sexta-feira, 10 de abril de 2020

É altura de ler ou reler os livros da própria estante



Quem os tiver, é claro. Mas não deixa de ser triste que não consideremos os livros “bens de primeira necessidade”, como advoga Bárbara Reis. É certo que podemos hoje encontrar na Internet muitas obras que o nosso apetite possa querer pesquisar, mas uma livraria é lugar de exposição em que se gosta de mergulhar, tal como o supermercado, daí que a ideia de postigo dificilmente se adapta, a menos que se conheça de antemão a obra que se pretende obter, tal como na farmácia se aviam as receitas médicas. Poder-se-ia fazer fila, para lá entrar, em número limitado, como no supermercado. Mas esta ideia é risível, pois, de facto, as nossas livrarias estão às moscas, excepto na época da abertura dos anos escolares. Não, entre nós, os livros não são bens de primeira necessidade, e também tenho pena.

OPINIÃO COFFEE BREAK
Em Berlim, os livros são bens de primeira necessidade
O Estado português considerou — e bem — que ter flores frescas em casa é um “bem de primeira necessidade”. Mas esqueceu-se dos livros.
BÁRBARA REIS
PÚBLICO, 10 de Abril de 2020
Com um pequeno embrulho, uma amiga salvou há dias um diplomata estrangeiro recém-chegado a Portugal. Vindo de um “lugar perigoso” no critério covid-19, o homem teve de ficar isolado durante 14 dias.
Não seria um problema se ele estivesse na sua casa habitual. Mas sendo Lisboa um “novo posto”, a casa estava vazia. Ele não podia sair, os homens da mudança não podiam entrar e o diplomata ficou reduzido a uma mala de mão.
— Posso ajudar em alguma coisa?
— Se me enviasse dois livros...
Para sorte do diplomata, isto aconteceu na véspera da declaração do estado de emergência, as lojas ainda estavam abertas e, no mesmo dia, ele pôs-se a ler um bom livro. Hoje seria mais difícil.
Em Portugal, há 450 livrarias (com as lojas e tabacarias que vendem livros, o número sobe para mil) e vende-se um milhão de livros por mês (excluindo os manuais escolares — o cálculo é da Gfk).
O estado de emergência impõe o fecho geral do comércio, mas abre 44 excepções a “bens de primeira necessidade” ou “bens considerados essenciais na presente conjuntura”. De entre as excepções, estão à cabeça os mini, super e hipermercados, frutarias, talhos, peixarias, padarias, mercados, lotas, restaurantes em regime de take-way, serviços médicos e de apoio social, farmácias e produtos ortopédicos, oculistas e serviços públicos como água, luz e gás. Tudo lógico e previsível.
A lista inclui outras actividades cuja necessidade diária é evidente: agências funerárias, bombas de gasolina, papelarias e tabacarias, garagens, oficinas de reparação de computadores (como não se o mundo ficou ainda mais digital?), bancos e seguros, serviços de entrega ao domicílio.
Já outras excepções são intrigantes: jogos sociais, lavandarias, drogarias, material de bricolage e produtos naturais. De todas as excepções, a mais bonita são as floristas. O Estado português considerou — e bem — que ter flores frescas em casa é um “bem de primeira necessidade” ou um “bem considerado essencial na presente conjuntura”. Falo por mim: o que seria da minha família sem uma jarra de flores escolhidas pela senhora Alcina da Praça da Ribeira?
O Estado português pensou na possibilidade de precisarmos de fazer uma desratização durante o estado de emergência: é a excepção n.º 32 do longo Anexo II do decreto-lei que lista os 44 bens de primeira necessidade. Terrível a quarentena que inclui ratos a roerem tapetes, arquivos ou comida da despensa. Pensou também nos produtos dietéticos e nas máquinas de venda nas empresas.
Mas ninguém se lembrou dos livros. Ou, se se lembrou, eles acabaram por não entrar na lista.
É verdade que, já com as regras excepcionais em vigor, quando os livreiros perguntaram se as livrarias podiam estar abertas durante o estado de emergência, a resposta da ministra da Cultura, Graça Fonseca, foi sim — desde que vendam ao postigo.
“Vender ao postigo” soa a Idade Média e não é por acaso que, em alguns dicionários, o primeiro significado para “postigo” é “porta pequena em muralha para serventia de pouca monta”. Na prática, isto significa que a Ler Devagar ou a Bertrand podiam ter a porta aberta e, na ausência de um postigo, fariam o negócio à porta, numa mesa ou banca que montassem no passeio.
A lei do estado de emergência prevê que os negócios que não são de “primeira necessidade” podem continuar a vender desde que o façam “à porta ou ao postigo” ou para entrega ao domicílio. Daí a resposta da ministra.
Isto não é criticar a ministra, o Governo ou o Estado português. Em Portugal ninguém se lembrou de incluir os livros na lista de bens de primeira necessidade, mas provavelmente nenhum outro país do mundo o fez. Só encontrei uma excepção: Berlim.
Não é sequer uma regra na Alemanha, pois cada land decide como enfrentar a pandemia. Em Berlim — haja rigor — não há confusão sobre o que é essencial. Há uns anos, José Pacheco Pereira calculou quantos livros conseguimos ler “numa vida de grande leitor”. A resposta: “Dificilmente se pode ultrapassar os 4000-5000 livros.” Na quarentena berlinense, a ideia é não perder o ritmo.
PS: Em Portugal, pode comprar livros online e as vendas digitais cresceram um pouco nestas semanas de estado de emergência, embora não compensem as quebras de 70% das vendas tradicionais. E a nova associação ReLI – Rede de Livrarias Independentes, criada por causa da pandemia, está a receber 50 a 100 encomendas de livros por dia.


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