Embora fora do âmbito novelesco, as
tendências exploradoras do macabro também se observaram na poesia, como é
exemplo “O Noivado do Sepulcro” de Soares de Passos, que o povo da aldeia onde nasceu a
minha mãe cantava e que por isso com ela aprendi e ainda cantarolo, embora não
esperasse fazê-lo em tempo de “corona vírus”. Mas porque o estudo de Rita
Cipriano é publicado neste tempo de reduzida esperança,
transcrevo as cinco primeiras estrofes que ainda recordo do poema que cheguei a
saber quase na íntegra, porque tive ocasião de exemplificar o ultra-romantismo com
textos de que trata a autora do texto sobre a literatura gótica, na altura encarados
com repúdio, pelo irrealismo sentimentalista pouco adequado a uma juventude
alegre de que também participei. O poema narrativo vem na Internet, e as cinco estrofes servem de homenagem a Rita Cipriano pela sua
boa síntese:
O Noivado do
Sepulcro
Vai alta a
lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim: …….
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim: …….
De Alexandre Herculano a Mário de
Sá-Carneiro: a (pouca) literatura gótica que se escreveu em Portugal /premium
Introduzida
tardiamente em Portugal, a literatura gótica teve pouca expressão entre os
autores nacionais. Existem, porém, alguns exemplos do género, agora resgatados
num novo livro.
RITA
CIPRIANO Texto OBSERVADOR, 05 abr 2020
Índice:
Hoje
entende-se por literatura gótica peças que envolvam um ambiente assustador,
sombrio ou sobrenatural. No sentido original, contudo, o termo aplica-se a um
conjunto mais restrito de obras, publicadas entre 1764 e as primeiras duas
décadas do século XIX, quando surgiram romances icónicos como Drácula ou Frankenstein. Tratando-se de um género
essencialmente britânico, mas com bons exemplos em países como França e
Alemanha, o gótico teve pouca expressão em Portugal. As razões são
várias e prendem-se, por exemplo, com a fraca qualidade das traduções,
que chegaram já tardiamente. Isso não quer dizer que a literatura gótica não
tenha sido praticada por escritores portugueses, ainda que de uma forma muito
particular. Alguns exemplos podem ser encontrados no livro A Dança
dos Ossos. Antologia
do Conto Gótico Luso-Brasileiro, recentemente editado
no âmbito da colecção Livros B.
Com organização de Ricardo Lourenço e prefácio de António Monteiro, a colectânea inclui alguns
nomes célebres portugueses e brasileiros, como Alexandre
Herculano, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis ou Bernardo Guimarães, e outros mais obscuros, como
Beldemónio, numa selecção que pretende manter “um certo equilíbrio em termos de
autores”, dando destaque a alguns menos célebres, e “constituir uma amostra
exemplificativa dos principais elementos e temáticas da literatura gótica”,
explicou ao Observador o organizador do volume, que surgiu pelo “gosto pessoal
pela literatura gótica” de Ricardo Lourenço, um formado em Gestão e
Análise Financeira e responsável pelo Projecto Adamastor, que tem vindo a contribuir
com contos para revistas portuguesas e brasileiras dedicadas ao terror e ao
fantástico, como a Bang! (onde António Monteiro também participou) ou Diário Macabro.
Na decisão de fazer uma antologia de autores
portugueses e brasileiros que exploraram o género gótico pesou o facto de ser “um
género literário bastante menosprezado pela crítica, que chega ao nosso mercado
essencialmente através de obras traduzidas”, apontou o organizador. “Pareceu-nos
importante dar a conhecer a produção em língua portuguesa, demonstrando, por um
lado, que o gótico não é um domínio exclusivo da literatura anglófona e, por
outro, que o contexto histórico-cultural de Portugal e do Brasil influenciou o
imaginário dos seus escritores”, afirmou ainda.
[Leia aqui o conto
gótico de Camilo Castelo Branco, “A Caveira”:]
Em Portugal,
o gótico desenvolveu características muito próprias. Ao contrário dos britânicos, os autores portugueses
tinham tendência a concentrarem-se mais nos aspectos melancólicos e poéticos do
género do que no terror sobrenatural, raro em Portugal. Isso é visível em alguns contos incluídos em A
Dança dos Ossos,
nomeadamente em “A Caveira” (1855),
de Camilo Castelo Branco, a
história de um amor desafortunado, maior do que a morte, que leva o jovem
apaixonado a desenterrar o cadáver da sua amada. Por outro lado, quando o
terror surge, nos textos portugueses está geralmente ligado às histórias de
fadas e ao folclore, como no famoso conto “A Dama Pé-de-cabra”, de Alexandre Herculano, incluída também na colectânea. Da mesma forma, o
gótico brasileiro foi fortemente influenciado pelo folclore e crenças populares
do Brasil.
