terça-feira, 28 de abril de 2020

Lembranças para sempre



A memória é um dom espantoso. Também, em 55, fiz uma viagem com mais duas colegas a França, e além de uma coca-cola sôfrega, embora não gelada, sobre a qual me lancei numa loja fronteiriça em em Fuentes de Oñoro, onde o combóio parara, depois de Vilar Formoso, - (Salazar não permitia na altura a licença da exploração da coca-cola, a que nos habituáramos em Moçambique, aos domingos, o que constituía para mim saudosa penúria nos anos que por cá passei) - o que me deixou completamente boquiaberta foi a visão, do combóio, de crianças espanholas descalças e maltrapilhas à beira de casas lembrando as das nossas rústicas aldeias, imagem que nunca mais esqueci, numa irmanação inesperada com aquilo que estranhara entre nós, pois sempre achara que a Espanha era bem superior, sem me lembrar das duas guerras que a destroçaram, anos antes, apenas sabendo de uma pujança de espaço e arte muito superiores ao nosso torrão pátrio continental. Por isso, gosto das evocações de Salles da Fonseca, e da sua memória das terras e dos factos que ora nos transportam ao passado, ora ao presente, e sempre com sabor crítico agridoce, ou evocativo dos nomes sonoros das suas culturas que as revitalizam para nós, como essa do terrível Inquisidor Torquemada, ou de Rodrigo, “Le Cid” de Corneille, que lemos em literatura francesa…

ANDA COMIGO - 4D. FREI TOMÁS DE TORQUEMADA
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÂO, 27.04.20
Meados de Julho de 1961, cais de S. Martinho do Porto, meio da tarde, casa de praia da família Sommer d’Andrade. Visita à lota ali um pouco mais adiante, dois ou três dedos de conversa na varanda, jantar e despedida dos meus pais que regressavam à nossa casa de Verão, em Cascais. Nós, os cinco viajantes, partiríamos na manhã seguinte rumo à aventura. Como hoje se diz, a carrinha era um «pão de forma» VolksWagen dentro da qual dormiríamos três e os outros dois dormiriam numa tenda de campismo.
Na manhã seguinte, despedidas finais de quem ficava e rodas à estrada pelas 9 da manhã, mais coisa-menos coisa.
Naquela época, quem viesse de Lisboa rumo ao Norte, perdia sistematicamente a autoestrada em Vila Franca de Xira (talvez por gritante deficiência de sinalização…) e só voltava a acertar-se com ela nos Carvalhos, já perto do Porto. Restou-nos, pois, a hipótese de irmos a Alfeizerão para apanharmos a estrada nacional 1 até à Bairrada, virarmos para o Luso, pararmos uns minutos em Mortágua para eu me despedir dos meus avós (que naquele ano ainda não tinham ido para nossa casa em Cascais) e rumado a Vilar Formoso.
Ainda faltavam 38 anos para a constituição do Espaço Schengen e da nossa carrada constavam quatro menores cuja legalidade na «exportação» tinha que ser demonstrada. Os três manos d’Andrade iam com o Pai e bastava exibir os respectivos Bilhetes de Identidade mas em relação a mim, havia que exibir a autorização do meu Pai. E todos esses formalismos implicaram alguma demora na fila do guichet da Guarda Fiscal e na tramitação processual propriamente dita de toda a documentação (faltavam algumas décadas para que começassem a aparecer computadores, tudo era registado «à unha») até que todos tivéssemos os passaportes devidamente carimbados. Lembro-me de que a vistoria aduaneira ao interior do «pão de forma» foi rápida e simbólica, só para não se dizer que o militar da Guarda Fiscal não metera a cabeça lá dentro.
Paragem na berma da estrada espanhola para trincarmos uma sandocha e bebermos um pirolito sem solavancos nem stress; volta rápida por Ciudad Rodrigo para ficarmos com uma ideia da cidade histórica e lá vamos nós a caminho de Salamanca…; o «pão de forma» não era um Porshe, íamos «de espácio»… a ver os cabos telefónicos pendurados em «postes» feitos de árvores mortas podadas sabe-se lá como, a estrada estreita a pedir mais alcatrão nalgumas «trepidações», «pueblos» amarelados, pobres, muito pobres e poeirentos. Nós, os miúdos, não tínhamos maturidade nem conhecimentos para podermos pensar por nós próprios mas podíamos armazenar a informação que ali víamos. E não foi necessário esperar estes anos todos desde 1961 para sabermos que não é impunemente que um país – uma sociedade - passa por uma guerra civil seguida por uma guerra mundial e por um embargo internacional. As vítimas não são os detentores do Poder, qualquer que ele seja, são os inocentes cá de baixo, os dos «pueblos», sejam estes de meia dúzia de casas ou de milhares delas.
Chegados a Salamanca, demos uma volta pela zona histórica para ficarmos com uma ideia geral. Anos e anos mais tarde, quando soube quem tinham sido Rodrigo, D. Tomás de Torquemada e Alonso III Arcebispo de Fonseca, foi do que desta vez vi em Ciiudad Rodrigo e em Salamanca que me lembrei imaginando-os por aquelas ruelas e praças.
Saímos de Salamanca em direcção a Burgos, a três horas de viagem. Também por ali, trânsito ao ritmo do «lá vai um». Haveríamos de lá chegar noite fechada e naquelas épocas não havia por ali parques de campismo nem nada parecido. Ainda havia Sol, era altura de procurarmos um local aprazível para fazermos aquilo a que hoje chamamos campismo salvagem. Terreno plano, meia dúzia de sobreiros, relva rasteira natural. Instalámo-nos, jantámos à volta duma mesa de campismo, demos alguma conversa e vimos a noite assentar. Mais um pouco de conversa e estava na hora de dormir. Dormi a noite de uma ponta à outra e já havia luz quando acordámos. E, para além da luz, havia também vacas à nossa volta. Felizmente, eram mansas. Na dúvida, movemo-nos com cautela porque nenhum de nós ainda tinha vocação de «gran toreros»[i].
Feitas as abluções matinais e tomado o pequeno almoço sem metermos medo aos cornúpetos nem levarmos nenhuma cornada, desmontámos o acampamento e pusemos o «pão de forma» com as rodas da frente a andar à frente das de trás.
Amanhã há mais.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca

[i] - O Zé Luí, sim, veio a ser cavaleiro tauromáquico de alternativa.
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