A respeito desta pandemia destruidora original. Tiago Coelho escreveu um texto corajoso e enxuto,
que, oxalá, não o desfavoreça, trabalhando tão lá ao pé das origens dela…
China, Covid-19 e OMS: quando a
responsabilidade morre solteira
O modo como Pequim instrumentalizou a
OMS para servir os seus interesses a expensas da credibilidade de uma
instituição antes respeitada deixa ver o que a China pretende das instituições
multilaterais
OBSERVADOR, 15 abr 2020
Agora
que a Covid-19 parece estar sob controlo na China (a fazer fé nos dados oficiais) e a Europa e os
Estados Unidos se desdobram em esforços para minimizar a sua propagação
evitando que os respectivos serviços de saúde entrem em colapso, a
máquina de propaganda ao serviço do Partido Comunista chinês (PCC) não perdeu
tempo a compor a narrativa sobre o coronavírus e o que se segue. Os objectivos
de comunicação a curto e longo prazo são claros.
Primeiro, é
necessário ocultar, com a devida conivência da Organização Mundial de Saúde (OMS),
as circunstâncias que ditaram o aparecimento do vírus em Wuhan. Isso foi prontamente comprovado pela reacção do
porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Lijian
Zhao, que, num tweet
no início de Março, tentou lançar uma campanha de desinformação onde culpava
o exército americano de ter trazido o vírus para Wuhan em Outubro de 2019.
Tudo isto, recorde-se, numa altura em que a versão de que o Covid-19 teria
tido origem num mercado em Wuhan começava a ser questionada. Uma outra
hipótese entretanto levantada sugeria que o surto de Covid-19 poderia ter
começado na sequência de um acidente no
laboratório do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças de Wuhan. Note-se que neste laboratório, localizado nas
imediações do tal mercado, se conduziam testes com diferentes tipos de
coronavírus. Acidentes desta natureza podem sempre acontecer. O que não pode
acontecer é que, qualquer que seja a verdadeira origem do surto de Covid-19, as
autoridades chinesas se preocupem mais em ocultar o aparecimento do vírus e esconder
informação durante mais de um mês. Perdeu-se
tempo precioso para se educar a população e implementar medidas para mitigar a
propagação do vírus. Pior: com o vírus detectado em Novembro
2019, as autoridades chinesas não só
ocultaram informação como não hesitaram em silenciar médicos que fizeram soar o
alarme. Entre eles está o caso do doutor Li Wenliang, acusado pelo Departamento de Segurança Pública de
fazer afirmações falsas com potencial para destabilizar “a ordem pública”,
que acabaria por morrer infectado com Covid-19. Ao bom
estilo marxista-leninista, a purga às vozes indesejadas não se ficou por aqui.
Paralelemente, continua a limpeza de qualquer tipo de crítica à actuação do PCC
nas redes sociais e no interior do próprio partido como o recente caso de Ren
Zhiqiang demonstra.
Segundo, é
fundamental exaltar o espírito de sacrifício do bom povo chinês (mesmo que isso
tenha um custo absurdo em termos de uma ainda maior limitação das liberdades
individuais) e, mais importante, glorificar a acção do PCC e Xi Jinping que,
que depois de ter estado várias semanas ausente (quando o Covid-19 se propagava
rapidamente), voltou a aparecer como o grande líder (apenas quando a situação
começou a ficar sob controlo).
Terceiro, urge
lançar uma campanha de propaganda internacional com o propósito de moldar percepções,
ou seja, tornar o principal responsável pelo desastre do Covid-19 no país que
irá salvar o mundo da pandemia que ele próprio criou. Tudo o resto não
importa. O pior no meio desta história é que Pequim encontra
aliados (não importa se conscientes ou inconscientes) nas Nações Unidas, OMS ou
mesmo em alguns órgãos de comunicação social Ocidentais que há umas semanas
estavam mais preocupados em discutir se a designação de “vírus de Wuhan” era
racista ou não. O
silêncio ensurdecedor que se sente numa altura em que se deveria confrontar a
China com as suas responsabilidades não será alheio à crescente influência
financeira, económica e política de Pequim no plano internacional. É justamente
neste ponto que importa olhar para o que se passa na OMS como um estudo daquilo
que o PCC pretende de organizações multilaterais e, em última análise, de um
sistema internacional multipolar.
