Parece um texto válido, este de Gonçalo Leite Velho sobre a retoma do
ensino normal, em presença e com a necessária postura, de responsabilidade e
desejo de saber real. Mas lembro o que se passou no 25 de Abril de há 46 anos,
com passagens administrativas e correspondências de bacharelatos a
licenciaturas, e as desordens posteriores em toda a sorte de ensinos, de
indisciplina generalizada, - (que os governos da liberdade, centrados, entre
outros ditames, em canções do tipo da tal gaivota com que Ermelinda Duarte empestava as consciências de um Zé Povinho apto a digerir-lhe
o desafio, favorecedor de ascensões ou promoções, que a viragem à esquerda atabalhoadamente
facultava), - tais desordens, digo, estão prontas a retomar-se, a pretexto,
hoje, de um coronavírus enleador, que vem a calhar para o mesmo tipo de
criaturas oportunistas, as quais esperam a mesma condescendência de então, para
as suas ambições de realização. Parece-me, pois, criterioso, o texto de Gonçalo Leite Velho, mas não
creio que resulte, ainda que o governo pretenda fingir que concede uma retoma
de critérios adequados, de responsabilização. O pretexto do medo dispensa o
pensamento honesto – este último, aliás, também convertido em pretexto.
Sair do medo
Não temos uma rede de Ensino Superior.
Temos cada vez mais feudos, receosos de perder um pequeno poder, embrião de
ideias tão alucinadas como substituir todo o ensino presencial por ensino à
distância
GONÇALO LEITE VELHO , Presidente do Sindicato Nacional do Ensino
Superior (SNESup)
OBSERVADOR, 29 abr
2020
O regresso às aulas, tal como o regresso à vida, depende
da nossa capacidade de vencer o medo. Ora, dificilmente se vence o medo
sem esperança.
É certo que a melancolia deste confinamento atingiu o
ponto. Ruckert-Lieder, com o discurso da chanceler Merkel a defender o fim do
princípio da esperança – tão desolador como os célebres versos de Holderlin,
sobre uma terra sem sulcos de arado.
Opto por citar outra alemã, Hannah Arendt, recordando que: “as
pessoas estão dotadas da capacidade de começar e por isso podem realizar o
inesperado e infinitamente improvável. A capacidade de actuar é a possibilidade
de realizar “milagres””.
É preciso actuar e manda a precaução que tenhamos
vários planos, daqueles que são sociologicamente capazes de demonstrar porque
falham as curvas das previsões matemáticas.
O SNESup fez o trabalho de casa. Atempadamente, preparámos
uma lista sobre o que importava acautelar, no confinamento e a seguir no
desconfinamento.
O ministro Manuel Heitor fingiu ignorar essa lista. Continuou na sua senda de não reunir com a
organização mais representativa de docentes e investigadores (a lista de desprezo pela liberdade e independência
sindical está cada vez mais longa). Depois, emulou parte dessa lista e enviou umas
ideias vagas, para as instituições ponderarem. A confusão que se seguiu e as sucessivas aparições de
reitores e presidentes de politécnico a dizerem tudo e o seu contrário, lembra
a nau de insensatos.
Sejamos sinceros. Não temos uma rede
de Ensino Superior e Ciência. Temos cada vez mais feudos, receosos de perder um
pequeno poder e embrião de ideias tão alucinadas como substituir para sempre
todo o ensino presencial por ensino à distância.
Esse desconcerto reflecte-se na equidade, dado que
vamos ter diplomados com níveis de formação profundamente desequilibrados (uns
efectivamente com parte prática, outros nada disso), aumentando uma
desconfiança óbvia e nunca validada à partida (a avaliação da
qualidade foi suspensa totalmente e sine
die?). Não
podemos deixar de estar preocupados com os alunos, nomeadamente os que estão em
situações frágeis e que não terão a formação que deveriam ter.
A chave para sair do medo é a
confiança. Não é algo que se conquista
com um polícia em cada varanda. Conquista-se sim com a capacidade de nos sentirmos
seguros perante um problema de saúde pública no nosso local de trabalho, como
nos sentimos em casa, ou noutros espaços.
Daí as medidas de higiene propostas pelo SNESup,
incluindo materiais e adaptação dos espaços lectivos, bem como a reorganização
do tempo de trabalho e a dimensão das turmas, entre muitas outras, num regresso
faseado.
Sairemos do medo quando nos sentirmos confiantes. Sem
mais, nem menos. E é por isso que é tão importante o trabalho de comunidade,
articulado, dialogante, representativo.
É nisso que estamos concentrados. Infelizmente, faltam os interlocutores. A razão é simples e reside
num outro medo: o medo de perder o poder. Esse medo reflecte em sim uma
impotência e a materialização dessa impotência é o cadeado sobre as
instituições. Fica um país triste, isolado,
descoordenado e com muito medo. Incapaz de restabelecer a confiança, a começar
pelas instituições de ensino superior e ciência. Não pode ser. Não podemos
continuar presos nisto.
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