Quem os tiver, é claro. Mas não deixa de
ser triste que não consideremos os livros “bens
de primeira necessidade”, como advoga Bárbara Reis. É certo que podemos hoje encontrar na Internet muitas obras que o nosso apetite possa
querer pesquisar, mas uma livraria é lugar de exposição em que se gosta de
mergulhar, tal como o supermercado, daí que a ideia de postigo dificilmente se
adapta, a menos que se conheça de antemão a obra que se pretende obter, tal
como na farmácia se aviam as receitas médicas. Poder-se-ia fazer fila, para lá
entrar, em número limitado, como no supermercado. Mas esta ideia é risível,
pois, de facto, as nossas livrarias estão às moscas, excepto na época da abertura
dos anos escolares. Não, entre nós, os livros não são bens de primeira
necessidade, e também tenho pena.
OPINIÃO COFFEE BREAK
Em Berlim, os livros são bens de primeira necessidade
O Estado português considerou — e bem
— que ter flores frescas em casa é um “bem de primeira necessidade”. Mas
esqueceu-se dos livros.
BÁRBARA REIS
PÚBLICO, 10 de
Abril de 2020
Com
um pequeno embrulho, uma amiga salvou há dias um diplomata estrangeiro
recém-chegado a Portugal. Vindo de um “lugar perigoso” no critério covid-19, o
homem teve de ficar isolado durante 14 dias.
Não
seria um problema se ele estivesse na sua casa habitual. Mas sendo Lisboa um
“novo posto”, a casa estava vazia. Ele não podia sair, os homens da mudança não
podiam entrar e o diplomata ficou reduzido a uma mala de mão.
—
Posso ajudar em alguma coisa?
—
Se me enviasse dois livros...
Para
sorte do diplomata, isto aconteceu na véspera da declaração do
estado de emergência, as lojas ainda estavam abertas e, no mesmo
dia, ele pôs-se a ler um bom livro. Hoje seria mais difícil.
Em
Portugal, há 450 livrarias (com as lojas e tabacarias que vendem livros, o
número sobe para mil) e vende-se um milhão de livros por mês (excluindo os
manuais escolares — o cálculo é da Gfk).
O
estado de emergência impõe o fecho geral do comércio, mas abre 44 excepções a
“bens de primeira necessidade” ou “bens considerados essenciais na presente
conjuntura”. De entre as excepções, estão à cabeça os mini, super e
hipermercados, frutarias, talhos, peixarias, padarias, mercados, lotas,
restaurantes em regime de take-way, serviços médicos e de apoio social,
farmácias e produtos ortopédicos, oculistas e serviços públicos como água, luz
e gás. Tudo lógico e previsível.
A
lista inclui outras actividades cuja necessidade diária é evidente: agências funerárias, bombas de gasolina,
papelarias e tabacarias, garagens, oficinas de reparação de computadores (como
não se o mundo ficou ainda mais digital?), bancos e seguros, serviços de
entrega ao domicílio.
Já
outras excepções são intrigantes: jogos
sociais, lavandarias, drogarias, material de bricolage e produtos naturais. De todas as excepções, a mais bonita são as
floristas. O Estado português considerou — e bem
— que ter flores frescas em casa é um “bem de primeira necessidade” ou um “bem
considerado essencial na presente conjuntura”. Falo por mim: o que seria da
minha família sem uma jarra de flores escolhidas pela senhora Alcina da Praça
da Ribeira?
O
Estado português pensou na possibilidade de precisarmos de fazer uma desratização
durante o estado de emergência: é a excepção n.º 32 do
longo Anexo II do decreto-lei que lista os 44 bens de primeira necessidade. Terrível
a quarentena que inclui ratos a roerem tapetes, arquivos ou comida da despensa.
Pensou também nos produtos dietéticos e nas máquinas de venda nas empresas.
Mas ninguém se lembrou dos livros.
Ou, se se lembrou, eles acabaram por não entrar na lista.
É
verdade que, já com as regras excepcionais em vigor, quando os livreiros
perguntaram se as livrarias podiam estar abertas durante o estado de
emergência, a resposta da ministra da Cultura, Graça Fonseca, foi sim —
desde que vendam ao postigo.
“Vender
ao postigo” soa a Idade Média e não é por acaso que, em alguns dicionários, o
primeiro significado para “postigo” é “porta pequena em muralha para serventia de
pouca monta”. Na prática,
isto significa que a Ler Devagar ou a Bertrand podiam ter a porta aberta e, na ausência de um
postigo, fariam o negócio à porta, numa mesa ou banca que montassem no
passeio.
A
lei do estado de emergência prevê que os negócios que não são de “primeira
necessidade” podem continuar a vender desde que o façam “à porta ou ao postigo”
ou para entrega ao domicílio. Daí a resposta da ministra.
Isto
não é criticar a ministra, o Governo ou o Estado português. Em Portugal
ninguém se lembrou de incluir os livros na lista de bens de primeira
necessidade, mas provavelmente nenhum outro país do mundo o fez. Só
encontrei uma excepção: Berlim.
Não
é sequer uma regra na Alemanha, pois cada land decide como enfrentar a
pandemia. Em Berlim — haja rigor — não há confusão sobre o que é essencial.
Há uns anos, José Pacheco Pereira calculou quantos livros conseguimos ler “numa
vida de grande leitor”. A resposta: “Dificilmente se pode ultrapassar os
4000-5000 livros.” Na quarentena berlinense, a ideia é não perder o ritmo.
PS:
Em Portugal, pode comprar livros online e as vendas digitais cresceram um pouco
nestas semanas de estado de emergência, embora não compensem as quebras de 70% das vendas tradicionais. E a nova associação ReLI – Rede de Livrarias Independentes, criada por causa da
pandemia, está a receber 50 a 100 encomendas de livros por dia.
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