É preciso conhecer-se muito bem a alma
humana para, ao invés de participar no coro das preocupações gerais, se pretender
ignorar os sofrimentos reais a que se vai assistindo, por toda a parte, em cada
dia que passa, especulando sobre as pequenas manobras ou baixezas do bicho
homem, que uma tal atrocidade como a que estamos vivendo possa nele provocar,
de aproveitamento para mudanças políticas dos oportunistas habituais das
viragens - ou viroses, que é termo mais consentâneo com o caso presente. E no
entanto, pese embora a convicção sobre um azedume latente em António Barreto, que o faz, provavelmente, ancorar-se em
outras suas experiências de vida, que foram as nossas também, não deixam de
constituir uma página notável de argúcia psicológica e política, que uma
extraordinária dose de veia sarcástica torna de sabor imperecível. Assim, contra os
comentadores mais adeptos da negativa de Álvaro Cunhal contra as acusações de Mário Soares, em tempo dessas outras manobras de tempos idos, então
ponto de partida de uma realidade inesperada e catastrófica para muitos, a que
esta de hoje dá seguimento mais preocupante ainda, eu defendo este impecável
texto de António Barreto com um “Olhe que sim!” de profunda admiração.
OPINIÃO PURIFICAÇÃO
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 19 de Abril de 2020
Tanta
gente quer aproveitar a
pandemia para
ajustar contas! Os argumentos parecem suspiros. Uns dizem com ar compenetrado
“Nada ficará como dantes!”, após o que os optimistas mostram como se deve
aproveitar para mudar a sociedade e corrigir defeitos, enquanto os cépticos,
além do desemprego, antecipam perda de direitos, regresso da censura, aumento
da exploração, explosão da dívida e crescimento da desigualdade. Os mais políticos
garantem que “é necessário corrigir políticas a fim de evitar outras crises”.
Assim
é que não faltam os que querem aproveitar a oportunidade. Uns consideram que
é a altura ideal para acabar com o capitalismo. Dado que
o Estado tem obrigatoriamente de intervir, depois de resolvidos os problemas,
fica por lá e nacionaliza empresas: a
TAP, por exemplo, a EDP, a GALP, os bancos e outras. Não
se admite, dizem, que o Estado tome conta quando há problemas e saia quando
estes estão resolvidos. Como a economia não é tudo, a mesma decisão de
centralização assegura o exclusivo do Estado na saúde e a educação. Hospitais e
escolas devem ser nacionalizados o mais rapidamente possível, só assim se põe
termo à evidente desigualdade de tratamento durante a epidemia.
Por
via do comércio de produtos farmacêuticos, de desinfectante, de máscaras, de
luvas e de viseiras, esta crise revelou a necessidade absoluta de reexaminar o
funcionamento da economia desses sectores: muitos defendem com convicção a
necessidade imperiosa de os nacionalizar imediatamente.
Outros afirmam que é o momento
adequado para acabar com o racismo. Durante a pandemia, todos têm de ser
tratados por igual, o que faz com que os dispositivos de discriminação positiva
fiquem em vigor por longos anos. No mesmo ímpeto, os estatutos dos
estrangeiros, as autorizações de residência, as portas abertas aos pedidos de refúgio
e uma atitude tolerante relativamente à imigração devem entrar imediatamente em
vigor.
Outras
espécies de cidadãos julgam ter bem percebido a origem da pandemia. É
evidentemente do estrangeiro que vem, foi na China que tudo começou e é através
das migrações que o contágio se processa. Não restam dúvidas: travão a fundo na
imigração e proibição de residência a asiáticos e africanos. Há mesmo quem
inclua judeus e muçulmanos nesta lista de perigos. Segundo estes preclaros
defensores da portugalidade, a Nação e a Europa estão em perigo. Salvar uma e
outra implica fechar portas e impedir mestiçagens.
Depois há os que querem acabar com a
União Europeia. A falta de solidariedade
entre europeus, a ausência de um poder democrático e eficiente, o império da
Alemanha e das grandes empresas privadas, a influência das maçonarias e os
novos costumes fazem com que o “projecto europeu” se tenha transformado num mau
serviço prestado aos cidadãos.
Não escondendo um oportunismo de gigantescas proporções, os
planeadores e os engenheiros de almas e de sociedades não disfarçam as suas
ambições de melhorar radicalmente o mundo em que vivemos. Assim, aproveitar a crise e a
emergência para reforçar o poder do Estado, acabar com a desordem urbana,
liquidar os excessos de consumo e de lucros são condições para um futuro
melhor.
Os
partidários de uma racionalidade bem diferente, amigos declarados da autoridade
e defensores de uma cuidadosa vigilância, consideram urgente controlar os
cidadãos, combater os excessos de defesa da privacidade, registar os movimentos
de cada um, vigiar as redes sociais, gravar conversas e seguir os passos de
todos: só assim se conseguirá evitar mais contágio e novas epidemias. É
urgente, dizem, aproveitar esta oportunidade.
