terça-feira, 14 de abril de 2020

E o elevador, provavelmente


Ainda lá está, cumprindo a sua função, de transportador, no mesmo prédio da recordação de Salles da Fonseca, impassível e eficiente, subindo e descendo, prestável e bom, quando não encalha… Também nós hoje estamos para aqui, encalhados, recordando, num modus vivendi que tem o seu sabor evocativo, que a escrita ajuda a prolongar…
CLAUSURA – 11  - O ELEVADOR
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 13.04.20
Alto, magro, sempre amparado por duas pessoas, o Senhor paralítico dava uns passinhos milimétricos e tinha que ser levantado no ar em cada um dos cinco degraus que havia entre o hall do prédio e o patamar do elevador. Tinha um Mercedes cinzento escuro e um chauffeur fardado com uma sobrecasaca cinzenta clara com punhos e gola verdes. O Senhor paralítico era simpático e acenava com a cabeça – e nos seus finais, apenas com o olhar – a todas as pessoas que com ele se cruzavam. Ia mesmo ao ponto de dar a prioridade a outras pessoas no elevador já que ele e companhia ocupavam todo o espaço. Nunca vi ninguém aproveitar essa gentileza e o Senhor paralítico sempre foi o primeiro a usar o elevador. Certo dia, o chauffeur regressou sem o patrão a bordo, nunca mais o vi e passado pouco tempo, o apartamento em que vivia foi esvaziado. Do Senhor paralítico ficou uma memória simpática mas nem o nome lhe retive.
Impante, o Senhor Director Geral não cabia em si de importância e o mundo parecia pequeno para albergar tanto convencimento. O Estado tinha-lhe posto ao serviço um Vauxhall e um motorista que todas as manhãs aguardavam frente à porta do prédio que Sua Excelência se dignasse aparecer. Ninguém, dentre a miudagem do prédio, ousava entrar no elevador com ele, não fosse algum bocado de pesporrência soltar-se e magoar algum de nós. Temeroso, distante e mais qualquer outro adjectivo antipático. Certo dia, o motorista e o Vauxhall não estavam à porta e o Senhor Director Geral não desceu no elevador à hora da tradição. Passaram-se uns tempos até que se soubesse – conversas de porteira e empregadas domésticas – que o Senhor Director Geral já não o era, que fora substituído. As domésticas e afins estavam eufóricas por considerarem a substituição como um castigo do «mais poderoso» mas nós, os outros inquilinos, viemos a saber que a substituição se devera ao facto de o Cavalheiro ter atingido o limite de idade. Vai daí, não tardou muito para que o Senhor ex-Director Geral passasse a comportar-se como um cidadão comum e foi com simpatia que correu a notícia que dali para a frente era ele que passava a ir às compras e não mais a empregada velhota que já não podia com o peso dos sacos. E o Senhor ex-importante, passou a ser visto ajoujado com sacos da mercearia e de mais não sei quê, cumprimentando toda a gente e lastimando-se de que o vencimento de reformado era curto. E que era ele que fazia as compras para que não houvesse mais «comissões de intermediação» entre os lojistas e a patroa lá de casa. E de tão importante que ele tinha sido, foi passar a vê-lo com sacos de papel higiénico.
Memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris ...
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Anónimo 13.04.2020: Muito literário e oportuno!
Anónimo 13.04.2020: Henrique, Ficou mais nítido para mim com este teu comentário da Páscoa mais alguma coisa do que já sabia. Obrigada No entanto ficou ainda a dúvida, que estou certa que vais esclarecer, como interpretas a promessa de jesus: estarei convosco até ao final dos tempos, e que nós testemunhamos pelo menos todos os domingos Bjs Joana Nogueira Vaz
Henrique Salles da Fonseca 13.04.2020: Olá Joana! Estamos no tempo do Espírito Santo que é o mesmo que dizer o do Pai e do Filho, ou não fora a Trindade una. Assim, o Filho, Jesus Cristo, está connosco até à Parúsia que antecederá o fim dos tempos com o Juízo Final.
Henrique Salles da Fonseca, 13.04.2020: Luís Mascarenhas gosta disto e comentou «a ver vamos a continuação»

Nenhum comentário: