Eu admiro todos os estudiosos que,
debruçando-se sobre as obras alheias, desenterram, não só essas obras para o
conhecimento dos homens, como os interpretam, segundo os parâmetros do seu
próprio pensamento ou gosto. Tal foi João
Gaspar Simões que refere Salles
da Fonseca, a quem o país deve o conhecimento de tantos autores
passados, que, sem ele, talvez ficassem ignorados nos manuscritos das
bibliotecas, laboriosamente copiados outrora pelos frades. (E no entanto, os
governos permitiram a falência da livraria Sá da Costa, que publicou essas colecções de clássicos, que certamente
serviram de base para tantos estudos posteriores e culminaram, entre outros
manuais de Literatura Portuguesa, na “História da Literatura Portuguesa” de António José Saraiva e Óscar Lopes). Sem esses intérpretes do passado, a criatividade de alguns não seria mais
possível, talvez, já que, exceptuando os grandes génios, criadores das suas
próprias teorias, é a partir do conhecimento e da experiência que a
criatividade se pode manifestar e aprofundar. Daí a minha discordância, nesse ponto,
do Dr. Salles, que, aliás, aproveita os seus tempos de clausura
para nos enriquecer com o múltiplo vocabulário definidor do Belo e do Sublime segundo os
linguistas, para se fixar na sintética e definitiva definição do filósofo Burke e nos fornecer deste um simpático retrato,
estimulante do nosso apetite em tempo de quarentena.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 07.04.20 Burke
João Gaspar Simões (1903 – 1987) [i] tinha um cão, setter irlandês, chamado
«Hallali» [ii] que, na minha tenra infância, me pareceu
a materialização do que mais tarde viria a chamar o «conceito do belo». «Et
pour cause», muito mais tarde ainda, ao ler «Uma Investigação Filosófica
Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do Belo» [iii], acabei por associar a minha memória
daquele cão a Edmund Burke (1729 –
1797). Nada me admiraria que um dia, no futuro, venha a saber que o filósofo
tinha daqueles cães.
Então,
se, como dizem os linguistas, o sublime é o óptimo, excelente, elevado, eminente, excelso,
excepcional, extraordinário, incomparável, inigualável, insigne, superior,
supremo, transcendente e o
belo é o bonito,
lindo, atraente, encantador, formoso, airoso, elegante, esbelto, garboso,
galante, bem-apessoado, apolíneo, donairoso, harmonioso, gracioso, jeitoso,
venusto, perfeito, bem-feito, bem-acabado, bem-proporcionado, catita, mais vale resumirmos tudo no que o filósofo disse:
sublime é o inultrapassável e o belo é aquilo que nos agrada.
E
os filósofos é que têm a fama de serem chatos.
Vai
daqui, a clausura levou-me hoje a pensar que também Burke não era filósofo profissional mas sim
político e orador, membro do Parlamento pelo Partido Whig e que até tinha fama
de ser um tipo divertido e «bon vivant». E se muitos dos grandes filósofos tinham
outras formações de base, também fui levado a lembrar-me de que os filósofos
profissionais sabem tanto sobre o que outros pensaram que ficam sem tempo para
pensarem por si próprios e nos trazerem algo de inovador.
Pelo mesmo tipo de razões, acho que a
verdadeira cultura é feita por amadores, os que pagam as suas próprias
criações; os profissionais têm tanto que estudar a obra alheia que ficam sem
tempo para a actividade criativa – por exemplo, são intérpretes musicais.
Contudo, na pintura, se não têm obra própria, são por certo copistas de vocação
falsária.
Veja-se
assim onde, em clausura, me leva um cão. Onde me levará um cavalo?
Pois
é, há clausura para além do vírus.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da
Fonseca
[i] - Novelista, dramaturgo, biógrafo,
historiador da literatura portuguesa, ensaísta, memorialista, crítico
literário, editor e tradutor português (Wikipédia)
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