O que é a literatura gótica?
Originalmente, o termo “gótico” referia-se aos godos,
o povo germânico que desempenhou um importante papel na queda do império romano
do ocidente, e a uma corrente arquitectónica da Baixa Idade Média. Na
literatura, começou a ser usado no século XVIII, para descrever histórias de
terror ou suspense que se passavam em antigos monumentos, castelos ou mosteiros
em ruínas, numa espécie de revivalismo da época medieval. A produção
daquilo a que se chama literatura gótica começou aproximadamente em 1764, a
data da primeira edição de O Castelo de Otranto, do inglês Horace
Walpole (que, na
segunda edição do romance, lhe acrescentou o subtítulo “Uma história gótica”),
e continuou até à década de 1820, quando foram publicadas algumas obras
fundamentais, como Frankenstein, de Mary Shelley (1818), ou Melmoth the Wanderer, do irlandês Charles
Maturin (1820). As
obras de Ann Radcliffe, pioneira do género, tornam-se particularmente
populares, dando origem a inúmeros imitadores. O sucesso do gótico chegou a
ser tal que Jane Austen o ridicularizou no romance Northanger Abbey (1818).
Segundo António Monteiro, professor universitário de
Matemática, escritor de contos de terror e autor da introdução de A
Dança dos Ossos, “a literatura gótica combinava elementos sobrenaturais e de terror com
aspectos derivados do período do romantismo, movimento artístico e filosófico
que teve o seu início no final do século XVIII, estendendo-se ao longo do
século seguinte, até certo como como reação à corrente racionalista. O romantismo
caracterizou-se pela prevalência do sonho e da fantasia, da imaginação popular,
baseada em contos e lendas tradicionais. Por extensão, o género gótico procura retirar do terror e do sobrenatural — por
vezes a ser explicado em termos naturais — um determinado prazer estético,
através da contemplação do sublime”, explicou ao Observador.
Apesar de se ter espalhado por outras regiões
europeias, incluindo a Rússia, a literatura gótica pouca expressão teve em
Portugal. Isto deve-se ao “estrito puritanismo da época”, que “atrasou
sobremaneira a entrada do novo género, sendo muito tardia a publicação, em
português, das obras clássicas”, referiu Monteiro. “Walpole permaneceu quase desconhecido
entre nós durante a maior parte do século XIX. O célebre romance O Monge, de Matthew Gregory Lewis, só foi traduzido em 1861, enquanto o importante Os Mistérios de
Udolfo, de Ann Radcliffe só cá chegou em 1840. Drácula, de Bram Stoker, teve de aguardar até ao ano
de 1953 para ter uma versão em português… A literatura gótica, que se tinha
estendido a países como a Grã-Bretanha, a França ou a Alemanha, chegou assim a
Portugal demasiado tarde e foi divulgada através de traduções de má qualidade,
que a tornaram pouco atraente”, apontou ainda. “A maioria dos intelectuais
nacionais encontrava-se já em pleno romantismo, não sentindo atracção pela
literatura do medo, dada a evolução da cultura lusa e até o nosso clima
soalheiro, pouco propício a assombrações, ainda que elas não faltem na
literatura popular.”
No Brasil, não foi muito diferente. Também o “puritanismo” da
sociedade brasileira terá tido o seu papel na receção, igualmente tardia, da
literatura gótica no país, “apesar da riqueza das tradições locais relacionadas
com o sobrenatural, onde se misturam elementos nativos com outros oriundos da
Europa e da África”, como apontou Monteiro. De acordo com o autor da
introdução de A Dança dos Ossos, “considera-se geralmente que o género gótico foi
introduzido no Brasil pelo prematuramente falecido escritor Álvares
de Azevedo,
nomeadamente através da sua colecção de contos Noite
na Taverna, publicado apenas em 1855”.
A (pouca) literatura gótica que se escreveu em
Portugal
A primeira novela original portuguesa em que é
possível encontrar traços da literatura gótica é “Adelaide de
Clinter” (1840). Segundo
Maria Leonor Machado de Sousa, autora do único grande estudo sobre este género
literário em Portugal, o significado do aparecimento de “Adelaide
de Clienter“ é
“diminuído, no entanto, pelo facto de a acção decorrer em ambiente inglês, das
famílias que vivem retiradas nos castelos góticos e vão passar em Londres a
estação elegante”. Trata-se, segundo a investigadora, “de uma obra sem o mínimo
valor artístico, qualquer que seja o aspecto por que a encaremos”.
