domingo, 5 de abril de 2020

O horror que Dante não previu



Mas também não previu, é certo, os campos de concentração nazis. Aqueles que descreve, nos seus círculos infernais, eram de fantasia, embora de ilustres nomes seus conhecidos, quer por tradição literária, quer pela contemporaneidade, estes condenados nas suas prevaricações de pecadores, como Francesca da Rimini que pôde lançar o seu queixume de condenada por amor luxurioso: “Nessun maggior dolore che ricordarsi del tempo felice nella miséria”. Não, não se trata de mágoa da recordação de um passado feliz, de contraste com o presente de tortura, ou os vários outros casos de prevaricadores castigados, nos seus pecados de avareza, ira, gula, traição e mais, este nosso caso do povo amarfanhado na sua pobreza espiritual e física, em tempo de concentração, que Salles da Fonseca, tão saudavelmente descreve, com a habitual energia e humor -- esses dos nossos a quem não foi dada a oportunidade de conviverem com a beleza criada pelos homens, fechados na agonia do seu mundo de inércia espiritual, que em tempo de imobilidade e prisão domiciliária se transformará, talvez, em autêntica tortura doméstica, nos seus lares despidos de luz, de espaço e de educação. Um tempo de quarentena verdadeiramente infernal, a desses, entregues à mesquinhez dos seus mundos estreitos, da sua educação apenas versada, talvez, no mundo da intriga, da inveja, da vil mesquinhez, de uma pobreza espiritual só paralela à sua miséria material. Isso não foi pensado pelos que ordenaram a quarentena, mas impressionou, naturalmente, Salles da Fonseca, neste seu retrato bem sensível dos nossos condenados à clausura sem luz e sem conforto, em tempo de quarentena.
CLAUSURA – 3 – Niilistas de mãos nos bolsos
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 05.04.20
Há quem lhe chame quarentena mas duvido que nos fiquemos pelo confinamento (como dizem os franceses) durante o prazo de 40 dias implícito naquela palavra. Por isso, refiro-me a clausura. Esta, sim, por tempo indeterminado. Aliás, a soltura que se seguirá à clausura, não poderá ser «à la diable», deverá ser parcelar de tal modo que só possa sair quem esteja limpo e, mesmo assim, sujeito a verificações diárias. Ou seja, se para uns será quarentena, para outros será pentatena, exantena e sei lá mais quê... É aqui que me lembro de quem vive em casas pequenas, soturnas, húmidasde uma pobreza  esses que nos Santos Populares saltam para os bailaricos nas ruas, esses para quem tudo são pretextos para sair dos tugúrios em que moram. Como a clausura lhes deve ser difícil de suportar. Que fará essa gente, habituada a trabalhos braçais, todo o dia de mãos nos bolsos, metida em ambientes sórdidos, sem hábitos de cultura, sem vida interior? Eis o niilismo, o caminho para o vazio ou, pior, a plenitude imediata e imensa do vazio que se transforma na acusação de tudo e de todos, da própria sorte, o triunfo do mau-feitio, a revolta contra «eles, os que têm os livros»; a revolta do prisioneiro sem culpa formada e que todos sabem inocente.
Apirético, iletrado, imobilizado, incompreendido, o povo está prestes a dizer impropérios tão feios que nem constam dos dicionários escolares.
É que, por cá, à revolta niilista chama-se iliteracia.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca


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