Uma pesquisa jornalística, feita com
extrema sensibilidade e argúcia por Helena
Matos, centrada em epidemias por cá, que tiveram a ver com falta de
condições higiénicas – a de 1971 convenientemente tratada por equipas
sanitárias, a de 1974 menos contundentemente, por se viver então numa fase de
preferencial publicidade às canções da Gaivota e da Grândola definidoras de uma
liberdade estupefaciente que se defendeu e se obteve até que um coronavírus nos
veio alertar para a necessária moderação nas questões libertadoras, que os
governos eficientemente impõem. Uma peça excelente de bom jornalismo.
Abrilês/premium
Em Abril de 1974 a ideologia
determinou que não se combatesse a epidemia de cólera. Em 2020 a ideologia
determina que não há austeridade. É o abrilês, o regime em que as palavras
vencem a realidade.
24 de Abril. 22h55m Os Emissores
Associados de Lisboa transmitem a canção “E depois do Adeus”, interpretada por
Paulo de Carvalho. É a senha que dá o início às operações militares contra o
regime.
Neste
dia 24 de Abril de 1974 foi detectado um caso de cólera em Tavira.
Já
Maio de 74 ia na sua terceira semana quando a cólera consegue finalmente
afirmar-se entre os títulos. Não propriamente os de maior destaque mas apesar
de tudo títulos. Fica assim a saber-se que a 20 de Maio estavam internadas no
Hospital Curry Cabral, em Lisboa, por suspeitas de cólera doze pessoas. Cinco
desses pacientes vinham do Algarve; as moradas dos outros sete desenhavam uma
espécie de mapa dos bairros de lata que então cresciam em torno da capital:
Odivelas, Paiã, Nova Oeiras, Amadora e Musgueira.
No
dia seguinte, 21 de Maio, entravam mais onze doentes no Curry Cabral. No
total, a 21 de Maio, já estão internados em Lisboa 23 suspeitos de terem
contraído cólera. As delegações de saúde emitem comunicados apelando à
fervura do leite e a que não se comam bolos com creme nem gelados. Recomenda-se
também que não se tome banho em rios ou praias que tenham nas proximidades
descargas de esgotos. No topo de todos os conselhos estava o apelo para que só
se consumisse água da rede ou engarrafada. Para aqueles que se abasteciam em
poços e chafarizes apelava-se a que fervessem a água antes de a consumir. Um
mês depois do 25 de Abril, a cólera espalha-se por Portugal – chega aos
distritos de Beja, Setúbal, Aveiro e Braga – e deixa o seu rasto de vítimas.
Por outras palavras, o regime mudara mas obviamente nada mudara no acesso
dos portugueses a esgotos e água tratada. Ou mais exactamente na falta de
acesso a esgotos e água tratada.
E o
que fazia o país para combater a cólera que chegara um dia antes do golpe
do 25 de Abril e progredia durante o Verão? Pouco para não dizer quase nada:
além do tratamento aos doentes internados e dos apelos para que se consumisse
água fervida, as autoridades pouco fazem para travar a doença.
A explicação para esta passividade está não na falta de meios nem
muito menos de competência. Os técnicos da DGS não só sabem como se pode
combater o novo surto de cólera como têm experiência recente e bem sucedida de
o fazer: em 1971, perante o aparecimento de
cólera num bairro de barracas na zona do estaleiro da Margueira, dez equipas
sanitárias distribuíram 360 mil comprimidos para combater a cólera nos bairros
de lata que então rodeavam Lisboa e nos concelhos vizinhos, incluindo a margem
sul. Os
fabricantes e vendedores de alimentos, trabalhadores de hotéis e dos
restaurantes foram também vacinados e obrigados a tomar medicação. No total
foram monitorizadas 150.000 pessoas pelas equipas médico-sanitárias. O surto
foi declarado extinto a 25 de Novembro de 1971. Foram registados 89 casos de
cólera. Morreram duas pessoas.