Ao contrário do que sucedeu
durante a epidemia da SARS em 2003, a OMS tem sido conivente com a negligência
demonstrada pelo governo chinês na gestão do Covid-19. O seguinte exemplo ilustra bem a situação. Em
meados de Janeiro quando os médicos chineses já sabiam que o coronavírus se
transmitia entre humanos, a OMS veio a público dizer que não havia provas que
confirmassem casos de transmissão entre humanos. No final do mês, o director-geral
da OMS, o etíope Tedros Ghebrevesus, deslocou-se a Pequim para uma reunião com
o Presidente Xi Jinping. Na sequência do encontro, Tedros revelou estar
impressionado com a actuação das autoridades chinesas no controlo do
coronavírus (que não estava controlado de todo) e com a abertura do governo chinês para partilhar
informação, isto depois de se saber que as autoridades tinham
ocultado informação durante mais de um mês. Como é
que uma organização que tem desempenhado um papel crucial no combate e erradicação
de doenças infecciosas no passado se presta hoje a este tipo de subserviência?
A resposta está naturalmente na crescente
influência da China na ONU e OMS. Com um
orçamento deficitário, a OMS depende cada vez mais das contribuições
financeiras dos seus membros. Nos
últimos anos, a China chegou-se à frente para pagar a factura contribuindo com
$86 milhões para o orçamento da OMS, o que representa um aumento de 52% desde
2014. A isto acresce o facto de a China ter sido um aliado fundamental na eleição de Tedros
para director-geral da OMS. Um dos
primeiros actos de vassalagem de Tedros a Pequim foi a confirmação de que a OMS
não reconhecia a autonomia de Taiwan, reiterando o apoio ao princípio de “uma só China”.
Numa
altura em que os Estados Unidos parecem menos interessados em liderar a ordem
internacional liberal que tão bem tem servido os seus interesses e relegam para
segundo plano a participação em organizações multilaterais, a China faz o contrário. A forma como Pequim instrumentalizou a OMS para servir
os seus próprios interesses a expensas da credibilidade de uma instituição até
aqui bastante respeitada, deixa antever aquilo que a China pretende das
instituições multilaterais criadas à luz de princípios liberais que Pequim
manifestamente não respeita. Perante
este cenário preocupante, pelo menos na perspectiva das democracias Ocidentais,
era bom podermos ouvir mais vozes com responsabilidades políticas a condenar e
responsabilizar a China pelas suas acções.
Dado o falhanço da OMS na resposta a esta crise seria bom saber o que pensa o
Secretário-Geral da ONU, António Guterres. Infelizmente, tendo em conta
a sua actuação ao longo desta crise (e mandato, diga-se), não se poderá esperar
mais do que uma continuação de discursos vácuos absolutamente inúteis. É
triste.
COMENTÁRIOS:
Ad OB: As democracias
deviam limitar ao mínimo as suas relações com ditaduras. Sendo que o ideal era
que não tivessem relações de todo. É hipócrita bater o peito dizendo que sou
contra a violência doméstica, porque não a pratico em casa e depois ver e ouvir
o meu vizinho a espancar a mulher e não fazer nada. A falta de respeito pelos
direitos humanos, pelo ambiente e por tudo e todas as entidades que não sejam a
favor dessas ditaduras não só não deveria ser tolerado como deveria ser
activamente combatido/boicotado.
Paulo Silva: Caro
articulista, só tenho pena de que o seu texto não fique em destaque na página
do Observador (é o mais provável). O Ocidente aceitou a entrada da RP da
China no seio da OMC para o alargamento substancial do Mercado, mas sempre na
esperança de que esta se democratizasse. Ao invés, é esta que vai
canibalizando as organizações mundiais. Esta pandemia resulta do modus operandi
prepotente e nada transparente com que o regime do PCC resolve todos os seus
assuntos internos. Mas uma eventual pandemia num mundo globalizado é tudo
menos assunto interno. Que a CoViD-19 seja uma oportunidade de mudança política
na China. Não faltou muito para um levantamento...
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