Os primeiros indícios de que os temas associados ao
gótico começavam a gerar interesse em Portugal são, no entanto, anteriores e
podem ser encontrados em dois poemas publicados alguns anos antes em Lisboa: “A
Noite do Castello”, de António Feliciano de Castilho, e “Leonido, ou os amantes suevos”, de José Maria da Costa
e Silva, “os
primeiros de uma longa série de romances em versos escritos durante todo o
romantismo”, referiu Maria
Leonor Machado de Sousa no estudo “A Literatura “Negra” ou de Terror em Portugal
(Séculos XVIII e XIX)”. “A Noite do Castello” (1836), exemplo de um romantismo nocturno e de inspiração medievalista,
foi considerado por alguns autores o único romance gótico português". A maioria dos
intelectuais nacionais encontrava-se já em pleno romantismo, não sentindo atracção
pela literatura do medo, dada a evolução da cultura lusa e até o nosso clima
soalheiro, pouco propício a assombrações, ainda que elas não faltem na
literatura popular.” António Monteiro
Outra obra que pode ser apontada como uma das
primeiras do género em Portugal é a colectânea Contos Phantásticos (1865), de Teófilo Braga. Na opinião de António Monteiro, outro conjunto de textos que
merece igualmente destaque é Diabruras, Santidades e Prophecias (1894), de Augusto
Carlos Texeira de Aragão, militar, médico, arqueólogo e historiador que reuniu neste livro
alguns contos tradicionais e lendas envolvendo bruxas e lobisomens. É
também associada à tradição oral e popular portuguesa que surge “A
Dama Pé-de-cabra” (1843), de Alexandre Herculano. Publicado nos números 88, 91 e 95 da revista O Panorama, trata-se do conto
mais antigo da antologia, que encerra a secção portuguesa com “A Estranha Morte do Professor Antena” (1913), de Mário de
Sá-Carneiro, um autor que, embora associado às correntes do decadentismo e
modernismo, explorou o sobrenatural nalgumas das suas novelas.
Surpreende é também talvez a presença de autores como Eça de Queiroz ou Florbela Espanca. Apesar de ser mais associada
à poesia, Florbela dedicou os últimos anos de vida, após a morte do seu irmão
Apeles, à escrita de prosa, que foi depois compilada em dois volumes editados
postumamente. O conto escolhido para integrar esta antologia, “A Morta”, fala de um relacionamento entre dois seres de
mundos opostos, apenas possível “devido à atenuação da linha que separa a vida
e a morte”. Eça é outro exemplo de um importante romancista português que explorou,
ocasionalmente, temas góticos. A inclinação do escritor para o mistério e o fantástico
é evidente em obras como O Mistério da Estrada de Sintra (1870) ou O
Mandarim, mas no conto “O
Defunto” foi um pouco
mais longe, criando um ambiente medieval e trilhando “os caminhos sombrios
do gótico, explorando temas que o género herdou do romantismo, como o ciúme, o
ódio e a traição”. [Leia aqui o conto
“O Vampiro”, de John William Polidori, que criou a imagem que hoje temos do
vampiro:]
A inspiração medievalista é, de resto, uma das
principais características da literatura gótica portuguesa, assim como “uma
certa tendência para situações melodramáticas”, apontou Ricardo
Lourenço ao Observador. O “uso do
sobrenatural é bastante frequente, assim como são os traços populares. Muitas
vezes, as histórias passam-se em espaços lúgubres ou em localidades rurais.” Contudo, nos exemplos mais
recentes, da viragem do século XIX para XX, é possível encontrar um cenário
mais urbano, que dá lugar à paisagem do campo. São exemplo disso contos como “Sede
de Sangue” (1909), do
escritor e político Manuel Teixeira Gomes, um dos primeiros textos portugueses que tratam o
tema do vampirismo, e também “A Estranha Morte do Professor
Antena”, que surgem
em último lugar na antologia, organizada não pela data de publicação, mas pela
época retratada.
