terça-feira, 14 de abril de 2020

As conversas são como as cerejas



A minha irmã deve ser das pessoas bem instaladas na vida que não tem computador. Aliás, já teve, mas ofereceu-o a um neto pois embirrou com o dito cujo, e tem razão nisso, porque para se trabalhar num computador com conhecimento de causa é necessário todo um aprendizado, com a retórica terminológica adequada, que as pessoas da nossa idade se recusam a aprender se forem desmemoriadas como eu, que muitas vezes ando à roda, não “de ma chambre” - como o tal Xavier de Maistre da inspiração de Garrett para justificar as suas “Viagens na minha Terra” de mais amplo espaço, embora também limitado no seu percurso material – mas autour d’un mot, n’importe lequel, que às vezes mesmo se limita ao nome de um utensílio ou um legume dos meus usos culinários, irreverentemente desaparecidos das minhas células cinzentas esbatidas. Mas porque a minha irmã não tem computador - embora já possua um smartphone de amplo alcance de leitura, fotografias e viagens aos confins dos mundos (o meu, por contraste, serve apenas para atender e enviar telefonemas, pois que isso me basta para os meus contactos diários) – tiro escrupulosamente cópias dos textos do meu blog para lhos dar a ler, como sempre aconteceu através do meu percurso escrevinhador, desde que comecei a fazê-lo, na “Página da Mulher” do Jornal Notícias de Lourenço Marques, nos tempos aprazíveis em que as tais células cinzentas mantinham a sua cor na íntegra. Todos os domingos lhe levo a carga dos meus textos, apoiados nos textos alheios de que gosto e me fazem ultrapassar esta tal clausura sem nexo, que faz que se riam de todos os que verdadeiramente mereciam aí figurar com nexo. Telefonei-lhe há pouco e a minha irmã uma vez mais me falou do genial Alberto Gonçalves que, tenho a certeza, figurará na letras pátrias com o seu dom caricatural de síntese, que esquadrinha, com bisturi certeiro, os recônditos da alma portuguesa e nos faz rir, com lágrimas de dor, é certo. Mas falou também de Salles da Fonseca, que aprecia, na graça simples do seu discurso também certeiro e vivo, e nem de propósito, o último texto aí estava, desta vez justificativo não de uma “Art Poétique”, mas de uma “Arte Prosística”, a sua, sem rodriguinhos e de frase curta e discurso chão. Enfiei o meu barrete, pois às vezes ando à roda, não em tiradas retóricas, mas em afluência de dados de quem se diverte e se não importa de acrescentar dados sobre dados, terra sobre terra, (e agora refiro a tirada do Anjo à vaidosa Alma vicentina – “Pondes terra sobre terra, que esses ouros terra são”), numa de empréstimo, afinal, que as palavras, que são elas senão empréstimo, cerejas que se comem , outrora cuspindo o caroço, hoje, mais cuidadosos, guardando-os no contentor?
Mas este texto de Salles da Fonseca também ela vai gostar de ler, e fico contente por isso.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 14.04.20
À pergunta do porquê escrever curto, respondo que o faço por várias razões sendo que a primeira tem a ver com o facto de escrever para gente culta e inteligente e, daí, não serem necessários muitos prolegómenos. Se a isso somarmos o estilo enxuto que cultivo com perda para os adjectivos, resultam textos curtos. Mas também escrevo curto para não dar largas à ignorância – definir parâmetros gerais e quem quiser que se dedique aos pormenores e às excepções. Não gosto de repisar um mesmo tema até à náusea; há mais temas à espera de serem abordados.
Escrevo curto porque faço frases curtas, apenas com sujeito, predicado e complemento directo, raramente com um complemento indirecto e, aí, sim, com alguns parêntesis ou travessões. Mas estes são isso mesmo, apêndices que não pertencem propriamente à frase. Podia transformá-los em notas de pé de página mas já estou a imaginar os leitores a blasfemar por terem que desviar a atenção para o fim da página ou, pior, para o fim do texto.
É fácil escrever curto: basta saber exactamente o que se quer dizer e, sobretudo, antes de pegar na caneta ou de atirar os dedos para cima do teclado, saber como acaba a história. Isso permite ir direito ao objectivo final em vez de andar a vaguear sem rumo ao longo das páginas e da paciência do leitor.
Escrevo curto porque os meus leitores têm muito mais que fazer do que perderem tempo com floreados literários.
Finalmente, escrevo curto porque concedo a Immanuel Kant o monopólio de meter cinquenta ideias numa só frase e assim se tornar ilegível por gente normal.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca


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