Em
resumo, em 1971, perante a cólera, actuou-se de forma massiva numa operação
controlada pelos técnicos de saúde. Porque não se repetiram então estes
procedimentos em 1974? Para mais o surto de cólera de 1974 tinha logo à partida
condições para ser muito mais grave do que o de 1971, pois começou muito mais
cedo, em Abril, e não em Setembro como acontecera em 1971. Por que esperam as autoridades? Na verdade não é
uma questão de espera mas sim de impasse entre aqueles que defendiam que a
cólera era uma doença dos pobres, e que a sua abordagem devia ser social, e os
técnicos de saúde que defendiam que enquanto essas respostas não estivessem no
terreno havia que actuar sanitariamente, replicando o modelo de combate de
1971.
A
somar a este enquadramento há que ter em conta que, ao contrário do que
acontecia em 1971, a saúde não tem no pós 25 de Abril de 1974 uma pasta
ministerial. Tornara-se apenas uma secretaria
de Estado integrada no Ministério dos Assuntos Sociais.
A
situação política do país tornara Portugal em 1974 um excelente caldo de
cultura para a propagação da cólera: esta expande-se sem que se lhe faça frente
para Faro, Setúbal, Beja, Portalegre, Lisboa, Santarém, Torres Vedras, Aveiro,
Porto e Braga.
No
final de Agosto, o país fica a saber que o ministro dos Negócios Estrangeiros,
Mário Soares, assinara em Argel uma declaração em que se estabelecia o próximo
dia 10 de Setembro como a data para o reconhecimento da independência da
Guiné-Bissau e o PAIGC como único representante legítimo do novo país (a esta
institucionalização de um regime de partido único chamou-se libertação). E fica
a saber também que já se contam mil casos de cólera no país.
A
DGS anuncia então a distribuição de 15 mil litros de lexívia a partir de 2 de
Setembro: duas gotas para cada litro de água quando esta se destine a ser
bebida, utilizada em lavagens corporais ou para cozer alimentos; dez gotas para
cada litro de água quando sirva para lavar legumes e outros produtos
alimentares. São administrados antibióticos e vacinas a quem entrou em contacto
com os doentes e a grupos de risco.
O
surto de cólera de 1974 chegaria ao fim com o frio do Outono: em Outubro foi
dado como extinto. Foram registados 2371 casos de cólera. Morreram 41 pessoas.
Porquê
recordar agora estas 41 pessoas?
Em primeiro lugar para lembrar que a ideologia cega: estas mortes que na sua maioria poderiam ter sido
evitadas, resultaram de uma abordagem ideológica da epidemia. Simplesmente,
como essa abordagem ideológica estava do lado bom da História todo este
episódio foi mais ou menos esquecido. Já se sabe que em Portugal à ideologia de
esquerda, para os devidos e políticos efeitos adereçada de Abril, começou por
se perdoar tudo para em seguida se esquecer até que algo haveria a perdoar. E sobretudo este caso como tantos outros não são
apenas capítulos fechados da nossa História: a premissa de que a determinados
sectores da sociedade é esquecido o que para outros é crime imperdoável não só
se manteve como cresceu nos últimos anos: quando é que imaginámos possível ter
na DGS alguém com o desempenho errático da dra. Graça Freitas? Pois é, o que
até há pouco nos revoltaria agora é banal, como uma anedota.
Quando supusemos que aceitaríamos
com conformação ouvir o primeiro-ministro repetir que não vai haver austeridade
(e o presidente da AR e os jornalistas-activistas garantirem que não senhor,
não vai haver austeridade) quando a austeridade já está aí na vida de quem
perdeu o emprego, só recebe uma parte do ordenado, não sabe como vai pagar os
ordenados do próximo mês… ou espera por uma refeição nessas filas dos novos
invisíveis?… A austeridade já cá está.
