Ou, como diria Sherlock Holmes, mas não
é certo, “elementar, meu caro Watson”.
Eu acrescentaria: Repugnante.
OPINIÃO
O despudor de querer manter aumentos
para os funcionários públicos em 2021
Há partidos políticos que parecem não
ter a noção da proporção e nem mesmo a do ridículo.
SÃO JOSÉ ALMEIDA
PÚBLICO, 18 de Abril de 2020
O momento é de crise. Os receios sobre o futuro avolumam-se no domínio
da saúde pública, em que a contenção da expansão da pandemia de covid-19 não dá
nenhuma garantia de que a curto ou médio prazo não possa haver uma explosão de
contaminados e de mortos. É também imensa a incerteza sobre as
consequências e a devastação social e económica que resultarão da pandemia. Há
um clima de temor generalizado em relação ao futuro, que é assumido pelas
autoridades políticas, por mais que o Presidente da República e o
primeiro-ministro se empenhem em transmitir confiança.
Neste contexto, que potencia o
desespero, há partidos políticos que parecem não ter a noção da proporção e nem
mesmo a do ridículo. Sinal disso é a notícia do
PÚBLICO de quarta-feira sobre a forma como o BE, o PCP e o PEV
defendem que têm de se manter os aumentos previstos para os funcionários
públicos em 2021, em reacção às declarações do primeiro-ministro de que eles
poderiam não se concretizar, na entrevista
que deu na terça-feira ao Observador.
É no mínimo bizarro – senão politicamente imoral – vir nesta altura
defender, nos termos em que foi feito pelo PCP, o PEV e o BE, que deve
continuar a vigorar tudo o que foi estabelecido no Orçamento do Estado para
2020 sobre aumentos salariais para 2021. Como se, entretanto, o país não
estivesse a passar por uma crise de dimensões estratosféricas, que vai ter
implicações gravíssimas sobre a sociedade, a economia e as finanças públicas.
Na
entrevista, o primeiro-ministro limitou-se a dizer o que é uma evidência: “Seguramente,
antes do Orçamento do Estado para 2021 teremos de discutir um orçamento
suplementar para 2020 que incorpore o aumento brutal da despesa que resultou
dos investimentos no SNS e nos custos de medidas sociais, como as de apoio aos
rendimentos e ao emprego.”
Daí
que tenha afirmado que “pode não haver condições para aumentar salários da
função pública como pode ser que haja condições”. Ainda que admitindo a
possibilidade de haver capacidade orçamental para aumentos aos funcionários
públicos, António Costa limitou-se a enunciar os constrangimentos financeiros
do Estado dos funcionários públicos em 2021.
Este
tipo de discurso por parte de partidos com assento parlamentar é uma clara
confusão entre direitos dos trabalhadores e deveres do Estado. Isto num momento em que a prioridade,
no que se refere a garantir direitos, passa pelo direito a um Serviço Nacional
de Saúde reforçado que dê resposta à pandemia, bem como por assegurar a
assistência social e económica às pessoas e às empresas. As medidas de excepção
têm de ser para todos. O combate à crise não pode agravar mais o fosso da
desigualdade.
Na quarta-feira, o ministro de
Estado, da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira, afirmou que as empresas privadas que já tinham
recorrido ao layoff empregam, no seu conjunto, cerca de um milhão de trabalhadores.
Na quinta-feira, no PÚBLICO, Victor Ferreira confirmava a
indicação do ministro com dados oficiais. Sublinhe-se: os trabalhadores
abrangidos pela medida nas empresas em layoff sofrem uma redução de um terço no
seu salário. Um risco que os funcionários públicos não correm, pois no Estado
não há layoff.
O Fundo
Monetário Internacional, no estudo divulgado na terça-feira, prevê
uma duplicação do desemprego em Portugal com uma subida dos 6,5% em 2019 para
13,9% em 2020, uma situação que se abate também sobre os trabalhadores do
sector privado e não do público.
O mesmo
estudo do FMI previa também, para 2020, uma quebra de 8% no PIB, quando 2019
fechou com 2,2% de crescimento e a quebra máxima em termos históricos foi de
4,1%, em 2012, devido às medidas da troika, como explicou
Sérgio Aníbal, no PÚBLICO.
O
cenário avançado pelo FMI é idêntico ao discurso sobre as consequências da
pandemia na economia e nas finanças públicas do ministro de Estado e das
Finanças, Mário Centeno, em entrevista à TVI, na
segunda-feira. Centeno avançou com a informação de que a quebra do PIB anual é
de 6,5% por cada 30 dias úteis idênticos ao mês de estado de emergência. Ainda
que tenha admitido que essa quebra do PIB em termos de todo o ano de 2020 pode
“não chegar aos dois dígitos”.
Quanto ao défice, o ministro de Estado e das Finanças previu que,
depois de ter havido superavit em 2019 e ter sido previsto um novo de 0,2% em
2020, as contas públicas deste ano deverão fechar com um saldo negativo maior
do que 3%. Já o FMI prevê que o défice em Portugal em
2020 chegue aos 7,1%.
Com uma crise social, económica e financeira que se prevê desta
dimensão, como é que alguém tem o despudor de dizer que o Governo tem de
garantir aumentos salariais aos funcionários públicos em 2021? Que
credibilidade e legitimidade querem o BE, o PCP e o PEV ter quando for preciso
fazer reivindicações a sério?
TÓPICOS
COMENTÁRIOS:
João Cascalho INICIANTE: A dita "reposição salarial" ficou completa
em Dezembro de 2019. Temos que pensar que desde a entrada no euro os salários
da generalidade dos portugueses não aumentaram um cêntimo sequer em termos
reais. Antigamente a moeda podia ser desvalorizada. Agora não pode. Resultado:
são os salários que são muito condicionados porque o valor do trabalho anda
pelas ruas da amargura...
nunos
EXPERIENTE: Apenas políticos e seus amigos (sindicatos e jornalistas) se
poderiam lembrar de algo como isto nesta altura. Suponho que o objectivo é
atirar as pessoas contra os funcionários públicos, criando uma cortina de fumo
para tapar todas as outras questões. Indecente.
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