quinta-feira, 30 de abril de 2020

Um texto pacífico, não passivo



A mim parece muito inteligentemente concebido, com clareza e racionalidade, próprias de uma personagem bem lúcida do nosso tablado político, mas provocou só reacções virulentas entre os seus comentadores, o que me espantou. A sua férula justiceira pareceu-me mais preocupada em elucidar (com ironia, é certo), do que em castigar, no desejo sério de construir um mundo mais verdadeiro, não entregue às peias do obscurantismo e da inveja. Não conseguiu.
OPINIÃO CORONAVÍRUS: O vírus e o regresso dos pavlovianos de serviço
É vê-los por aí a atacar a globalização capitalista, a destruição dos perfeitos equilíbrios naturais ou a perniciosa opção pela desvalorização das fronteiras civilizacionais, étnicas ou nacionais.
          PÚBLICO, 4 de Abril de 2020
1.Como grande parte dos portugueses divido estes dias de reclusão forçada entre a descoberta do teletrabalho, no meu caso materializado na realidade das aulas à distância, e inesperados encontros com leituras improváveis. Um misto de acaso e necessidade, fruto de uma inevitável indagação sobre a repercussão histórica das epidemias, conduziu-me à leitura de uma curiosa obra de um autor não menos singular. A obra intitula-se O Concílio do Amor e é da autoria de Oskar Panizza.
Panizza, que viveu entre 1853 e 1921, foi um médico psiquiatra e um homem de letras alemão que teve uma vida bastante rocambolesca, que terminou, aliás, num hospício de loucos em Bayreuth. Viajou pela Europa, produziu uma obra poética e escreveu o texto dramatúrgico acima referido. O Concílio do Amor valeu-lhe um ano de prisão e uma ampla marginalização social para toda a vida. Até o grande Thomas Mann foi pequeno para com ele.
N’O Concílio do Amor a acção decorre no ano de 1495 e desenrola-se entre o Céu, o Inferno e a corte do Papa Alexandre VI, um membro da família Bórgia. O tema da obra é a propagação da sífilis, doença hedionda, também conhecida à época como o “mal francês” ou o “mal de Nápoles”. O enredo consiste no seguinte: Deus, a Virgem Maria e Jesus Cristo, informados do carácter licencioso e obsceno que prevalecia na vida terrena e adquiria desenfreadas manifestações em Nápoles e na cúria romana, decidiram recorrer ao auxílio do Diabo com a intenção de promover o castigo e a redenção dos seres humanos. Este, recorrendo à sua ardilosa imaginação, criou uma nova doença de natureza epidémica, a sífilis, destinada a ser propagada através da figura de uma mulher, a bela e pecaminosa Salomé. O Papa, os cardeais da cúria, as altas figuras da Igreja, foram os primeiros a sofrer os efeitos desta contaminação. A doença era terrível. Quem dela padecia passava por vários estados, num processo de degradação física e psíquica que acabava por conduzir à morte. Ao longo de tão tétrico padecimento, que durava anos, os seres humanos iam mudando de atitude em relação à vida, ao mundo, aos outros e a si próprios. Seria esse o penoso e o mórbido caminho da redenção.
Panizza foi tratado como um celerado e violentamente atacado pelas autoridades civis e eclesiásticas do seu tempo. Estes ataques tiveram mais que ver com a forma burlesca e iconoclasta como ele se referiu a aspectos sensíveis do mundo católico do que com a ideia de que a sífilis representava um castigo imposto por Deus aos homens. Aliás, o génio de Panizza consiste em ele ter associado essas duas dimensões – a representação do burlesco e a noção de uma causalidade de origem divina na manifestação de uma doença com características epidémicas que afligia e aterrorizava a humanidade naquela época.
Agora os tempos são outros e um hipotético Panizza contemporâneo teria de alterar o cenário e os protagonistas do seu enredo sem que, contudo, se visse obrigado a prescindir da substância da sua obra dramatúrgica. Basta observar a forma como alguns sectores ideológicos e políticos têm reagido à pandemia que presentemente nos aflige. Perante um acontecimento que pela sua magnitude questiona radicalmente a Humanidade há quem, em lugar de optar pela reflexão dubitativa, recorra à mais simples das reacções: a do reflexo condicionado. Para estes pavlovianos tudo tem sempre uma explicação simples, obediente a uma causalidade sistémica predeterminada. Um vírus, a queda de um meteorito, uma erupção vulcânica - ou até a inesperada chegada de extraterrestres - mais não serão do que a consequência de uma imensa falha humana, que tanto pode ser identificada com o capitalismo como com produtivismo anti-ecológico ou com o cosmopolitismo antinacionalista.
Estamos perante a versão contemporânea dos velhos castigos divinos. Esses castigos procuravam introduzir uma certa racionalidade no Universo, já que buscavam encontrar uma explicação justa para o mal. Essa explicação remetia inevitavelmente para uma noção muito presente na nossa cultura judaico-cristã: a noção de culpa. É a essa noção que recorrem agora os nossos pavlovianos de serviço. É vê-los por aí a atacar a globalização capitalista, a destruição dos perfeitos equilíbrios naturais ou a perniciosa opção pela desvalorização das fronteiras civilizacionais, étnicas ou nacionais. Os extremistas acabam sempre por se encontrar.
