Ainda lá está, cumprindo a sua função,
de transportador, no mesmo prédio da recordação de Salles da Fonseca, impassível e eficiente, subindo e descendo, prestável
e bom, quando não encalha… Também nós hoje estamos para aqui, encalhados,
recordando, num modus vivendi que tem o seu sabor evocativo, que a escrita
ajuda a prolongar…
CLAUSURA – 11 - O ELEVADOR
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 13.04.20
Alto,
magro, sempre amparado por duas pessoas, o Senhor paralítico dava uns passinhos
milimétricos e tinha que ser levantado no ar em cada um dos cinco degraus que
havia entre o hall do prédio e o patamar do elevador. Tinha um Mercedes
cinzento escuro e um chauffeur fardado com uma sobrecasaca cinzenta clara com
punhos e gola verdes. O Senhor paralítico era simpático e acenava com a cabeça
– e nos seus finais, apenas com o olhar – a todas as pessoas que com ele se
cruzavam. Ia mesmo ao ponto de dar a prioridade a outras pessoas no elevador já
que ele e companhia ocupavam todo o espaço. Nunca vi ninguém aproveitar essa
gentileza e o Senhor paralítico sempre foi o primeiro a usar o elevador. Certo
dia, o chauffeur regressou sem o patrão a bordo, nunca mais o vi e passado
pouco tempo, o apartamento em que vivia foi esvaziado. Do Senhor paralítico
ficou uma memória simpática mas nem o nome lhe retive.
Impante,
o Senhor Director Geral não cabia em si de importância e o mundo parecia
pequeno para albergar tanto convencimento. O Estado tinha-lhe posto ao serviço
um Vauxhall e um motorista que todas as manhãs aguardavam frente à porta do
prédio que Sua Excelência se dignasse aparecer. Ninguém, dentre a miudagem do
prédio, ousava entrar no elevador com ele, não fosse algum bocado de
pesporrência soltar-se e magoar algum de nós. Temeroso, distante e mais
qualquer outro adjectivo antipático. Certo dia, o motorista e o Vauxhall não
estavam à porta e o Senhor Director Geral não desceu no elevador à hora da
tradição. Passaram-se uns tempos até que se soubesse – conversas de porteira e
empregadas domésticas – que o Senhor Director Geral já não o era, que fora
substituído. As domésticas e afins estavam eufóricas por considerarem a
substituição como um castigo do «mais poderoso» mas nós, os outros inquilinos,
viemos a saber que a substituição se devera ao facto de o Cavalheiro ter
atingido o limite de idade. Vai daí, não tardou muito para que o Senhor ex-Director
Geral passasse a comportar-se como um cidadão comum e foi com simpatia que
correu a notícia que dali para a frente era ele que passava a ir às compras e
não mais a empregada velhota que já não podia com o peso dos sacos. E o Senhor
ex-importante, passou a ser visto ajoujado com sacos da mercearia e de mais não
sei quê, cumprimentando toda a gente e lastimando-se de que o vencimento de
reformado era curto. E que era ele que fazia as compras para que não houvesse
mais «comissões de intermediação» entre os lojistas e a patroa lá de casa. E de
tão importante que ele tinha sido, foi passar a vê-lo com sacos de papel
higiénico.
Memento,
homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris ...
(continua)
Abril
de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
Tags:
"viagens
na minha casa"
COMENTÁRIOS:
Anónimo 13.04.2020: Muito literário
e oportuno!
Anónimo 13.04.2020: Henrique, Ficou
mais nítido para mim com este teu comentário da Páscoa mais alguma coisa do que
já sabia. Obrigada No entanto ficou ainda a dúvida, que estou certa que vais
esclarecer, como interpretas a promessa de jesus: estarei convosco até ao final
dos tempos, e que nós testemunhamos pelo menos todos os domingos Bjs Joana
Nogueira Vaz
Henrique Salles da
Fonseca 13.04.2020: Olá Joana! Estamos no tempo do Espírito Santo que é o
mesmo que dizer o do Pai e do Filho, ou não fora a Trindade una. Assim, o
Filho, Jesus Cristo, está connosco até à Parúsia que antecederá o fim dos
tempos com o Juízo Final.
Henrique Salles da
Fonseca, 13.04.2020: Luís Mascarenhas gosta disto e
comentou «a ver vamos a continuação»
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