Tratada com seriedade, respeito e aprumo, como é
habitual em Jaime Nogueira Pinto
A África em tempos de Covid/premium
O que é que se vai passar em África e
nas regiões tropicais e subtropicais de África? Estarão mais protegidas porque,
diz-se, “o coronavírus não gosta do calor”? Vai o impacto ser sobretudo
económico?
JAIME NOGUEIRA
PINTO OBSERVADOR, 24 abr 2020
Em rigor histórico, esta é a quarta
pandemia, depois da Praga de Justiniano (século VI), da Peste Negra (século
XIV) e da Pneumónica ou Gripe Espanhola (1918-1920). Como o próprio nome indica, pandemia é uma
epidemia que cai sobre todos, que atinge o mundo, pelo menos o mundo conhecido
e habitado – o mundo mediterrânico, o Médio Oriente e a Ásia, no século VI; a
Ásia, o Norte de África e a Europa, no século XIV; e os cinco continentes no
século XX e agora no século XXI.
Mas em todas estas pandemias, as
áreas ou regiões são atingidas de modos diferentes, em termos de infectados e
de vítimas mortais. A Pneumónica,
Gripe Espanhola ou Influenza, por
exemplo, matou muito mais gente na Ásia (na Índia, então colónia britânica) do
que na Europa e nos Estados Unidos. Embora ainda hoje haja uma grande
polémica quanto ao número de vítimas mortais da pandemia do século XX (com
discrepâncias de 20 para 100 milhões),
o consenso aponta para que na Europa as mortes tenham rondado os 2,5 milhões
e nos Estados Unidos os 700.000.
Escreve
John M. Barry, autor de
um excelente livro sobre o tema (The Great Influenza: The Epic Story of the
Deadliest Plague in History, New York, Viking Books-Penguin, 2004), que a
Pneumónica foi a primeira grande epidemia a acontecer num tempo em que os
germes, os vírus, misteriosos como sempre, já se enfrentaram com alguma ciência
e tecnologia, graças ao trabalho desenvolvido na segunda metade do século
anterior por Pasteur, por Koch, por Roentgen, aos estudos dos químicos e
virologistas, à existência de algumas vacinas e de alguns aparelhos e à melhoria
da prevenção, da terapia e dos serviços hospitalares. Foi, mesmo assim, um combate desigual. E Portugal foi,
proporcionalmente, um dos países mais atingidos, tendo registado cerca de
140.000 mortos (22 ou 23 mortos por cada mil habitantes). Fomos, a seguir à
Itália e à Bulgária, os recordistas de vítimas.
E a actual pandemia, como se
distribui regionalmente, ou melhor, continentalmente? A África é, para já, o continente menos tocado
directamente pela pandemia, mas que pode vir a ser o que mais vai sofrer as
suas consequências.
Olhemos
então esta pandemia com olhos de razão e compaixão, coisas que têm vindo a faltar quer aos
apocalípticos, quer aos negacionistas (que os há, até onde não devia haver):
O tempo de chegada, as condições
climáticas e sociais, a natureza dos povos e dos regimes e a capacidade das
estruturas médico-terapêuticas têm contribuído para que a distribuição
regional, ou geopolítica, do Covid-19 tenha sido, até agora, desigual.
A pandemia começou na China e o
governo chinês, por razões de Estado, de prestígio e de segurança, escondeu
interna e externamente e penalizou quem dela quis falar. Depois apostou em
força e aparato na liderança nacional e mundial do combate ao vírus.
Os
contaminados seguintes, o
Japão, a Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e, no seu regime especial, Hong-Kong
e Macau, souberam defender-se. Na
Europa, a Itália e a Espanha
facilitaram, tal como a Grã-Bretanha. Os países
de Visegrado parecem controlar melhor a epidemia. A França anda a meio caminho.
Aos Estados Unidos chegou mais tarde, mas com muita força. Portugal não será o
milagre apregoado mas, até agora, tem corrido menos mal.
E
África? O que é
que se vai passar em África e nas regiões tropicais e subtropicais de África?
Estarão mais protegidas porque, diz-se, “o coronavírus não gosta do calor”?
Em
22 de Abril havia cerca de 25.000 casos e 1200 mortos
registados em África, o que é manifestamente inferior aos números para a Ásia e
para as Américas a sul do Rio Grande.
Olhando
para um mapa da epidemia em África, vemos que a grande incidência por ora é na Argélia,
Marrocos e Egipto, isto é, na África do Norte e no Magreb e na República da
África do Sul. Os três
países do Norte de África e a República da África do Sul têm mais de metade dos
casos e dos mortos.
Mas
a epidemia no Continente vai com
certeza ter grandes repercussões, sobretudo de ordem indirecta, isto é, económicas, sociais e políticas;
repercussões que não interessam apenas aos africanos mas que nos devem interessar
a todos, particularmente ao chamado Ocidente, ou à Europa e aos Estados Unidos.
E devem interessar-nos tanto por boas
razões – de solidariedade humana e cristã – como por razões menos boas – de
interesse político-económico.
