Ponto final.
OPINIÃO CORONAVÍRUS
Porque deles é o reino dos céus…
As celebrações do 25 de Abril em plena
quarentena são absurdas. Mas inofensivas, a não ser para quem lá for sem
protecção profiláctica.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 26 de Abril de 2020
As
polémicas nacionais atingem por vezes graus inesperados de empenho irracional.
É o tom das grandes emoções. É impressionante a fúria dos ataques às comemorações
do 25 de Abril! Correm petições a exigir a demissão de Ferro
Rodrigues. Reclama-se a destituição do Presidente, Marcelo Rebelo de
Sousa! Já se sugere a realização de novas eleições, porque os deputados não
respeitariam a vontade dos eleitores. Os argumentos são delicados como vetusta
artilharia. Não se comemora a Páscoa, não se reza ao domingo, não se acompanham
os mortos ao cemitério, não há casamentos nem baptizados, nem sequer se celebra
o dia da pátria, o dia de Camões… Mas há políticos a festejar Abril, a
festejarem-se a si próprios e a proteger os seus privilégios! Nunca se viu um
tal desplante dos comunistas e dos maçons! Passados perto de cinquenta anos,
quase meio século, meu Deus, ainda há quem queira marcar aquela data, quem a
considere superior à crença religiosa, ao amor de família, às festas da pátria…
Mas
também é perturbador, cinquenta anos depois de fundada a democracia, em plena
pandemia que mata três dezenas de pessoas por dia, ao mesmo tempo que a vida
social está suspensa, este absurdo que é o de ver todos os órgãos do Estado, os
seus partidos e as suas instituições comemorarem, em romagem de saudade ou
romaria festiva, a revolução de 25 de Abril! A lembrar os anciãos do 5 de
Outubro ou os decrépitos do 28 de Maio! Fechadas as escolas, proibida a
circulação de um concelho para o outro, interdito o enterro dos mortos,
afastados os passeios aos jardins, limitados os giros de cães, silenciadas as
missas, cerrados os bares e impedidos os circos, mas aberto o Parlamento numa
incompreensível cerimónia que não honra ninguém!
Os
insultos trocados e que variam entre fascistas, comunistas, maçónicos e beatos
fazem tremer os pilares da República! Revolucionários crentes e destemidos
defendem, com ar seráfico, a necessidade de respeitar os rituais celebrativos
da democracia! Liberais exigem a proibição das comemorações! Conservadores
vituperam as cerimónias de culto da memória! Esquerda e direita acusam-se de
crimes de lesa-pátria ou de atentado contra a liberdade. Verdade é que a tolice
e a inutilidade destas celebrações só são comparáveis à histeria daqueles que
as atacam. As comemorações em miniatura e com cenografia de afastamento social
são tão ridículas que não deveriam despertar mais do que desdém e piedade. Mas
não! Acordaram verdadeiras iras democráticas e republicanas! E Ferro
Rodrigues foi transformado em temerário defensor da democracia por uns, monstro
jacobino por outros.
Mais
uma vez, vivemos dentro daqueles círculos de fogo onde não se consegue pensar
de modo diferente do dos fanáticos, meditar com inteligência fora das labaredas
assassinas, nem tentar compreender longe das hordas dos pensadores oficiosos.
E, tal como antigamente, só há dois campos, o da democracia ou o do fascismo. O
da revolução ou o da reacção. Forçam-se pessoas, sob pesado opróbrio público e
debaixo de fortíssima condenação moral, a tomar partido, a garantir que se está
do lado da pátria ou da liberdade!
É
espectáculo inesperado ver socialistas e comunistas, verdadeiros bolchevistas,
reclamar o direito de levar a cabo a liturgia democrática e o dever da
República de realizar as comemorações celebrativas, enquanto republicanos
jacobinos criticam a operação com veemência! Recordar antigos revolucionários
que, em seu tempo, consideravam os republicanos das romagens do 5 de Outubro
uns patetas impotentes que pouco mais valiam do que discursos vácuos e ramos de
flores nos cemitérios… Vê-los hoje a exigir celebração dá vontade de sorrir…
Recordar republicanos maçónicos que, durante décadas, nunca falhavam as
romagens da República e vê-los agora a considerar de mau gosto umas
pindéricas festas do 25 de Abril provoca estupefacção!
Ver
e ouvir conservadores, nacionalistas, liberais e democratas de direita
aproveitar a pandemia para finalmente se exprimirem contra a democracia, o
Parlamento, a Assembleia da República e os seus deputados, mas em nome da
decência e da liberdade, é quase cómico.
E,
no entanto, é tudo tão simples… As comemorações do 25 de Abril são obsoletas.
Mas são inocentes e não prejudicam ninguém, a não ser a democracia. As
celebrações do 25 de Abril em plena quarentena são absurdas — mas inofensivas,
a não ser para quem lá for sem protecção profiláctica. Criticar seriamente
estas festividades é perda de tempo e desperdiçar argumentos.
Esta
polémica tem revelado o pior do ambiente em que vivemos. Assim como as
dimensões mais sombrias da democracia que temos. Um projecto inconsequente
obrigou pessoas e instituições a tomar posição com ar desassombrado e solene.
Os políticos pensam que agredir a população é a melhor maneira de salvar a
política. Os democratas sentem-se no dever de recordar aos cidadãos que eles
são os proprietários. Os jacobinos repetem os mesmos erros de sempre, fecham as
portas, protegem as suas hostes, expulsam os liberais e os conservadores,
mandam calar os oposicionistas, insultam as vozes livres.
Os
democratas de consciência pesada entendem que não podem deixar de tomar
partido, sob pena de serem considerados fascistas. Socialistas e comunistas
entendem que este é o momento de cerrar fileiras por um novo bloco histórico de
esquerda, mesmo que tenham de se aliar com simples democratas e republicanos
filhos de portugueses honrados! Ateus defendem as cerimónias de Páscoa, ora
silenciadas, argumento bom para criticar a excepção aberta para estas tristes
festas de Abril. Arruaceiros por inclinação, os populistas de esquerda revelam
uma propensão inesperada para o bom comportamento institucional.
Realizar
as comemorações do 25 de Abril em quarentena, depois de proibir funerais e
baptizados, aulas e cinemas, missas e jantares, concertos e velórios, é simplesmente
ridículo, revela políticos inseguros, pobres diabos novos-ricos da política…
Criticar a sua realização com fúria redentora e hordas de cavaleiros da virtude
e aproveitar para desencadear uma operação de limpeza moral é tão caricato
quanto levar a cabo cerimónia tão patética.
O
reino dos céus espera por ambos…
Sociólogo
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