Os pensadores mais abstractos e seguramente mais ameaçadores elevam o
tom do debate e consideram, todos os dias nas páginas dos jornais e nos ecrãs
de televisão, que é urgente mudar o modelo de sociedade, substituir os valores
vigentes e alterar os padrões de consumo. Para
esses visionários, só nos salva um novo paradigma de relações sociais e de
hábitos! É este o momento!
Infelizmente, em muitos
aspectos, as condições excepcionais da pandemia em nada alteraram os debates
tradicionais. Os simpatizantes da esquerda apoiam tudo o que for aumento do
Estado e eliminação do que seja privado. Os simpatizantes da direita…
vice-versa! É um confronto de posições adquiridas, não é um debate político. É
um confronto que serve para contar partidários, não para elaborar ideias.
É
verdade que da situação actual podem resultar perigos e ameaças. Direitos dos
cidadãos ameaçados. Privacidade violada. Trabalho sem protecção. Despotismo dos
poderosos no Estado ou na empresa. E mais… Mas não tenhamos dúvida de que grandes perigos vêm dos
que querem salvar a humanidade, mudar paradigmas e substituir modelos de
sociedade. São esses engenheiros, por ninguém mandatados, intelectuais
de boulevard ou da favela, que inventam sociedades e transformam a
crise em alavanca. Para
eles, a miséria é purificadora e precede o renascimento. A história e a
mitologia estão cheias desses momentos de redenção. O mais famoso talvez seja o
Dilúvio, inundação planetária contada nos livros do Génesis ou nos Puranas
hindus. As Pragas do Egipto, contadas no Êxodo, são outra forma de castigo. A
peste, Negra ou Bubónica, faz parte do mesmo rol. Muitas outras catástrofes,
inundações, fomes, terramotos, vulcões e grandes incêndios marcaram, ao longo
dos séculos, a história dos povos. Muitas atingem números inimagináveis de
dezenas de milhões de mortos! Sem falar noutras desgraças, como a varíola, a
tuberculose, o SIDA e o sarampo cuja acção fatal se prolonga por vários anos ou
décadas.
Como é sabido, grandes pragas ou desastres podem transformar-se
depois em pretextos para esclarecer o poder. O nosso Marquês de Pombal é um
exemplo, real ou mitológico, de como é possível aproveitar um desastre para
estabelecer um ditador.
Tal
como os que desejam aproveitar as catástrofes, também os belicistas defensores
do apuramento da humanidade repetem a ideia de que é necessária uma guerra para
purificar. Porque há gente a mais. Porque há fome. Porque há declínio das
sociedades com costumes degradados. Perante estes desenvolvimentos, uma nova
guerra poderia fazer jeito. Reduziria as bocas e diminuiria a pressão dos
estrangeiros.
A ideia central destas reflexões é a de que uma guerra purifica. Partindo do princípio de que morrem os maus e
ficam os bons. Com a pandemia actual, não andamos muito longe desses devaneios.
É impressionante o número de pessoas que esperam que uma catástrofe seja a
oportunidade para resolver problemas. Eles não sabem o que dizem…
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
Mario
Coimbra, EXPERIENTE: Excelente como sempre. Tenho pena que muita gente não
perceba as suas crónicas. 19.04.2020
Fowler
Fowler, INICIANTE: : Só faltavam os imitadores dos intelectuais de
boulevard aproveitarem-se também desta crise sanitária para, através da técnica
do diz que disse, ressuscitar o medo. Lembro que, há alguns anos, estes
inflamaram a opinião pública com a necessidade de por cá se mudar de
paradigmas, pretendendo transformar a crise económica e financeira de então
numa oportunidade para refundar os pilares da República e da sociedade,
purificando-as, qual Fénix renascida. Estes artistas acham mesmo que vamos
esquecer-nos das suas habilidades e invectivas ao sabor dos ventos.
19.04.2020
CS.788492 INICIANTE: É
verdade, temos muitos profetas e têm palco e são pagos; se calhar um trabalho
de investigação jornalística sobre muitas das “categóricas” profecias que têm
sido reveladas ao longo dos anos, confrontando-as com os factos, viesse pôr
alguma reflexão nos media que proporcionam estas alarvidades. Lembro-me por
exemplo de um sujeito, a propósito da crise do petróleo, afirmar
categoricamente, que o barril do crude jamais viria para baixo dos 90 dólares;
Outros diziam que a barragem do Alqueva nunca atingiria a capacidade máxima; O
Alentejo ia transformar-se num deserto. Confesso que vivendo em Lisboa, mas
sendo alentejano da raia, admiti trocar o automóvel por um camelo. 19.04.2020
Joao Garrett INICIANTE: Excelente
artigo, uma vez mais. Devíamos todos reflectir bem no que aqui se diz. Muito
obrigado! 19.04.2020
GMA INICIANTE: Uma pandemia
não é umas guerra porque nesta quem normalmente se "safa" são os
fabricantes de armas; numa pandemia, quem pode ganhar é a Humanidade através
da Ciência. E se nem a guerra nem a pandemia purificam, em ambas as
ocasiões poderia esperar-se dos "cientistas de tudo" como o Sr.
