Toda a literatura desde Homero está
pejada de assassinatos, quer míticos, quer históricos, o que prova a infinita
capacidade humana de intriga para os engendrar e Shakespeare é bem prova disso,
mas as lendas são muitas e as intrigas policiais o demonstram continuamente,
além doutros artífices do crime que os jornais patenteiam. Não deixa de ser curiosa
a forma como Fernão Lopes descreve o
acontecimento da morte do Andeiro e que JPP
tão sagazmente aponta, mostrando a qualidade literária de F. Lopes, de vivacidade de movimentação
em torno de um caso e igualmente de conhecimento humano, na análise
comportamental dos intervenientes. Como os seus comentadores, também eu fico
grata a JPP pela valorização de um
grande escritor e cronista nosso.
OPINIÃO: Um assassinato político ao modo
da máfia
Resolvi agora visitar os magníficos
textos de Oliveira Martins e da sua fonte Fernão Lopes, nenhum dos quais
apanhou com a covid-19 e continuam, intactos, a ser do melhor da língua
portuguesa e da história de Portugal. É pena que hoje se leiam pouco, mas isso
é outra pandemia.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA PÚBLICO, 25 de
Abril de 2020
O
segundo volume da biografia
de Álvaro Cunhal termina com a sua prisão no Luso. Descrevendo o
evento, disse que os pides que tinham participado na operação estavam
“felizes”. O Manuel Villaverde Cabral disse-me, meio a brincar e meio a sério:
“Como é que tu sabes que eles estavam felizes?” Não sabia, claro, mas sabia. Só
que não havia fontes para a afirmação. Respondi ao Manuel: “Olha, fiz como o
Oliveira Martins quando relata a morte do Andeiro e as reacções da rainha.”
Resolvi
agora visitar os magníficos textos de Oliveira Martins e da sua fonte Fernão
Lopes, nenhum dos quais apanhou com a covid-19 e continuam, intactos, a ser do
melhor da língua portuguesa e da história de Portugal. É pena que hoje se
leiam pouco, mas isso é outra pandemia.
A
melhor propaganda para a leitura são mesmos os textos. Veja-se este excerto de
Fernão Lopes:
“O Mestre, que mais vontade tinha de o
matar que de estar com ele em razões, tirou logo um cutelo comprido e
enviou-lhe um golpe à cabeça, porém não foi a ferida tamanha que dela morresse,
se mais não houvera. Os outros que estavam derredor, quando viram isto,
lançaram logo as espadas de fora para lhe dar, e movendo-se ele com aquela
ferida para se acolher à câmara da Rainha, Rui Pereira, que era mais cerca,
meteu por ele um estoque de armas de que logo caiu em terra morto. Os outros
quiseram-lhe dar mais feridas, mas o Mestre disse que estivessem quedos e
nenhum foi ousado de lhe mais dar. (…) E era o Mestre, quando matou o Conde, em
idade de vinte e cinco anos e andava nos vinte e seis. E foi morto aos seis
dias de Dezembro, na era já escrita de quatrocentos e vinte e um.”
Foto: "Leonor Telles diante do cadáver do conde de
Andeiro”, Roque Gameiro (1864–1935)
O
que aqui se relata é um assassinato político. É precedido por uma discussão
sobre comida. O Andeiro convidara o Mestre a comer com ele, e insistiu várias
vezes. A resposta foi que já tinha “feito de comer”. Ficando assim o Conde
João Fernandes, gastava-se-lhe o coração, e tornou a dizer ao Mestre, - Senhor,
vós todavia comereis comigo. - Não comerei, disse o Mestre, que tenho feito de comer.
- Sim, comereis, disse ele, e enquanto
vós falais, irei eu mandar fazê-lo prestes. - Não vades, disse o Mestre, que vos hei-de
falar uma coisa antes que me vá, e logo me quero ir, que já é horas de comer.
A “coisa” era matá-lo, o que ele fez
logo em seguida. Mas é a comida que
marca o tempo dos acontecimentos, e a uma dada altura o Mestre quer apressar a
“coisa” para poder ir almoçar.
