Com solavancos e sorrisos de permeio, para
bem dos seus leitores – alguns comentadores - que assim viajam consigo pelo
mundo, sentados e revivendo, talvez, experiências idênticas, da sua mocidade, que
partilham, ao som da canção da minha memória também, que escutei na Internet, de
onde a transcrevi na íntegra. Por mim, gosto mais destes “passeios” leves, com
sabor crítico e visualizador, do que dos mais centrados em reformas políticas
pesadas, num futuro que se descontrolou…
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A
BEM DA NAÇÃO, 23.04.20
Anda
comigo
Vamos
pela estrada fora
Anda
ver a tua terra ´
Como
está bonita agora.
Toma
o chicote
E
com ele dá dois estalos…
…
e de mais não me lembro desta canção dos anos 50 do século passado. A diferença
está em que desta vez (e das próximas nesta série) não vamos ver a «tua terra»
mas sim terras alheias.
*
* *
O
30 de Julho de 1959 amanheceu soalheiro e os meus pais levaram-me ao aeroporto
da Portela, logo ali ao fundo da Avenida do Aeroporto que hoje se chama
«Almirante Gago Coutinho», para eu ir durante um mês para a Alemanha praticar
alemão e, já que estávamos com a mão na massa, montar a cavalo num ambiente
diferente daquele a que eu estava habituado. Tinha eu fresquíssimos 14 anos e
já então me saltava o pé para a aventura.
O
meu baptismo de voo tinha sido uns anos antes numa Auster em Alverca[i]
mas aquela seria a primeira vez que voaria num avião «grande», dos de
passageiros. Seria um voo da Lufthansa mas o avião seria um inglês Vickers
Viscount[ii]. O destino seria (e foi) Hannover com
escalas em Madrid e Frankfurt.
Poucos
passageiros à partida (uma dezena?) e lá fomos até Madrid num percurso sem
história.
A
aerogare de Barajas era então um edifício mais pequeno do que também então era
o nosso em Lisboa e a «sala» dos passageiros em trânsito era uma varanda
destapada em quarto de círculo com não mais do que meia dúzia de metros de raio
e com três degraus para a placa de estacionamento dos aviões. Os «servicios»
eram dentro da aerogare e cada passageiro em trânsito que precisasse de «se servir»,
era acompanhado por um «Guardia Civil» velhote e barrigudo montado em cima
de duas pernas muito altas e fininhas ao estilo de «gran torero» - pelos
vistos «pas très réussi» - que ficava de plantão do lado de fora do local
dos alívios e regressava com o/a aliviado/a à varanda - não fosse alguém
lembrar-se de trocar o virulento Salazar pelo doce Franco. Dificilmente se
poderia imaginar missão mais «nobre» para quem uns anos antes andara por
certo à trolha sob o comando do Generalíssimo… «Asseos» sob vigilância,
sim, mas, quanto ao resto, nem um copo de água. Passada assim cerca de uma
hora, veio uma funcionária da companhia aérea (hospedeira de terra, talvez),
alemã, encaminhar-nos de regresso ao avião no que fomos seguidos logo depois
por mais passageiros que ali iniciavam viagem. Avião quase cheio, todos falavam
alemão e não vi ninguém de «traje de luces» nem vestidos travados e com
folhos à sevilhana, vestimentas usuais de qualquer espanhol que se presasse.
Não? Ah, julguei que sim…
Rodas
no ar à hora prevista e lá vamos até aos 11 mil metros de altitude rumo a
Frankfurt. Céu limpo e «estrada» sem buracos, serviram almoço cuja ementa
esqueci (não sei porquê se «só» passaram 61 anos…). Mas do que me lembro sem
qualquer dúvida é de que tudo sabia exactamente ao mesmo, desde a bebida ao
prato principal, ao pão e à sobremesa. Ainda hoje esta particularidade
constitui um mistério para a minha fraca sabedoria em culinária.
Chegados
a Frankfurt, uma hospedeira de terra conduziu-me à porta de embarque do voo para
Hannover. O avião seria um bimotor a hélice parecido com o «Dakota» (DC
3) mas que era de um modelo chamado
«Metropolitan» cujo fabricante esqueci e agora não fui capaz de descobrir.
Meia
dúzia ou menos de passageiros, vários lugares vazios. Estranhei, mas não
desgostei, que a hospedeira se viesse sentar ao meu lado, verificasse o meu
cinto de segurança, me desse rebuçados e se fartasse de conversar. Pareceu-me
nervosa. Falei-lhe calmamente e ela lá se foi acalmando até que começámos a
descer para o destino. Aterrámos sem novidades e foi então que ela disse que o
avião que nos antecedera fora apanhado por uma tempestade e que a colega dela
andara à reboleta por tudo quanto era sítio na cabine e tivera que ser evacuada
de charola para o hospital. E eu, galaró, convencido de que tinha sido a minha
conversa mole que a tinha acalmado.
À
minha espera estava uma Senhora nem alta nem baixa, nem gorda nem magra,
antes pelo contrário, de loden e chapéu a condizer. Foi aí que tive o meu
primeiro contacto com hordas de gente vestida de verde. Levou-me a um hotel
no centro da cidade onde dormi e, na manhã seguinte, foi buscar-me e foi comigo
de comboio até Verden an der Aller, a cidadezinha onde se localiza a
sede da Associação dos Criadores dos Cavalos de Hannover, os famosos
hanoverianos, hoje considerados os melhores cavalos de desporto do mundo. A
Frau qualquer coisa – nunca lhe soube o nome – não me deve ter dirigido mais do
que uma dúzia de palavras desde o aeroporto ao hotel e desde o hotel até que me
deixou na Escola da Associação numa viagem de cerca de uma hora (100 kms). A
hospedeira do avião poderia estar nervosa mas era muito mais simpática (e
bonita) do que esta mal-disposta trombuda. Contudo, passados estes 61 anos,
penso nela e imagino que pudesse ter perdido a família na guerra que acabara
apenas 14 anos antes, que ficara emocionalmente destruída, eu sei lá que mais
horrores… Não, não tinha aspecto de ter pertencido às SS e muito menos aos SA.
Devia ser apenas uma pessoa triste e que ganhava a vida a fazer fretes de levar
jovens daqui para ali e vice-versa. Entrei o portão da Escola e ela deu meia
volta e… há 61 anos que não a vejo.
(continua)
Abril
de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
[i] - Com o então Coronel Engenheiro e
Piloto Aviador Fernando Alberto de Oliveira que mais tarde seria Brigadeiro,
Director das OGMA e Ministro das Obras Públicas
[ii] - O Vickers Viscount é um avião
quadrimotor turbo-hélice de médio-curso fabricado pela Vickers-Armstrongs (UK) com
início de operações em 1953. Foi um dos mais bem-sucedidos aviões da
geração do pós-guerra, tendo sido construídos no total 445 aparelhos. (Wikipédia)
Tags:
"viagens
na minha casa"
COMENTÁRIOS:
Anónimo, 23.04.2020: Pois não há espada que valha O trote destes cavalos (fado
das caldas)
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