Barreto, honestidade intelectual e não divagações sobre
"nacionalizações", geradas por mentes perturbadas pelo cansaço das
elucubrações com que preenchem páginas de nada. 19.04.2020
GMA INICIANTE Grande
“percebedor” Sr. Mário Coimbra, lembro-me da velha estória do novo-rico que
tinha quadros muito sofisticados pendurados ao contrário e que todos os
intelectuais adoravam... 19.04.2020
Alberto
Pereira INFLUENTE:s Uma boa análise do autor. Neste momento todos querem
reformar o Mundo e, ao mesmo tempo, receber uma ajudazita do Estado... 19.04.2020
Sethe INICIANTE António
Barreto de há tempos a esta parte que escreve com o espírito de fiel de armazém
reformado. Voluntariza-se para arrolar todas as existências e no final diz
que está tudo podre. Espantoso! 19.04.2020
viana EXPERIENTE Mais
do mesmo António Barreto. Sempre o mesmo: está tudo mal mas o melhor é nada
fazer porque senão de certeza (não é pode...) ficará pior. O imobilismo no que
tem de mais puro. O tonto que ao pregar para que nada se mude ajuda a manter o
sistema que mais mudança gerou em toda a história da humanidade. Mudança com
uma fúria destruidora que nos deixou à beira do precipício. 19.04.2020
Luís Pires INICIANTE: "Para
eles, a miséria é purificadora e precede o renascimento." Dio mio!
Este homem, outrora equilibrado, resvala sempre para o reaccionarismo. Como
alguém muito bem escreveu, das grandes guerras e cataclismos novas formas de
ver e de viver os mundos surgem. O que me aflige neste sociólogo é de fazer
boas radiografias mas de ser cada vez mais restritivamente depauperado nas
análises, com um "inimigo" cada vez menos subliminar. 19.04.2020
Jose MODERADORO cardápio
das banalidades que sempre ocorrem por pequenos, médios e grandes eventos, cada
um puxa a brasa à sua sardinha! Mudou tudo para quem já morreu e para os que
continuarão a morrer em consequência de uma doença que não existia há 4 meses.
Não vai acabar o mundo nem a água dos rios deixará de correr para mares e
oceanos. Há uma paragem parcial na produção, distribuição e consumo. Os agiotas
continuam a ser agiotas, os poderes supraestaduais continuam a ser escritórios
de tecnocratas a soldo dos lobys, os poderes políticos reforçam-se para
obedecerem aos tecnocratas e estes aos lobys e todos ao garrote da agiotagem.
Patrões que ontem prescindiam dos Estados estão à porta do cofre desses Estados
a sacar o máximo para rápido passar para offeshores e os trabalhadores perdem
mais e mais! 19.04.2020
jabsantos1709.894864 INICIANTE Mais um conjunto de palavras do que se considera
"um grande português". A ler só o primeiro parágrafo. (E o título) 19.04.2020
AndradeQB MODERADOR Uma
catástrofe é sempre o contrário que se precisa para resolver problemas, mas
pode ser sempre uma oportunidade de negócio. Não sei de onde, nem como surgiu
ou quem o disse, mas ouvi como uma constatação disto "quando vires correr
sangue pelas ruas, compra terreno". Cada um tem o seu negócio. Nem toda a
gente anda no negócio do imobiliário. 19.04.2020
elvira
justiceira INICIANTE: um meta-artigo de opinião capcioso e valorativo.
Muitas figuras do mainstream mundial, como pensadores e políticos de quadrantes
políticos centrais, acham que é tempo de mudar. O próprio Macron, que não será
certamente um dos "pensadores mais abstractos e seguramente mais
ameaçadores", disse isso FT ("it is time to think the
unthinkable"). Segundo o autor, estas figuras não passarão de uns
oportunistas, e o pensamento progressista de "um oportunismo de
gigantescas proporções". O que é isto senão reaccionarismo? 19.04.2020
Manuel
Pessoa INICIANTE: Compreende-se o que AB teme perante algumas reacções,
das bem-intencionadas às claramente dolosas, ao desastre que todos enfrentamos.
Espero que esse receio não se traduza em imobilismo, mas sim em cautelas que
salvaguardem os adquiridos. Tal como o terramoto não criou apenas um ditador
(levou à reconstrução da cidade em moldes modernos de que hoje desfrutamos)
também se vislumbra agora oportunidade para estudar e reparar aspectos da vida
social que doutro modo não teriam probabilidade de ser reparados, como, por
exemplo, algumas fragilidades do nosso SNS e o rudimentar sistema de
assistência a "idosos". E há mais.
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