O
que estes textos permitem é “ver” o que se passou, como se fosse um filme, e
quando os lemos é como se estivéssemos lá dentro, no Paço Mas o texto tem
muitos detalhes interessantes, a começar pelas idades. O Mestre tinha 25 anos,
e a maioria dos que o acompanhavam rondavam por idades semelhantes. Eram homens
habituados à guerra e à violência, não se comportavam de forma diferente de um grupo
de mafiosos dos filmes, ou de um gang como os Peaky Blinders. Andavam todos armados. Numa resposta à rainha,
que lhes disse que os ingleses não andavam armados a não ser em tempo de guerra
– Os ingleses hão mui bom costume, que quando são no tempo da paz não trazem
armas nem curam de andar armados, mas boas roupas e luvas nas mãos como
donzelas–, o Mestre respondeu-lhe que não eram “donzelas”. E: “Seno tempo
da paz não usarmos as armas, quando viesse a guerra não as poderíamos suportar.” E a guerra vinha mesmo a caminho.
Havia
motivos que hoje consideramos nobres, mas havia também animosidades pessoais e
conflitos de território, propriedade, poder e “respeito”. A máfia também se apresentava como protegendo a
comunidade italiana dos abusos das autoridades. E havia também a punição ao
Andeiro, porque dormia com a rainha, “com a mulher do seu Senhor”. O
pormenor que conta Fernão Lopes dos que queriam continuar a espadeirar o morto
também é dos filmes, quando a uma bala que mata se seguem várias de pura raiva.
E, continuando na máfia, um dos companheiros preparava-se para roubar as
pratas, a pretexto de cobrir as despesas– “Já vós aqui
tendes para a despesa de hoje” –mas o
Mestre recusou. Havia também a comunicação social da época, o pajem “que
fosse depressa pela vila, bradando que matavam o Mestre”, para mobilizar o povo ao lado dos conspiradores.
Depois,
há o português antigo “gastava-se-lhe
o coração”, os condes amigos do
Andeiro quando souberam do sucedido, “cada um trabalhou de se pôr a
salvo”, etc., etc. Ou seja, tudo bom.
O que estes textos permitem é “ver” o que se passou, como se fosse um filme, e,
quando os lemos, é como se estivéssemos lá dentro, no paço, presumo que do lado
do Mestre com um espadalhão à cintura, mais nobre do que um insidioso punhal. E
sangue, muito sangue, tão habitual que Fernão Lopes não fala nele. PÚBLIC
COMENTÁRIOS:
nelsonfari
EXPERIENTE: Muito versado na altura do 25 de Abril de 1974 - nos anos
imediatamente subsequentes - o tema do período de 1383-1385, com a passagem
para o tempo do Mestre de Aviz, D.João I e o início, algumas décadas depois, da
expansão colonial (Henrique, um dos filhos de D.João I, seria o timoneiro desse
empreendimento). Borges Coelho analisou também este período, numa perspectiva
de confrontação social. O Grupo de Teatro de Campolide teve muito tempo em cena
o "Filopopulus, o amigo do povo", alusivo a este período. Existe uma
edição da Crónica de Fernão Lopes pela Europa-América, de 1977, com a
reprodução do texto original e um resumo dos 197 capítulos, em português de
hoje, da autoria de José Hermano Saraiva. Um período - 1383-1385 muito crítico
para Portugal, com a ameaça de Castela à ilharga.
Maria
Odete Vilas Coutinho MODERADOR: Já conhecia - de todo o modo, sublime.
Ocorre-me destacar dois pormenores divertidos, a saber: o facto de a rapaziada
com idades de vinte e tal anos, da época, andar já a conceber e a executar
obras tais, hoje seriam referidos como jovens e como tal protegidos...Por outro
lado, o pajem apregoador de notícias falsas, a preparar boas reacções aos
factos opostos, que a seguir teriam de ser conhecidos, é a versão medieval das
fake-news do nosso tempo, sem tirar nem pôr. Muito bem lembrado!
