Mas também não previu, é certo, os
campos de concentração nazis. Aqueles que descreve, nos seus círculos infernais,
eram de fantasia, embora de ilustres nomes seus conhecidos, quer por tradição
literária, quer pela contemporaneidade, estes condenados nas suas prevaricações
de pecadores, como Francesca da Rimini que pôde lançar o seu queixume de
condenada por amor luxurioso: “Nessun maggior
dolore che ricordarsi del tempo felice nella miséria”. Não, não se trata de
mágoa da recordação de um passado feliz, de contraste com o presente de tortura,
ou os vários outros casos de prevaricadores castigados, nos seus pecados de
avareza, ira, gula, traição e mais, este nosso caso do povo amarfanhado na sua
pobreza espiritual e física, em tempo de concentração, que Salles da Fonseca, tão
saudavelmente descreve, com a habitual energia e humor -- esses dos nossos a
quem não foi dada a oportunidade de conviverem com a beleza criada pelos
homens, fechados na agonia do seu mundo de inércia espiritual, que em tempo de
imobilidade e prisão domiciliária se transformará, talvez, em autêntica tortura
doméstica, nos seus lares despidos de luz, de espaço e de educação. Um tempo de
quarentena verdadeiramente infernal, a desses, entregues à mesquinhez dos seus mundos
estreitos, da sua educação apenas versada, talvez, no mundo da intriga, da
inveja, da vil mesquinhez, de uma pobreza espiritual só paralela à sua miséria
material. Isso não foi pensado pelos que ordenaram a quarentena, mas
impressionou, naturalmente, Salles
da Fonseca, neste seu retrato bem sensível
dos nossos condenados à clausura sem luz e sem conforto, em tempo de
quarentena.
CLAUSURA – 3
– Niilistas de mãos nos bolsos
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 05.04.20
Há
quem lhe chame quarentena mas duvido que nos fiquemos pelo confinamento (como dizem os franceses) durante o prazo de 40 dias
implícito naquela palavra. Por isso, refiro-me a clausura. Esta,
sim, por tempo indeterminado. Aliás, a
soltura que se seguirá à clausura, não poderá ser «à la diable», deverá ser
parcelar de tal modo que só possa sair quem esteja limpo e, mesmo assim,
sujeito a verificações diárias. Ou seja, se para uns será quarentena, para
outros será pentatena, exantena e sei lá mais quê... É aqui que me lembro de
quem vive em casas pequenas, soturnas, húmidasde uma pobreza esses que nos Santos Populares saltam para os
bailaricos nas ruas, esses para quem tudo são pretextos para sair dos tugúrios
em que moram. Como
a clausura lhes deve ser difícil de suportar. Que
fará essa gente, habituada a trabalhos braçais, todo o dia de mãos nos bolsos,
metida em ambientes sórdidos, sem hábitos de cultura, sem vida interior? Eis
o niilismo, o caminho para o vazio ou, pior, a plenitude imediata e imensa do
vazio que se transforma na acusação de tudo e de todos, da própria sorte, o
triunfo do mau-feitio, a revolta contra «eles, os que têm os livros»; a revolta
do prisioneiro sem culpa formada e que todos sabem inocente.
Apirético, iletrado, imobilizado,
incompreendido, o povo está prestes a dizer impropérios tão feios que nem
constam dos dicionários escolares.
É que, por cá,
à revolta niilista chama-se iliteracia.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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