domingo, 19 de abril de 2020

Um pouco dessa música



Que a Internet nos descobre. Pacheco Pereira traz-nos as suas memórias. Seguindo-lhe o rasto, procurámos na Internet exemplos dessa poesia musical, feita de conceitos rebuscados e de sofrimentos contidos. Poemas de Eugénio de Andrade, alguns dos quais citados nas antologias escolares.
OPINIÃO: A música venceu Salvatore Quasimodo
Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 18 de Abril de 2020
Penso que já contei esta história, mas em tempos de peste ouve-se às vezes melhor lá fora do que cá dentro. Algum pássaro a transportará passando por cima do cavaleiro do apocalipse que nos assalta hoje.
Entre o Ostinato Rigore publicado em 1964 e o Obscuro Domínio de 1971, Eugénio de Andrade escreveu muito pouca poesia. Traduziu e editou poetas e preparou várias antologias de prosa para a Inova, a sua editora nos últimos anos de ditadura. Foram também os anos em que o nosso convívio foi mais intenso, partilhado pela Rosa, o José Rodrigues, o Ângelo de Sousa, o Manuel Dias da Fonseca, o Jorge Peixinho e, numa visita memorável e esporádica, pelo Jorge de Sena. Essa visita merece ser contada, mas fica para depois.
O Eugénio estava com aquilo que hoje se chama writer’s block, uma sinistra expressão para um poeta, ou seja, estava com uma crise de escrita. Recordo-me de uma longa conversa com o Eugénio sobre isso que começou na Rua de Palmela, 111, em que no andar de baixo vivia a Rosa e no de cima o Eugénio. Era uma casa bastante modesta e muito pequena, cozinha, sala partilhada entre uma mesa em que escrevia junto à janela e também comia, e uma pequena sala de estar, uma dispensa cheia de livros, e um longo corredor para o quarto de banho e o quarto do lado oposto da casa, virado para as árvores da rua. Os passeios nocturnos começavam muitas vezes aí e tinham uma paragem obrigatória no Café S. Lázaro, junto da Biblioteca Municipal e de um dos mais belos jardins românticos do Porto.
Nesse dia, saímos do Café bastante cedo e seguimos em direcção à Ribeira pela Rua de S. António (que a ditadura impediu que se chamasse 31 de Janeiro), depois pela Rua Mouzinho da Silveira, até ao rio e depois ao longo do rio. Era uma daquelas conversas que incluem muitos silêncios que não incomodavam ninguém, pela sua naturalidade. (Outro poeta que tinha também essa capacidade de silêncio como parte da conversa era o Vasco Graça Moura.) Eugénio dizia que já não conseguia escrever poesia, as suas palavras nos poemas tinham atingido um estado de depuração e contenção, que não conseguia ultrapassar essa forma exígua e contida. Dava o exemplo de Salvatore Quasimodo e dos seus poemas como também tendo chegado a uma forma tão condensada de escrita, “como uma pedra”. Não se podia passar dali. A conversa e o passeio terminou num pequeno estaleiro que havia à beira-rio. Era uma noite escura e os barcos tinham uma sombra sinistra, embora a noite fosse amena. Saídos da Ribeira havia muito pouca gente na rua, a não ser alguns pescadores. Para quem conhece o Porto, sabe que o passeio foi muito longo, e o regresso duplicou-o.
Ofereci então ao Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn e ele comprou um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo.
Lembrei-me então da música e sabia que o Eugénio ouvia muito pouca música em casa. Não era por falta de referências musicais nos seus poemas, nem pelo convívio semanal com a tertúlia do Manuel Dias da Fonseca em Matosinhos, nem sequer quando Jorge Peixinho e Clotilde Rosa irromperam neste círculo de amizades. Mas o Eugénio era em grande parte um autodidacta, “feito” não só pelo seu génio poético, mas também pelo convívio que desde Coimbra, e ainda mais no Porto, tinha com muita gente da arte, da música, do teatro, da cultura em sentido lato. Era também um grande e selectivo leitor, cujos livros estavam cheios de sublinhados e pontuações, traduzindo o impacto que alguns textos tinham nele. E “feito” também pelas suas paixões, num tempo em que eram proibidas e perseguidas.
Eu tinha muito poucos discos, que eram caros, e ia muitas vezes ouvir música a pretexto de comprar discos numa loja na Rua de S. António. Tinha feito, no Liceu Alexandre Herculano e depois no Rainha S. Isabel, umas sessões de comentário a músicas e estudara piano e composição, embora mais tarde tivesse interrompido as aulas. Ofereci então ao Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn, e ele comprou um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo. Comprava e ouvia essencialmente música de câmara, Haydn, Beethoven, Mozart, e os ciclos de canções de Schubert, Wagner, Strauss. Gostava de Mahler, mas passava pouco daí. Tinha um disco de música electrónica com um poema de Henri Michaux, que o Jorge Peixinho lhe tinha dado, e que ele me fez ouvir, mas era o poema que lhe interessava e não a música.