Em
Novembro de 1975, entre choros e gritos de que Abril a estava a ser traído,
Portugal mandava os militares para os quartéis e despedia-se dos golpes militares. O nosso futuro, acreditava-se, ia decidir-se
nas urnas e no debate político. Quarenta
e cinco anos depois somos um sociedade sem debate, onde o estatismo-socialista
é a ideologia possível e as mudanças são impostas por factores externos: as crises e o seu cortejo de emergências determinam
agora os tempos como outrora o faziam os golpistas (e note-se que ao longo do
século XX tivemos golpes para quase todos os meses do ano). Sem crise
não há mudança mas com crise tudo é possível. Sobretudo é possível, tal como
está acontecer com esta crise do Covid-19, que no tropel dos acontecimentos
tudo se banalize e nada se pergunte. Afinal nada de muito diferente do
que aconteceu aos portugueses no Verão de 1974, quando as autoridades, enquanto
cantavam loas ao povo “que mais ordena”, ficaram a ver progredir uma epidemia
que matava. O
povo, obviamente.
PS. Dado o entusiasmo jornalístico com o apelo do BE
para que se cantasse a “Grândola” à janela é de temer que para o próximo ano o
PCP não fique atrás e apele a que cantemos “Uma gaivota voava, voava”.
Provavelmente o silêncio imperará como imperou este ano mas como o seguro
morreu de velho, venho desde já avisar que uma coisa é meia dúzia de colunas de
som a debitar a Grândola – Zeca Afonso tem uma óptima voz e a canção não sendo
das melhores que fez sempre vale a pena – outra bem diferente é voltarmos a ouvir
aquele “Uma gaivota voava, voava”. Uma geração não
aguenta isto duas vezes!
COMENTÁRIOS:
Carlos Grosso: Obrigado.
Carlinhos dos Rissóis: Grândola
é
talvez o reflexo mais elucidativo e emblemático do desastre saído da abrilada. É
hoje uma vila fantasmagórica, deserta, abandonada, com meia dúzia de velhotes
esperando que a morte os leve. Assim está de um modo geral Portugal.
Ernesto Sousa: Não sei, mas
há aqui alguma intenção de ideologizar as questões da saúde. Está bem, Michel
Foucault inventou a biopolítica e falou do biopoder, vigiar e punir, dizia.
Estamos a caminho. Mas neste artigo, Helena descreveu bem a crise de cólera
de 1971, sim, dois mortos. E sabe a Helena quem coordenou na DGS a epidemia?
Nada menos que Arnaldo Sampaio,
nascido em Guimarães, licenciado no Porto, Master na Johns Hopkins, estudou na
Escola de Saúde Pública de Harvard, organizou
em 1965 o primeiro verdadeiro plano de vacinação em Portugal. Liderou essa gripe de 71 e em 1972 tornou-se
director-geral da saúde, cargo que manteve até 1978. Portanto, também foi ele
que assumiu o combate à crise de 1974 em que morreram 41 portugueses. Sim, os tempos eram conturbados, a prioridade
era resolver o problema de meio milhão de compatriotas que viviam em África,
julgando que nada mudara. O país estava na rua e as condições de higiene eram
dignas do terceiro mundo, foram tempos complicados, mas acabámos por resistir.
É provável que o dr. Arnaldo Sampaio se visse atrapalhado com o orçamento da
DGS, é provável que tenha tido muitas dores de cabeça com os governos
provisórios, mas é garantido que não fora ele estar no seu posto, conhecer a
máquina dos serviços e ser credor de uma verdadeira fidelidade dos funcionários
de então e a situação teria sido muito mais dramática. Um pormenor que não é
despiciendo, o dr. Arnaldo Sampaio, como sabe, era o pai do dr.
Jorge Sampaio que viria ser Presidente da República.
Ricardo Pinheiro Alves: Na realidade
quem fez o apelo para que se cantasse o Grândola foi Jerónimo de Sousa. O BE
limitou-se a imitar. Mas o jornalismo português é tão reles que só apoia os
comunistas de segunda.
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