quarta-feira, 8 de abril de 2020

O tempora, o studia



Eu admiro todos os estudiosos que, debruçando-se sobre as obras alheias, desenterram, não só essas obras para o conhecimento dos homens, como os interpretam, segundo os parâmetros do seu próprio pensamento ou gosto. Tal foi João Gaspar Simões que refere Salles da Fonseca, a quem o país deve o conhecimento de tantos autores passados, que, sem ele, talvez ficassem ignorados nos manuscritos das bibliotecas, laboriosamente copiados outrora pelos frades. (E no entanto, os governos permitiram a falência da livraria Sá da Costa, que publicou essas colecções de clássicos, que certamente serviram de base para tantos estudos posteriores e culminaram, entre outros manuais de Literatura Portuguesa, na “História da Literatura Portuguesa” de António José Saraiva e Óscar Lopes). Sem esses intérpretes do passado, a criatividade de alguns não seria mais possível, talvez, já que, exceptuando os grandes génios, criadores das suas próprias teorias, é a partir do conhecimento e da experiência que a criatividade se pode manifestar e aprofundar. Daí a minha discordância, nesse ponto, do Dr. Salles, que, aliás, aproveita os seus tempos de clausura para nos enriquecer com o múltiplo vocabulário definidor do Belo e do Sublime segundo os linguistas, para se fixar na sintética e definitiva definição do filósofo Burke e nos fornecer deste um simpático retrato, estimulante do nosso apetite em tempo de quarentena.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 07.04.20 Burke
João Gaspar Simões (1903 – 1987) [i] tinha um cão, setter irlandês, chamado «Hallali» [ii] que, na minha tenra infância, me pareceu a materialização do que mais tarde viria a chamar o «conceito do belo». «Et pour cause», muito mais tarde ainda, ao ler «Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo» [iii], acabei por associar a minha memória daquele cão a Edmund Burke (1729 – 1797). Nada me admiraria que um dia, no futuro, venha a saber que o filósofo tinha daqueles cães.
Então, se, como dizem os linguistas, o sublime é o óptimo, excelente, elevado, eminente, excelso, excepcional, extraordinário, incomparável, inigualável, insigne, superior, supremo, transcendente e o belo é o bonito, lindo, atraente, encantador, formoso, airoso, elegante, esbelto, garboso, galante, bem-apessoado, apolíneo, donairoso, harmonioso, gracioso, jeitoso, venusto, perfeito, bem-feito, bem-acabado, bem-proporcionado, catita, mais vale resumirmos tudo no que o filósofo disse: sublime é o inultrapassável e o belo é aquilo que nos agrada.
E os filósofos é que têm a fama de serem chatos.
Vai daqui, a clausura levou-me hoje a pensar que também Burke não era filósofo profissional mas sim político e orador, membro do Parlamento pelo Partido Whig e que até tinha fama de ser um tipo divertido e «bon vivant». E se muitos dos grandes filósofos tinham outras formações de base, também fui levado a lembrar-me de que os filósofos profissionais sabem tanto sobre o que outros pensaram que ficam sem tempo para pensarem por si próprios e nos trazerem algo de inovador.
Pelo mesmo tipo de razões, acho que a verdadeira cultura é feita por amadores, os que pagam as suas próprias criações; os profissionais têm tanto que estudar a obra alheia que ficam sem tempo para a actividade criativa – por exemplo, são intérpretes musicais. Contudo, na pintura, se não têm obra própria, são por certo copistas de vocação falsária.
Veja-se assim onde, em clausura, me leva um cão. Onde me levará um cavalo?
Pois é, há clausura para além do vírus.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca
[i] - Novelista, dramaturgo, biógrafo, historiador da literatura portuguesa, ensaísta, memorialista, crítico literário, editor e tradutor português (Wikipédia)
[ii] - Toque da trompa de caça aquando da morte do veado
[iii] - Edições 70

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