domingo, 12 de abril de 2020

Estados de alma


Estados de alma
Vê-se que o Dr. Salles decididamente se não adapta à quarentena, pois é de tristeza e saudade e unção religiosa o cariz da sua escrita hoje. Porque é de doçura e grande beleza o soneto de Ronsard, reponho-o na sua íntegra, o que a Internet permitiu fazer, sem esforço.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 11.04.20
Talvez sejam os eflúvios que se exalaram do ambiente literário referido no texto anterior que me levaram hoje a lembrar-me de algumas poesias de que sempre gostei – e isto, sabendo que nunca fui dado a melancolias e, menos ainda, a lamechices.
Pierre de Ronsard (1524-1585) não jantou connosco mas lembrei-me de um pequeno trecho da sua poesia Comme on voit sur la branche
La Parque t’a tuée et cendres tu reposes.
Pour obsèques, reçois mes larmes et mes pleurs,
Ce vase plein de lait, ce panier plein de fleurs,
Afin que, vif ou mort, ton corps ne soit que roses.

O meu avô, Tomás da Fonseca (1877-1968), sim, jantou connosco. Contudo, foi mais autor de prosa política do que de poesia mas fez uma de que gosto intitulada OS REBELDES
Eu amo a luta
E abrigo a paz no coração.
Meu credo é feito d’alma
E feito de perdão.
Vivo de bênçãos,
Como a flor vive da luz,
Pregando na montanha,
Assim como Jesus,
As delícias do amor
E a paz universal.
Baionetas para quê?
Se a baioneta é igual
À faca do assassino!
Em vez d’homens de guerra,
Camponeses lavrando
E semeando a terra…
Que eu não amo o que mata
Ao meio duma rua,
Mas o que cria um filho
Ou guia uma charrua.
E embora admire e louve
Essa mulher que foi
Ao meio de Paris
Executar um herói,
Muito mais louvo e quero
Essa mulher d’aldeia
Que vai à fonte,
Acende o lume
E faz a ceia
E abre o peito
Dando a um filho de mamar.
Corday (1) é uma tormenta,
A camponesa um lar.
Criar – eis o preceito;
Amar – eis o dever.
O nosso peito abri-lo
A todo o que o quiser:
Aos que são cegos, luz;
Aos que têm fome, pão.
Por isso é que eu abrigo
A paz no coração.
(1 )– Assassina de Marat

Por sua vez, o meu tio – António José Branquinho da Fonseca – tem uma extensa obra poética mas ficou catalogado como novelista. Tem ele um poemeto de que gosto e se chama Canção da candeia acesa que, na verdade, é uma ode à minha tia, também ela connosco à mesa até porque era a dona da casa:
Ainda havia luz no céu
Quando se encostou à minha porta
A sombra da noitinha
E ali se adormeceu...

Mas como é de uso na aldeia,
Costume tão velho já,
Ao sentir-se alguém à porta
Eu disse-lhe: - Entre quem está...

Entrou. Era a noite... E, então,
Eu senti bem a tristeza
Daquela gente que não pode
Ter candeia acesa.

Eu tenho-a, Senhor;
Eu nem sei a riqueza que tenho:
Tenho uma terra
E também
Uma casa
E um rebanho...

E, além de tudo, um amor,
A quem quero e que me quer...
E que a vontade do Senhor
A faça minha mulher!

Finalmente, uma «coisa» escrita por quem neste género é mais espaçado que bissexto para ser lida numa daquelas sessões de Sábado à noite no Hotel dos Poetas em Paço d’Arcos cujo autor não decorou e, entretanto, ficou sem olhos suficientes para uma leitura pública:
Olá!
Diz-me aqui, baixinho,
Desde quando sentes companhia
Quando os outros te vêem só.
Também vês aquela sombra
Que passa pelo canto do olho
E sentes aquele murmúrio
Junto do teu ouvido
E que os outros não sentem?
Fala-me
Daquela outra dimensão
Onde estão os nossos queridos,
Esses que por aqui vogam...
Que sentimos por perto,
Vemos em penumbra,
Que amamos pelo que foram,
Que amamos pelo fumo que são,
E que vemos pelo coração.
Sim, nós sabemos
Que eles estão aí,
Que nos vêem.
Sim, eles são os nossos anjos da guarda
E sabem que nós sabemos.
Pois é isso que nos conforta.
E que venha a nós o seu reino
De pureza e de bem.
Ámen!

E pronto, hoje fico-me por aqui pois já vamos metricamente longos. Mas prometo amanhã ser mais pragmático.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca

O POEMA DE RONSARD (via Internet)
Comme on voit sur la branche
Pierre de Ronsard

Comme on voit sur la branche au mois de mai la rose,
En sa belle jeunesse, en sa première fleur,
Rendre le ciel jaloux de sa vive couleur,
Quand l’Aube de ses pleurs au point du jour l’arrose;

La grâce dans sa feuille, et l’amour se repose,
Embaumant les jardins et les arbres d’odeur;
Mais battue, ou de pluie, ou d’excessive ardeur,
Languissante elle meurt, feuille à feuille déclose.

Ainsi en ta première et jeune nouveauté,
Quand la terre et le ciel honoraient ta beauté,
La Parque t’a tuée, et cendres tu reposes.

Pour obsèques reçois mes larmes et mes pleurs,
Ce vase plein de lait, ce panier plein de fleurs,
Afin que vif et mort, ton corps ne soit que roses.

Pierre de Ronsard, Amours, 1560


Nenhum comentário: