São alegres, estas recordações de uma
juventude disciplinada e enriquecida por estudos fora da pátria, que Salles da Fonseca traz a
lume, com a concisão e o humor habituais, os quais bem lhe serviram,
posteriormente, para cumprir o seu serviço militar com garbo, certamente, em
terras de África, como já o recordou. Calha bem hoje o memorial, pois se
festeja o 25 de Abril - sem os cavalos, contudo, que dele fizeram parte em
1974, festejos estes limitados aos que não precisam desses animais para se
imporem, virtuosamente sacrificando-se pelos que apenas poderão alegrar-se nos
seus actuais aquartelamentos domésticos, impostos pelos representantes do
“Abril sempre”, a pretexto de um vírus poderosamente universal que descontrolou
toda a humanidade.
Essa tristeza comemorativa trouxe-me à
lembrança o soneto de Nicolau
Tolentino (1741-1811), que quadra bem no dia de hoje, de recolhimento
espiritual e de pobreza material em perspectiva, se não já em facto:
Vai, mísero cavalo lazarento,
Pastar longas campinas livremente;
Não percas tempo, enquanto to consente
De magros cães faminto ajuntamento.
Esta sela, teu único ornamento,
Para sinal da minha dor veemente,
De torto prego ficará pendente,
Despojo inútil do inconstante vento.
Morre em paz, que, em havendo algum dinheiro,
Hei-de mandar, em honra de teu nome,
Abrir em negra pedra este letreiro:
«Aqui piedoso entulho os ossos come
Do mais fiel, mais rápido sendeiro,
Que fora eterno, a não morrer de fome».
Pastar longas campinas livremente;
Não percas tempo, enquanto to consente
De magros cães faminto ajuntamento.
Esta sela, teu único ornamento,
Para sinal da minha dor veemente,
De torto prego ficará pendente,
Despojo inútil do inconstante vento.
Morre em paz, que, em havendo algum dinheiro,
Hei-de mandar, em honra de teu nome,
Abrir em negra pedra este letreiro:
«Aqui piedoso entulho os ossos come
Do mais fiel, mais rápido sendeiro,
Que fora eterno, a não morrer de fome».
ANDA COMIGO –
2 – DE CAVALOS E CAVALEIROS
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A
BEM DA NAÇÃO, 24.04.20
Como
era suposto, todos os alunos chegaram (chegámos) no dia 31 de Julho para nos
instalarmos e começarmos o curso no dia 1 de Agosto. Nós, os rapazes, ficávamos
nas camaratas da Escola; as raparigas ficavam em casas de família um pouco por
toda a parte na cidade. Como fui dos primeiros a chegar, escolhi uma cama na
parte de cima de beliche junto da janela. Ao final da tarde, a minha camarata
fez o pleno dos três beliches com a chegada de três irmãos suíços, com o
filho de um casal de cantores da Ópera de Berlim e um outro que era filho de um
casal de engenheiros alemães contratados pelo Governo egípcio e que chegara na
véspera a Hannover vindo do Cairo. Dizia que falava árabe fluentemente. O
Thomas, o suíço mais velho, sugeriu-nos que acreditássemos e decidiu, sob
aplauso da maioria dos camaradas, que por ali se falava alemão e ponto final
na discussão. Outro tema sobre que não se falaria, seria a religião pois
havia ali católicos e luteranos. É claro que nenhum de nós tinha maturidade
nem interesse por debates teológicos pelo que aquela decisão foi inócua. O
berlinense operático estava autorizado a cantar até que alguém, da nossa ou de
outra camarata, o mandasse calar. Felizmente, o Andreas Brauer, o único de
quem retive o nome, preferia a ópera italiana que sempre é mais cantabile que a
wagneriana. E assim foi que «democraticamente», o Thomas organizou a
vida na nossa camarata. Então, já que ele ficara na cama mais próxima do interruptor
da luz, assumiu a incumbência do respectivo comando. Creio que já todos, os
outros, dormíamos quando ele apagou a luz nesta primeira noite e creio também
que assim terá sido até à última noite da nossa estadia na Escola.
Alvorada
às 6 da manhã seguida de pequeno almoço,
formatura na «parada» com prelecção sobre a «ordem do dia». No primeiro dia, a
prelecção foi um pouco mais longa do que nos seguintes, fez-se a atribuição de um
cavalo a cada aluno e, depois de dada a ração e feitas as abluções e outras
limpezas, seguiu-se uma apreciação do à-vontade a cavalo de cada aluno.
Fomos distribuídos por quatro classes desde os mais atrasados na 1ª aos mais
adiantados na 4ª. No final do curso, os mais adiantados fariam o
exame da Federação Equestre Alemã para atribuição (ou não) das medalhas de
bronze de equitação e de condução de atrelagens (com uma parelha de cavalos). O
bronze habilitava os seus titulares a participarem nas competições regionais[i].
Em função desta distribuição, assim cada um de nós montaria ou não o cavalo que
lhe fora atribuído inicialmente. Coubera-me uma égua de meia idade,
passei a montá-la. Andava serenamente nos três andamentos, alargava e
encurtava mas não sabia mais nada. Nem sequer sabia recuar. Passava por cima
dos pequenos obstáculos sem fazer o mínimo esforço e creio que ninguém alguma
vez lhe pediu que saltasse qualquer coisa que se visse. No campo de steeple, «Maria vai com as
outras». Tive um mês para me entreter a convencê-la de que a vida é bela.
Foi muito apreciada pela hierarquia a maneira como a ensinei a recuar (pela
mobilização da garupa, coisa que nunca tinham praticado). A partir daí, o
Director da Escola convidou-me a montar o cavalo dele todas as tardes. Enquanto
por lá andei, mais ninguém lhe passou a perna (termo da gíria equestre para
«montar»).
Aos
Domingos não havia actividade e os cavalos eram alimentados por dois Fulanos da
cidade que lá iam fazer esse trabalho. Nós, os alunos, estávamos dispensados de
qualquer obrigação. E foi num certo Domingo que o professor de equitação me
levou a conhecer Bremen e noutro Domingo o Director me levou a assistir ao Derby
de Hamburgo. Em ambas as cidades vi ruínas da guerra. Entretanto, na
nossa cidadezinha, vi construir um bairro novo com uma centena de edifícios de
dois pisos para receberem alemães de leste que queriam vir para o lado de cá.
Não
fiz o exame final porque a viagem de regresso a Lisboa era no próprio dia dos
exames. Isso ficaria para dois anos depois, Agosto de 1961. Foi o
próprio Director da Escola que me levou no seu carro particular ao aeroporto de
Hannover.
Na
viagem de regresso já eu conhecia os caminhos, não precisei de ajudas
especiais. Em Barajas, espreitei pela porta que dava para os «servicios» mas
não estava lá o «gran torero». Era outro «Guardia Civil» que estava de serviço
às precisões dos passageiros em trânsito e este não inspirava qualquer
comentário. Barajas banal, perdera a graça. À chegada a Lisboa, o meu irmão foi
buscar-me ao aeroporto e dei por mim a pensar em alemão e a traduzir
mentalmente para português. O objectivo da viagem era precisamente esse,
o de desemburrar o alemão; os cavalos eram o pretexto.
(continua)
Abril
de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
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