Mais tarde reconheceu que fora pela música que começara de novo a escrever, e é possível encontrar nalguns poemas posteriores referência muito mais precisas a peças musicais. A música vencera Salvatore Quasimodo. Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas. Como nesta página não entra a covid-19, para a semana há mais.
Historiador
COMENTÁRIOS
FPS INFLUENTE: Não sou um leitor de poesia e de poesia limito-me, e preenche-me, a ler Fernando Pessoa, que é tão grande e tão grande que deixa pouco espaço aos outros (é a minha opinião... Pessoa não dá espaço para mais ninguém). E é um pouco como na música: como Pacheco Pereira, quanto me emocionava (anos 70...) comprar um LP, limpá-lo e pô-lo no prato do pick-up e ouvir Wilhen Backauss tocar o 4º concerto de Beethoven, que hoje não suporto ouvir. Como os nossos gostos se mudam e como nos vamos acercando dos maiores e exigindo o melhor. Hoje, pelo PC oiço a obra que quero na interpretação de que mais gosto. É fantástico. Ainda há pouco, de manhã, ouvi a 9ª ("a grande") de Schubert interpretada, mesmo em grande, por um Sawallicsh que faz favor! Vou ao Youtube e oiço o Bach quase de fio a pavio. Brutal! 18.04.2020
Espectro EXPERIENTE: Concordo. Quem lê Pessoa (toda a obra) dificilmente lê mais qualquer poeta português. Quanto à música, não sendo um entendido (nem ler música sei), gosto quase de todos os grandes compositores clássicos desde o Bach até Chopin ou até Lopes Graça. 18.04.2020
FPS INFLUENTE É curioso, que eu também não, que percebe puto daqueles rabichos, daqueles sinais, que se traduzem em sons, abstractos por natureza, e que nos emocionam tão absolutamente. Quem não gosta de Chopin, de Mahler, de Brahms, eu sei lá?... Lopes Graça, quando fiz parte de um coro, cantei-o tanta vez (dificílimo, mas tão português na sua alma e original na sua forma). 18.04.2020
correiaramos INICIANTE: Obrigado, José Pacheco Pereira, pelo lembrete de como a poesia e a musica podem ser um bom bálsamo, instigador e radiante, para os dias sombrios do presente. Como se pode ver pelos comentários, nem todos estão preparados para essa viagem, seja pela influência da omnipresente televisão ou das redes sociais, ambas geradoras da mais confrangedora superficialidade nos tempos que correm. Não esqueceremos aqueles que preocupados com o dia de amanhã, sem emprego ou com rendimentos abaixo do limiar de sobrevivência, dificilmente encontrarão na sua sugestão qualquer suplemento de alma que os faça esquecer as agruras do presente. 18.04.2020
Caetano Brandão INFLUENTE: Muito bem escrito, subscrevo completamente. 18.04.2020
Duarte Cabral EXPERIENTE: Dizia o poeta Nicola de Champfort: "Jouis et fais jouir, sans faire de mal ni à toi ni à personne, voila, je crois, toute morale. Na minha opinião, o autor ao fazer jouir meia dúzia de "branleurs" em vez de alertar as massas para os dias negros do futuro, está a fazer mal, no sentido que não faz o bem. Discordo quando diz que a influencia da televisão impede de apreciar boa musica. Note que o papagaio do meu vizinho Lello a pesar de não faltar uma a telenovela das 20h, fica eufórico quando o seu dono ouve musica clássica. 18.04.2020
Duarte Cabral EXPERIENTE: Sem intenção de querer ferir o seu ego, e pela importância que tem na opinião publica. Sugeria-lhe que ouvi-se conferencias de Jean Marc Jancovici, Gael Guiroud, o canal youtube "Le Reveilleur", Aurélien Barrau, e outros mais. Seria mais útil à sociedade, que perder o seu tempo com essas leituras. 18.04.2020
Mario Coimbra EXPERIENTE: Obrigado. Por 3 minutos esqueci-me da rua e dos vírus e fiquei com vontade de ler Eugenio de Andrade. E vou ler. 18.04.2020
Julio MODERADOR: Sim, podemos ler ou ouvir as músicas do E. Andrade. Mas quem o pode? Aqueles - a esmagadora maioria - que vive na angústia da sua existência, do seu futuro, muitos - outra vez a tal maioria - em exíguos domicílios sem balcão, terraço ou jardim e, ainda, muitas vezes, acossados por uns quantos "putos", já infectados pelo tédio do confinamento? Não, não podem! Ou é difícil. Eu também procuro abstrair-me da paranóia que por aí instalaram. Contudo, sob pena de lesar a minha consciência, os meus e a sociedade, não posso abstrair-me do sentido crítico. De denunciar os excessos a que levam o poder bem como a desorientação instalada. É bom reviver as nossas memórias. Na actual situação, e como Historiador, não esqueça a Gripe Suína, o TINA e... A sociedade precisa do peso da sua palavra e critica. 18.04.2020
BREVE ANTOLOGIA   (DA INTERNET)

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