sábado, 4 de abril de 2020

Paralelo imprevisto


Nunca eu julgaria que fosse possível estabelecer um confronto entre russos e portugueses, a não ser mesmo na questão do ganha-perde - os ganhos dos russos serem, de longa data, dilatados nas suas fronteiras terrestres - para oriente e ocidente, para sueste, nordeste, noroeste, conquistando uma posição invejável no mundo em seu redor, além de pescarem muitos outros povos, no mundo inteiro, com a essência dos seus princípios marxistas-leninistas, embora depois tenham perdido muitos desses povos, sobretudo por conta de um homem superior – Gorbatchov – que destruiu momentaneamente o sentimento de malquerença por uma nação ambiciosa de poderio e de governos sucessivamente impregnados de crueldade e artifícios. Os ganhos dos portugueses, sendo antigos e ambiciosos também, e exigentes de travessia marítima, não seguiam doutrina especial, mas coragem de certeza, em tempos passados, coragem que perdemos, nos tempos presentes, incluindo o menosprezo desses tais descobrimentos, coisa do antigamente, esquecido. Não, nunca ninguém se lembraria de comparar tal Golias a um enfezado David, este, para mais, sem “a elevação do nível médio de formação e instrução”, o que não é o caso daquele. Mas o texto “Clausura” está para continuar, talvez o entendimento surja, mais eficaz…

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 03.04.20
À semelhança de Marcelo Caetano, Gorbatchov também quis democratizar um regime monolítico, hermético. Em ambos os casos, o resultado foi o colapso. Por cá, o aligeiramento dos procedimentos radicais de direita deu azo ao surgimento de um golpe de Estado comunista; na URSS, pelo contrário, o PCUS acabou afastado da governação e substituído pela bagunça de Ieltsin que deu largas à Máfia russa sob a bandeira da privatização económica.
Nós, por cá, já reduzidos à dimensão territorial europeia, tivemos que fazer o 25 de Novembro de 1975 para que a democracia vingasse; a Rússia também perdeu as colónias que tinha na Europa e perdeu a influência que, entretanto, tivera nas ex-colónias portuguesas que lhe tinham sido entregues pelo 25 de Abril de 1974.
Portugal optou pela via democrática europeia; a Rússia optou por Putin. Vale-nos a coesão nacional de sermos uma única Nação dentro das mais antigas fronteiras no Velho Continente; à Rússia valem os recursos naturais num território imenso, transcontinental. A nós, falta-nos a elevação do nível médio de instrução e formação; aos russos falta a deswodkização. Nós, sem voos estratégicos espectaculares, estamos a tratar democraticamente dos gatunos que há tempos assaltaram o nosso Poder; Putin, nostálgico do protagonismo internacional russo, trata os seus gatunos de modo autocrático. Nós, por cá, temos o Poder organizado segundo o método de Hondt; a Rússia tem-no segundo o de Putin.
E então, que resulta de tudo isto?
Para já, nós estamos numa de querermos que «não nos chateiem»; Putin, pelo contrário, não se importa nada de chatear os outros se isso lhe devolver algum do protagonismo da sua saudosa URSS.
Nós, temos uma dimensão imaterial universal traduzida numa lusofonia largamente ultrapassada pela lusofilia; a Rússia tem dimensão material e emigrantes saudosos, sim, mas com medo da casa-mãe. Para muitos, espalhados por toda a parte, nós somos o centro do mundo; a Rússia, de tão grande, não cabe no centro de nenhuma das suas inúmeras etnias.
Nós somos queridos; eles são temidos.
E, apesar de tantas diferenças, tanto nós como eles fomos punidos pelo corona vírus. Porquê? Porque não somos chineses.
(continua)    Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Francisco G. de Amorim 03.04.2020: Boa explanação que até me fez ir ver quem foi o dr. Hondt. Creio que o que nos falta, além de melhor educação, é o tão falado e esquecido amor à Pátria, o que leva o povo a não se interessar pelas eleições e daí... a desgraça que se vê.
Anónimo 03.04.2020:  Em tempo de clausura, e após saborear a descrição da tua recente viagem, deu-me ganas de alinhavar uma linhas, a título de comentário deste teu texto. Creio, já não me recordo a propósito de quê, que, num comentário no ano passado, mencionei a biografa de Gorbachev, escrita por William Taubman. Neste tempo convidativo a leitura, este é um livro que permite perceber bem o que se passou no final da URSS e porquê. Prosseguindo a leitura do teu artigo, Henrique, diria que, decorrido quase meio século sobre a chamada descolonização, há que convir que tantos anos ainda são insuficientes para se fazer uma análise distanciada desse evento. Uma conclusão parece (sublinho “parece”) poder tirar-se: não terá sido o 25 de abril, mas quiçá o 11 de março, o ofertante do que te referes. Dizem os pensadores e os observadores que os russos sempre tiveram carência de um “pai”, não importando a sua denominação: czar, líder bolchevique, ou ditador em época capitalista (ou, se quiseres um termo mais suave, podemos utilizar a expressão de patriarca autocrático leigo, para não se confundir com o ortodoxo) Ele que eleve aos lugares cimeiros, de novo, a grandeza da Rússia e estará perdoado. Concordo que, no nosso caso, a Pátria ou casa-mãe, como lhe chamas, é um farol e uma referência para os nossos emigrantes, assim como concordo que a lusofilia ultrapassa a lusofonia. Recordo-me que senti orgulho quando, nos Brasis, li Casa Grande &Sanzala e as virtudes da miscigenação, tão bem descritas por Gilberto Freyre. O gosto que senti, então, não foi posto em causa pela quase lusofobia de Darcy Ribeiro, na sua obra O Povo Brasileiro. Um abraço. Carlos Traguelho

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