Quando a pandemia chegou, a África
Subsaariana já tinha e mantinha problemas complicados, problemas conjunturais e
estruturais. Os estruturais têm que ver com a relativa pobreza do Continente,
sobretudo nas periferias das megacidades, onde grande parte da população, por
não ter acesso a água corrente nem a electricidade, não pode seguir as
prescrições de higiene recomendadas; depois, pelo tipo de economia informal,
uma parte também substancial dessas populações vive de trabalhos diários e
precários, o que quer dizer que, se não sair de casa, não pode alimentar a
família.
Bronwyn Bruton, num informe do Atlantic Council, escrevia que, em
África, países mais pequenos, com menos população e cidades mais ordenadas e
mais industrializadas – como o Ruanda, o Botswana e o Senegal – tinham vantagem no combate ao Corona Vírus sobre
gigantes com fronteiras porosas e migrações em trânsito, como a Etiópia,
a Nigéria ou a própria África do Sul.
E, evidentemente, que os que tinham conflitos internos – como o Mali, a
República Democrática do Congo e a Somália – estavam
mais desprotegidos.
Mas
os comentários Bronwyn Bruton no Atlantic Council têm cerca de um mês e
a verdade é que, embora haja com certeza menos controles, logo, muitos
casos que escapam à estatística, e além do suposto benefício do calor (a África Tropical e Subtropical mostra claramente muito
menor incidência do vírus), parece
haver um outro factor importante: a questão geracional. O que também protege a África é a relativa juventude da sua população: em 2015, segundo as Nações Unidas, havia na África
Subsaariana 46 milhões de pessoas com mais de 60 anos, numa população total de
cerca de mil milhões de habitantes, ou seja, 4,5% nas idades de risco. Há
indicações (com todas as reservas que uma nova epidemia – e, por agora, ainda
mal conhecida – exigem) que a incidência mortal nos mais velhos é real. A
Itália, que tem 25% de maiores de 65 anos, está na linha da frente das baixas.
Assim,
muito provavelmente, os problemas de África com o novo vírus virão menos do
contágio e das perdas humanas directas e mais dos
revezes da quebra das economias desenvolvidas – logo, do consumo de energia e matérias-primas que a África produz – e da
dívida e da dependência que, nos últimos anos, muitos países passaram a ter em
relação à China. Daqui
os apelos internacionais – nomeadamente do Secretário Geral das
Nações Unidas, António Guterres – para o
problema dos países africanos, não só pela debilidade das suas estruturas
sanitárias, mas pela dificuldade de impor medidas de lockdown e redes
de suporte, como o lay-off ou as ajudas estatais às pequenas e médias
empresas. As consequências económicas do vírus serão ali
particularmente graves e virão numa altura em que os problemas do mundo dito
desenvolvido estarão também no seu pico. A quebra
dos preços do petróleo, por exemplo, atinge fortemente economias como as da
Nigéria, da Argélia e de Angola. E Moçambique está a braços com uma guerrilha
de tipo jihadista no Norte, em Cabo Delgado, e com a quebra dos preços da
energia e também do gás natural.
A vulnerabilidade africana está
também no alto endividamento dos países do Continente. Basta lembrar que, dos 64 países que gastam mais
no serviço da dívida do que na Saúde Pública, 30 são africanos. Embora recentemente os ministros das finanças e os
governadores dos Bancos centrais do G-20 tenham acordado uma moratória na
Dívida até ao fim deste ano, para dar aos países africanos tempo e respiro para
prepararem os seus equipamentos de saúde, as necessidades vão ser muito maiores. O que os países africanos pedem neste momento é
que a moratória se estenda até ao final de 2021 e o acesso um fundo de
emergência de 100 biliões de Dólares para acorrer às necessidades mais
imediatas, como o apoio às crianças e aos 30 milhões de
desempregados que podem resultar do primeiro impacto da crise. A China,
que neste momento é o principal
credor da África Subsaariana (num total
de 150 biliões de Dólares), declarou
pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros que irá examinar a situação país a
país. Esta situação abre também outros dilemas e escolhas no
chamado Ocidente Euro-americano. Com a
consciência realista de que há um estado de necessidade dos dois lados dos
Atlântico, os deveres de solidariedade – a letra desse espírito do
Ocidente que continua presente na sua retórica oficial – não podem nem devem
ser esquecidos. Se nós estamos mal, outros estão ou ficarão muito
pior. E que se esse pior levar ao desespero, irá traduzir-se em migrações
forçadas para a Europa, ao pé das quais nada do que se viu até hoje terá
comparação.
Para
os Estados Unidos contará
também a definição da liderança do mundo pós-pandemia, um outro mundo mas no
mesmo lugar deste; e essa liderança será indissociável da percepção que os
governos e povos mais maltratados pelas consequências da pandemia tenham dos
que então os ajudaram e estiveram presentes. Além dos problemas especiais de Moçambique e da Guiné
Bissau, com a ameaça jihadista em Cabo Delgado e o auto designado governo da
Guiné Bissau, os países africanos de língua oficial portuguesa têm estado a
lidar relativamente bem com o Covid 19. As consequências económicas já
serão outra coisa.
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