Razão vs. superstição: o gótico colonial brasileiro
No Brasil, o estilo gótico começou por se manifestar
dentro do romantismo, quando poetas e ficcionistas procuram estabelecer as
bases de uma literatura nacional. Costuma considerar-se que o género foi
introduzido no país por Álvares de Azevedo, autor de Noite na Taverna, colectânea editada
postumamente em 1855. O primeiro conto, o homónimo “Noite na Taverna”, é o primeiro da secção
brasileira da antologia de Ricardo Lourenço. Segundo o organizador,
destaca-se por o autor se ter libertado “das convenções da época, expondo os
vícios e os crimes de um grupo de boémios, numa sucessão de histórias que
tratam os temas mais insólitos e macabros, como a necrofilia, o canibalismo e o
infanticídio, sendo evidente a influência de Lord Byron”.
Uma das primeiras obras brasileiras a explorar alguns
dos aspectos característicos da literatura gótica britânica foi Guarani
(1857), de José de
Alencar. Apesar de não
ter sido concebido como um romance gótico, o estilo gótico é evidente na utilização
que o escritor fez do sublime e no enaltecimento de ideias progressistas, uma
das principais características aquilo a que certos autores chamam o gótico
colonial, um subgénero que se distingue “pelo confronto entre o meio citadino e
o mundo rural, muitas vezes colocando as personagens em ambientes que lhes são
estranhos”, explicou António Monteiro. “O atraso de determinadas populações sertanejas,
presas a superstições e ao medo dos fenómenos sobrenaturais, é assim
contraposto ao progresso de um país em evolução. É o contraste entre a cidade
progressista e um sertão primitivo, atrasado e supersticioso, que leva a
literatura referente a essa meio a enquadrar-se no género gótico”, apontou
ao Observador.
Caminho da Pena",
do português João Cristino da SilvaEste contraste entre o que é moderno e as crenças de
tempos antigos também foi tratado pelos autores britânicos — para destruir Drácula, símbolo de um tempo que a
modernidade quer fazer desaparecer, Van
Helsing tem de usar todo o conhecimento ao seu alcance, tanto antigo como
moderno; por outro lado, em A Marca da Besta (1890), de Rudyard Kipling, um
britânico que insiste em desdenhar certos lugares sagrados na Índia acaba, como
castigo, por se transformar num lobisomem.
Um bom exemplo do gótico colonial é o conto que dá
nome à antologia da Livros B, “A Dança dos Ossos” (1871), de Bernardo
Guimarães, principal responsável pela disseminação do género no Brasil. Publicado pela primeira vez
em Lendas e Romances, é o relato
incrédulo de um habitante de uma cidade que, enquanto viaja pelo caminho que
ligava Goiás a Minas Gerais, conhece um homem, Cirino, que lhe conta como certo
dia se deparou com um esqueleto que dançava perto de um rio. No final, a
verdade por detrás da história da dança dos ossos acaba por se revelar bem mais
aterradora do que qualquer antiga superstição.
"Os autores brasileiros
revelam-se mais arrojados e sensacionalistas, mas também mais capazes de
provocar uma resposta emocional por parte dos leitores, não se coibindo de os
chocar através da descrição de actos repulsivos, tanto a nível físico como moral.” Ricardo Lourenço
É
também sobre o lado mais negro do ser humano que trata o romance mais famoso de
Guimarães, A Escrava Isaura
(1875), onde é também possível encontrar temas góticos e medievalistas. Também significativo é o poema “Orgia dos Duendes”,
em que o escritor misturou o folclore europeu com o brasileiro. “Muitas
narrativas [brasileiras] expõem os horrores do regime escravocrata e do racismo
inerente a esse regime, ou exploram a degradação moral do homem quando este
cede aos seus instintos animais”,
sintetizou Ricardo Lourenço. “São
comuns as histórias de fantasmas, ou que tratam da possibilidade da vida após a
morte, algo que se deve muito ao sucesso do Espiritismo no Brasil. Os cenários
predominantes são o sertão e o ambiente decadente dos espaços urbanos.”
Comparativamente
com o gótico português, “os autores brasileiros revelam-se mais arrojados e
sensacionalistas, mas também mais capazes de provocar uma resposta emocional
por parte dos leitores, não se coibindo de os chocar através da descrição de actos
repulsivos, tanto a nível físico como moral”, apontou Lourenço. “De forma
sucinta, e correndo o risco de generalizar em demasia, creio que os textos
portugueses são mais melancólicos, mais contidos na linguagem e nas temáticas
abordadas, evidenciando também um certo lirismo.”