O que tudo isto revela é que todos quantos estão prisioneiros de uma representação excessivamente sistémica da realidade se revelam incapazes de pensar e de entender os acontecimentos portadores de um elevado grau de singularidade. Estão por isso condenados à perpétua repetição de uma ladainha que os impede de compreender o presente e de imaginar o futuro.
2.Morreu há dias Júlio Miranda Calha. Era um homem inteligente e culto, um conhecedor profundo dos temas internacionais, em particular dos relacionados com a política de segurança e defesa que dominava como quase ninguém. Deputado desde a Assembleia Constituinte foi um dos construtores da democracia representativa portuguesa. Foi sempre um homem livre, empenhado na afirmação dos melhores valores da ocidentalidade. Durante anos convivi com ele na Assembleia da República. Desses anos recordo o companheiro de lutas, o homem intelectual e espiritualmente próximo, o amigo. Sentirei muito a ausência da sua voz.    Militante do PS
COMENTÁRIOS:
filipeluis.marques: EXPERIENTE: Muito provavelmente a auto crítica. 04.04.2020
Magritte EXPERIENTE: A admiração não é a do pavlovianismo: é o facto de a explicação continuar a funcionar, pese embora essa vitória estrondosa do capitalismo. Que um socialista, aliás um militante do PS, se tenha rendido ao sistema capitalista, à sua expansão globalizante, não admira nada. Que o PS não tenha uma única proposta alternativa ao sistema mostra bem quem é o seu mestre e os bolsos de quem o comprou. Com apoiantes como Assis, Ana Gomes pode pouco: uma das poucas socialistas que ainda se incomoda com a imoralidade dos offshores. A Assis se calhar nem a especulação ou a competição catastrófica por material de saúde admiram: é o mercado, ora pois. 04.04.2020
Eduardo Guevara.885833 INICIANTE: Na verdade, todos salivamos mas por coisas diferentes. Uns por dinheiro e poder, pelo perpetuar do mecanismo que lhes permite manter a sensação de pertença a uma qualquer "elite", moral, intelectual ou financeira. Outros salivam por justiça. 04.04.2020       Magritte EXPERIENTE: Salivamos todos por poder: capacidade de influenciar os outros. Uns preferem dinheiros, outros fama ou carisma, outros acesso ao poder público, outros também justiça e moral. Tem toda a razão. 04.04.2020
publico1234567 INICIANTE: "Salivamos todos por poder" - Fale por si... e pelo autor, se quiser! 04.04.2020
Magritte EXPERIENTE: Nem que seja pelo poder de dizer que não queremos nada com ele. E fazermo-nos sentir melhor connosco próprios. 04.04.2020
viana EXPERIENTE: "O que tudo isto revela é que todos quantos estão prisioneiros de uma representação excessivamente sistémica da realidade se revelam incapazes de pensar e de entender os acontecimentos portadores de um elevado grau de singularidade." Nunca teria imaginado o Francisco Assis a elogiar a ignorância. Pois na prática o que ele está a fazer é a desvalorizar a capacidade de interpretar a realidade de modo amplo e sistémico, independentemente de estar correcta! Talvez decorra da sua incapacidade de compreender certos fenómenos. Então, perante a sua incapacidade de pensar sistemicamente trata de denegrir quem o faz. Quer-nos cegos perante o futuro, tacteando dum dia para o outro à procura dum caminho. Mas caminhar no escuro é receita garantida para muitos desastres... 04.04.2020
nelsonfari EXPERIENTE: O que lhe fazia bem, caro senhor, era ler o artigo de José Reis de há alguns dias - explica que este mundo é um claro pretérito imperfeito e que, em vez destas vulnerabilidades que acabaram com o seu reino, aparecerão certamente outras, mas a vida e os humanos não são perfeitos e haverá tempo e espaço para criar novas sínteses, após a criação de teses e antíteses. É esta a dialéctica humana. E, caro senhor, um servidor da classe política que, obviamente, reparte em si os "dividendos" desta louca corrida humana iniciada sob os auspícios de Milton Friedman e concretizada por Reagan. Thatcher, Clinton, Blair, Bush, Chirac e outros. E os peões, deputados e quejandos que obtiveram proveitos e boas vidas. O mundo não se reconhece. O vírus é o sinal dos tempos. Jogar xadrez com a morte? Só em Bergman. 04.04.2020  O que o torna tão extraordinário, caro senhor, para se arrogar a chamar cão salivador de Pavlov a quem discorda de si e do seu vencido quadro teórico de referência? Que mundo do seu tem para oferecer? Constata-se o que fez, caro senhor, em trinta anos de actividade política: ajudou a criar um mundo desigual. Custava-me ver a infrutífera actividade dos deputados europeus que, às sextas-feiras, retornavam à "terra", despejados pelos aviões, com um vazio para oferecer, vazio esse corporizado no não holandês às vítimas do vírus em Itália e em Espanha. A Holanda só está disponível para mostrar solidariedade com as empresas que demandam as suas vantagens fiscais, de que é exemplo o distribuidor Pingo Doce. Afinal, quem é o cão salivador? 04.04.2020
publico1234567 INICIANTE: Dá-lhe, nelsonfari! Devias era facultar o link do artigo de José Reis que explica que este mundo é um claro pretérito imperfeito.;) 04.04.2020

António Cunha MODERADOR: Muito bem, NelsonFari! Assis quase vive de esmola do PS. Está encostado ao seu canto, com o seu umbigo. Fala, fala, mas ninguém liga. 05.04.2020 


Nenhum comentário: