa» escrita por quem neste género é mais espaçado que bissexto para ser
lida numa daquelas sessões de Sábado à noite no Hotel dos Poetas em Paço d’Arcos cujo autor não decorou e, entretanto,
ficou sem olhos suficientes para uma leitura pública:
Olá!
Diz-me
aqui, baixinho,
Desde
quando sentes companhia
Quando os outros te vêem só.
Também
vês aquela sombra
Que
passa pelo canto do olho
E
sentes aquele murmúrio
Junto
do teu ouvido
E
que os outros não sentem?
Fala-me
Daquela
outra dimensão
Onde
estão os nossos queridos,
Esses
que por aqui vogam...
Que
sentimos por perto,
Vemos
em penumbra,
Que
amamos pelo que foram,
Que
amamos pelo fumo que são,
E
que vemos pelo coração.
Sim,
nós sabemos
Que
eles estão aí,
Que nos vêem.
Sim,
eles são os nossos anjos da guarda
E
sabem que nós sabemos.
Pois
é isso que nos conforta.
E
que venha a nós o seu reino
De
pureza e de bem.
Ámen!
E pronto, hoje fico-me por aqui
pois já vamos metricamente longos. Mas prometo amanhã ser mais pragmático.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca
O POEMA DE RONSARD (via Internet)
Comme on voit sur la branche
Pierre de Ronsard
Comme on voit
sur la branche au mois de mai la rose,
En sa belle jeunesse, en sa première fleur,
Rendre le ciel jaloux de sa vive couleur,
Quand l’Aube de ses pleurs au point du jour l’arrose;
En sa belle jeunesse, en sa première fleur,
Rendre le ciel jaloux de sa vive couleur,
Quand l’Aube de ses pleurs au point du jour l’arrose;
La grâce dans sa feuille, et l’amour se repose,
Embaumant les jardins et les arbres d’odeur;
Mais battue, ou de pluie, ou d’excessive ardeur,
Languissante elle meurt, feuille à feuille déclose.
Ainsi en ta
première et jeune nouveauté,
Quand la terre et le ciel honoraient ta beauté,
La Parque t’a tuée, et cendres tu reposes.
Quand la terre et le ciel honoraient ta beauté,
La Parque t’a tuée, et cendres tu reposes.
Pour obsèques
reçois mes larmes et mes pleurs,
Ce vase plein de lait, ce panier plein de fleurs,
Afin que vif et mort, ton corps ne soit que roses.
Ce vase plein de lait, ce panier plein de fleurs,
Afin que vif et mort, ton corps ne soit que roses.
Pierre de Ronsard,
Amours, 1560
Nenhum comentário:
Postar um comentário