A memória é um dom espantoso. Também, em
55, fiz uma viagem com mais duas colegas a França, e além de uma coca-cola
sôfrega, embora não gelada, sobre a qual me lancei numa loja fronteiriça em em Fuentes de Oñoro, onde o combóio parara,
depois de Vilar Formoso, - (Salazar
não permitia na altura a licença da exploração da coca-cola, a que nos
habituáramos em Moçambique, aos domingos, o que constituía para mim saudosa
penúria nos anos que por cá passei) - o que me deixou completamente boquiaberta
foi a visão, do combóio, de crianças espanholas descalças e maltrapilhas à
beira de casas lembrando as das nossas rústicas aldeias, imagem que nunca mais
esqueci, numa irmanação inesperada com aquilo que estranhara entre nós, pois
sempre achara que a Espanha era bem superior, sem me lembrar das duas guerras
que a destroçaram, anos antes, apenas sabendo de uma pujança de espaço e arte
muito superiores ao nosso torrão pátrio continental. Por isso, gosto das
evocações de Salles da Fonseca, e da sua
memória das terras e dos factos que ora nos transportam ao passado, ora ao
presente, e sempre com sabor crítico agridoce, ou evocativo dos nomes sonoros
das suas culturas que as revitalizam para nós, como essa do terrível Inquisidor
Torquemada, ou de Rodrigo, “Le Cid” de Corneille, que lemos
em literatura francesa…
ANDA COMIGO -
4 – D. FREI TOMÁS DE
TORQUEMADA
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÂO, 27.04.20
Meados
de Julho de 1961, cais de S. Martinho do Porto, meio da tarde, casa de praia da
família Sommer d’Andrade. Visita à lota ali um pouco mais adiante, dois ou três
dedos de conversa na varanda, jantar e despedida dos meus pais que regressavam
à nossa casa de Verão, em Cascais. Nós, os cinco viajantes, partiríamos na
manhã seguinte rumo à aventura. Como hoje se diz, a carrinha era um «pão de
forma» VolksWagen dentro da qual dormiríamos três e os outros dois dormiriam
numa tenda de campismo.
Na
manhã seguinte, despedidas finais de quem ficava e rodas à estrada pelas 9 da
manhã, mais coisa-menos coisa.
Naquela
época, quem viesse de Lisboa rumo ao Norte, perdia sistematicamente a autoestrada
em Vila Franca de Xira (talvez por gritante deficiência de sinalização…) e
só voltava a acertar-se com ela nos Carvalhos, já perto do Porto.
Restou-nos, pois, a hipótese de irmos a Alfeizerão para apanharmos a estrada
nacional 1 até à Bairrada, virarmos para o Luso, pararmos uns minutos em
Mortágua para eu me despedir dos meus avós (que naquele ano ainda não tinham
ido para nossa casa em Cascais) e rumado a Vilar Formoso.
Ainda
faltavam 38 anos para a constituição do Espaço Schengen e da nossa carrada constavam quatro menores cuja
legalidade na «exportação» tinha que ser demonstrada. Os três manos
d’Andrade iam com o Pai e bastava exibir os respectivos Bilhetes de Identidade
mas em relação a mim, havia que exibir a autorização do meu Pai. E todos
esses formalismos implicaram alguma demora na fila do guichet da
Guarda Fiscal e na tramitação processual propriamente dita de toda a
documentação (faltavam algumas décadas para que começassem a aparecer
computadores, tudo era registado «à unha») até que todos tivéssemos os
passaportes devidamente carimbados. Lembro-me de que a vistoria aduaneira ao
interior do «pão de forma» foi rápida e simbólica, só para não se dizer que o
militar da Guarda Fiscal não metera a cabeça lá dentro.
Paragem
na berma da estrada espanhola para trincarmos uma sandocha e bebermos um
pirolito sem solavancos nem stress; volta rápida por Ciudad Rodrigo para
ficarmos com uma ideia da cidade histórica e lá vamos nós a caminho de
Salamanca…; o «pão de forma» não era um Porshe, íamos «de espácio»… a
ver os cabos telefónicos pendurados em «postes» feitos de árvores mortas
podadas sabe-se lá como, a estrada estreita a pedir mais alcatrão nalgumas
«trepidações», «pueblos» amarelados, pobres, muito pobres e poeirentos. Nós,
os miúdos, não tínhamos maturidade nem conhecimentos para podermos pensar por
nós próprios mas podíamos armazenar a informação que ali víamos. E não
foi necessário esperar estes anos todos desde 1961 para sabermos que não é
impunemente que um país – uma sociedade - passa por uma guerra civil seguida
por uma guerra mundial e por um embargo internacional. As vítimas não são
os detentores do Poder, qualquer que ele seja, são os inocentes cá de baixo, os
dos «pueblos», sejam estes de meia dúzia de casas ou de milhares delas.
Chegados
a Salamanca, demos uma volta pela zona histórica para ficarmos com
uma ideia geral. Anos e anos mais tarde, quando soube quem tinham sido Rodrigo,
D. Tomás de Torquemada e Alonso III Arcebispo de Fonseca, foi do que desta vez vi em Ciiudad Rodrigo e em
Salamanca que me lembrei imaginando-os por aquelas ruelas e praças.
Saímos
de Salamanca em direcção a Burgos, a três horas de viagem. Também por
ali, trânsito ao ritmo do «lá vai um». Haveríamos de lá chegar noite
fechada e naquelas épocas não havia por ali parques de campismo nem nada
parecido. Ainda havia Sol, era altura de procurarmos um local aprazível
para fazermos aquilo a que hoje chamamos campismo salvagem. Terreno
plano, meia dúzia de sobreiros, relva rasteira natural. Instalámo-nos, jantámos
à volta duma mesa de campismo, demos alguma conversa e vimos a noite assentar. Mais
um pouco de conversa e estava na hora de dormir. Dormi a noite de uma ponta à
outra e já havia luz quando acordámos. E, para além da luz, havia também
vacas à nossa volta. Felizmente, eram mansas. Na dúvida, movemo-nos com
cautela porque nenhum de nós ainda tinha vocação de «gran toreros»[i].
Feitas
as abluções matinais e tomado o pequeno almoço sem metermos medo aos cornúpetos
nem levarmos nenhuma cornada, desmontámos o acampamento e pusemos o «pão de
forma» com as rodas da frente a andar à frente das de trás.
Amanhã
há mais.
(continua)
Abril
de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
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