Joao
EXPERIENTE: Bom, eu fico-me só pelos textos reproduzidos. Fiquei aí.
Substratos, sem conotações. São, posso dizer?, orgásmicos. Fiquei aí, reli, e
reli. 25.04.2020
Ceratioidei EXPERIENTE: Excelente. Um texto que dá gosto ler. Na
data certa, no momento certo. A minha pátria é a minha língua. Sem dúvida.
Obrigada, Professor. 25.04.2020
Armando Heleno
EXPERIENTE: Por outro lado, o lado bom, o sr Dr Pacheco Pereira delicia-nos
com estas preciosidades medievais, uma delícia em dia de cravos. Venham muitas
mais e serão bem recebidas. 25.04.2020
DCM EXPERIENTE: Obrigado P.Pereira. Além da boa disposição que me proporcionou
fez-me recordar tempos que já lá vão. Oh mãe ! oh mãe ! cala-te rapaz , não vês
que estou a fazer de comer . 25.04.2020
Armando
Heleno EXPERIENTE: Nunca imaginava Pacheco Pereira a
escrever sobre Cunhal. Aviso desde já que não ligo à política, apenas a danos
colaterais. Escrever sobre um personagem que seguia ipsis verbis a lenga lenga
do seu chefe, VIU, o personagem político mais sinistro da história? Como foi possíveL?
Como? 25.04.2020
cisteina EXPERIENTE: Excelente, um bom texto, muito apropriado
à data de hoje, outra revolução, sempre a caminho e em luta “por mor do povo”
mais infeliz, ainda há muito caminho a percorrer. 25.04.2020
henrique
Mota EXPERIENTE: Excelente e tão bem explicada a
elevadíssima mortalidade dos velhos atingidos pelo CoVi -19 : "porém não
foi a ferida tamanha que dela morresse, se mais não houvera." Dr. Fernão
Lopes. 25.04.2020
rafael.guerra
EXPERIENTE: Grato JPP pelo jornal de pérolas portuguesas. Venham mais com
vida e sem covid. Saúde. 25.04.2020
Sima
Qian INFLUENTE: Muito estudei esta passo da Crónica... E
Oliveira Martins, Deus meu, os Filhos de D. João I devia ser leitura
obrigatória. 25.04.2020
Armando
Heleno EXPERIENTE: E nem só isto. É uma tristeza enorme que
sinto, quando falo fugazmente com esta malta brava. É de arrepiar e bradar aos
céus! E se não acompanham a nossa linguagem (que é a ordem do dia) ripam logo
do artefacto e viradinhos ao google...à sua salvação. E não estou a falar dos
4ª classe ou secundário, senhores, refiro-me também aos capas negras! Nuno
Crato estava no bom caminho. Mas o que é bom, custa muito. 25.04.2020
Teatro
da Rainha INICIANTE: Maravilha!
Estamos diante de um português arcaico que tem vida viva hoje. Como se fora
prosa com vontade anímica. Em boa hora JPP se lembrou de o trazer ao 25 de
abril. 25.04.2020
FPS
INFLUENTE: Grande Pacheco Pereira, que te lembraste de Fernão Lopes (este
tratamento por tu, que não o conheço de lado nenhum, acredite Pacheco Pereira
que é puro respeito!).... É brutal, é um assombro estas palavras saídas da crua
inteligência do nosso grande cronista e excepcional escritor medieval. Também
são deliciosas as crónicas do "Rei D. Pedro", que é exactamente como
diz, JPP, estamos a ver a idade média e as brutalidades do rei como se fosse
num filme (eu até diria mais: ler estas páginas de Fernão Lopes vê-se melhor a
realidade do que num filme!). Haja alguém neste país - e com poder para tanto -
para promover a nossa cultura e os nossos valores literários. Muito agradecido,
JPacheco Pereira (que já não lia Fernão Lopes há que tempos).
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