Imortal como um vampiro
Apesar de ter continuado a ser
produzida depois da época vitoriana, foi no final do reinado da rainha Vitória que o género começou a
passar de moda. A sua influência estende-se, contudo, muito além dos finais do
século XIX, e chega mesmo até aos dias de hoje. O terror, característica
fundamental do género, continua presente na literatura contemporânea e noutras
artes, como o cinema. Figuras como Drácula ou Frankenstein nunca deixaram de
ser populares, e Hollywood continua a produzir filmes baseados nos romances
originais de Bram Stoker e Mary Shelley. Mas porque é que será que isso
acontece?
António Monteiro acredita
que foi precisamente o cinema o responsável por perpetuar as histórias que os
escritores do século XVIII e XIX criaram. “A
produção de filmes como ‘The Phantom of the Opera’ [1925],
‘Dracula’ [1931] ou ‘Frankenstein’ [1931] e outros, de grande êxito
junto do público, levou o género a sucessivas gerações de espectadores e
potenciais leitores, renovando assim o interesse pelo universo gótico”, considerou. “Além desse estímulo claro, é inegável
que o mundo do terror continua e continuará a exercer sobre todos nós uma clara
atração. Segundo o famoso e importante escritor norte-americano Howard P. Lovecraft, ‘a mais antiga e mais forte emoção do ser
humano é o medo e a mais antiga e mais forte forma de medo é o medo do
desconhecido’”,
acrescentou. [Entrevista ao sobrinho-bisneto de Bram Stoker,
Dacre Stoker:]
Na opinião de Ricardo Lourenço, existem vários motivos para
“tal popularidade”. “Primeiramente, apesar de se soltar das amarras do
realismo, a literatura gótica não se trata de mera fuga à realidade, bem pelo
contrário: através dos elementos ficcionais que lhe são característicos, o
gótico reflecte, figuradamente, não só acerca de importantes questões
políticas, sociais e culturais, mas também sobre os medos da sociedade, medos
esses que tantas vezes preferimos reprimir”, começou por apontar o organizador
de A Dança dos Ossos. “As figuras monstruosas do gótico personificam esses
medos e representam ameaças ancestrais, ameaças que acompanharam a humanidade
desde a sua origem e que continuarão a assombrar o nosso futuro, facto que
assegura a relevância dessas figuras mesmo nos tempos modernos. Em segundo
lugar, muito embora a ciência tenha vindo a desmistificar muitas das questões
para as quais, durante séculos, procurámos resposta na superstição, a ficção
gótica apresenta-nos um visão de certo modo desencantada do mundo, tornando
claro que o progresso acarreta certos perigos e que o conhecimento humano
continua a ter limites.”
Apesar de ser “pouco original, mas nem por isso mesmo
verdadeira”, a melhor definição é a de que “a literatura
gótica é uma porta para o medo. As melhores obras do género permitem-nos
encarar os nossos receios e, desse modo, compreender melhor quem somos assim
como a sociedade em que vivemos, algo a que, no fundo, toda a boa literatura
almeja.”
COMENTÁRIO
Adele R: Excelente! O
gótico é muito abrangente. O medo é um dos seus ingredientes. Depois de ter
passado anos a ler histórias de terror, incluindo todos os autores aqui
citados, os anglófonos, beneficiando do facto de vender livros das Publicações
Europa-América, que tinha uma boa colecção sobre o género, passei a identificar
o Gótico com romances como Rebeca de
Daphne Du Maurier. Uma vez
perguntaram-me: como é que se passa de romances - eufóricos - como Orgulho
e Preconceito, para
romances como Jane Eyre, disfóricos? E
eu procurei a resposta. Penso que é Daniel Fondanèche que a dá, mas não tenho a certeza. Enquanto o romance
sentimental, de amor, conta a história do encontro, enamoramento e casamento
entre um homem e uma mulher, o romance gótico conta a história da vida entre
esse homem e essa mulher depois de casados. Ou a sua convivência, a sós, numa
casa, num espaço confinado. Ora, dada a educação da mulher, a sua inexperiência
relativamente ao mundo masculino, digamos, este tipo de romance espelha a
ansiedade provocada pela saída do lar paterno, conhecido, seguro, para entrar
no lar do homem amado, mas desconhecido e ameaçador. É mais ou menos isto. Peço
desculpa pelas imprecisões. A propósito, Jane Eyre e Rebeca são dois dos meus romances preferidos. E tanto um como
o outro têm uma série de filmes baseados neles, filmes esses de grande
qualidade. Frequentemente, critica-se a literatura de evasão. Pessoalmente, não
me importaria de me evadir, sumir completamente, invadir quer Thornfield, quer Manderley e
ficar lá.
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